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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O “conservadorismo” dum autoproclamado herege


Enquanto conversava com um grupo de amigos ontem, alguém fez um comentário um tanto inesperado, no contexto do que discutíamos, mas, até certo ponto, verdadeiro. Fui chamado de “conservador” numa discussão teológica! Todos se entreolharam, alguns riram, alguém chegou a perguntar ao colega o sentido da palavra “conservador” para ele, e, em seguida, ele respondeu “Não falo teologicamente; acho que você seja um conservador socialmente!”. “Ufa! Que susto!” - brinquei.

Brincadeiras à parte, é engraçado o limite que enfrentamos quando tentamos classificar ideias e atitudes. Como alguém que se ocupa de pensar sobre minha tradição religiosa – leia-se o “Cristianismo protestante” –, sou geralmente visto como qualquer coisa, menos ortodoxo. E essa é uma visão não apenas alheia, como a minha própria autoclassificação. Gosto de enfatizar que sou, teologicamente, um herege, já que enfatizá-lo é afirmar a herança teológica na qual emergi como homo religiosus. [Essa auto-classificação per se já é problemática, pois quase ninguém entende o que significa o adjetivo “herege” quando este é usado no contexto da fé. Isso inclui pessoas supostamente bem informadas em se tratando da Teologia e de outras “ciências humanas”, por exemplo.]

Afirmar minha herança herética, entretanto, não é negar que a fé e a tradição religiosas exerçam um grande papel em minha vida. E não poderia ser diferente. Essa é a razão pela qual sou um Ministro religioso. Essa é a razão pela qual me engajo no estudo e discussão de minha tradição de fé. Nesse sentido, sou um conservador: alguém que busca manter viva a tradição de fé [herética] que me alimenta; alguém que se esforça para caminhar nos limites de minha própria tradição teológica, mesmo explorando caminhos paralelos que me ajudem a ampliar a dimensão do entendimento de minha própria tradição de fé.

Conheço as objeções que muitos fazem a essa ideia, mas partilho, até certo ponto, das perspectivas clássicas de Christopher Dawson da religião – ou da “dinâmica espiritual” – como modeladora da cultura duma sociedade. Para ele, claro, essa “religião” não precisaria ser algo explicitamente religioso, poderia ser uma “religião disfarçada”. Marcelo Gleiser, inclusive, fala desse mesmo disfarce quando sugere que mesmo ateus podem transformar sua busca por um ideal de perfeição – nos esportes, na ciência etc – em um ritual sacro. Então, quando meus amigos ateus zombam de minha “religiosidade”, não posso fazer nada mais além de zombar da sua também! Alguns deles se ocupam tanto em desacreditar a fé, por exemplo, que chegam a soar ainda mais visceralmente dogmáticos do que aqueles que tentam desacreditar! Nesse sentido, sua suposta descrença é sua religião!

Aqueles de fora de minha herança de fé têm um grande problema em compreender a relação entre minha fé e minha orientação emociono-sexual, por exemplo. Para eles, especialmente os que não são religiosos (por mais inacreditável que isso possa parecer!), ser um Protestante (claro que eles não compreendem absolutamente nada sobre o Unitarismo, o Anglicanismo, ou o Luteranismo – minhas tradições pessoais) é irreconciliável com uma identificação “gay”. Para os religiosos, especialmente os protestantes evangelicais – que enfatizam uma visão do papel das Escrituras aparentemente irreconciliável com a minha –, simplesmente não sou cristão! Para aqueles que tornaram a homossexualidade (como odeio esta palavra!) sua religião – sim, porque não conseguem se enxergar como nada mais além de gays; tudo o que supostamente sofrem resume-se ao “fato”(?) de serem homossexuais! –, minha fé é uma ofensa descabida, já que sou parte da “instituição” (i.e., a religião) que os oprime!... E a ladainha se repete ininterruptamente em minhas interações sociais!

Além disso, há ainda o fator político! Geralmente, só se consegue pensar em termos das posições diametralmente opostas do espectro político – as antigas “direita” e “esquerda” que, desculpe-me Norberto Bobbio, não sei se fazem tanto sentido no Brasil de hoje –, ignorando-se quaisquer perspectivas que não se encaixem perfeitamente a esse molde prefabricado. E essa monotonia ideológica que paira sobre nossos diálogos intermináveis é irritante! Esses supostos diálogos são, na verdade, um monólogo disfarçado – um monólogo de velhas ideias que temem ser desafiadas por novas fusões de ideias – que tenta acorrentar mentes jovens. Um verdadeiro enfado; um verdadeiro enfado que tenta acorrentar o próprio Deus!

Por isso sou um autoproclamado herege. Se a heresia é, etimologicamente, uma questão de escolha, então sou um herege! Um cristão herege. Um judeu herege. Um ortodoxo herege. Um liberal herege. Um conservador herege. Um herege herético. Um ser humano fundamentalmente à beira duma fé permanentemente herética!

+Gibson

DAWSON, Christopher. Progresso e Religião: uma investigação histórica. Tradução Fábio Faria. São Paulo: É Realizações, 2012.

GLEISER, Marcelo. O fim da Terra e do céu: o Apocalipse na Ciência e na Religião. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 31.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Sobre o Orçamento de 2013: uma mensagem aos membros da CUP


Grande parte do que um ministro Unitarista faz em seu trabalho é envolver-se com o ensino religioso em nossa comunidade. Em nosso caso, especialmente, esse parece estar no centro de tudo o que nos esforçamos a fazer: em primeiro lugar, por estarmos num país onde somos poucos e onde não há muitos materiais em português para que possamos educar nossa comunidade em nossa tradição (e, por isso mesmo, infelizmente o Unitarismo continua a ser este círculo fechado ao qual poucos têm acesso); e, em segundo lugar, e ainda como consequência do primeiro, temos uma comunidade idosa, e nos preocupamos com o futuro de nossa tradição cristã liberal em nosso país se não investirmos na educação religiosa de nossos membros mais jovens. Isso, talvez, explique a verdadeira obsessão que esta comunidade tem com educação religiosa.

Líderes de outras comunidades de fé, e mesmo de outras igrejas Unitaristas em outras partes do mundo, não compreendem algumas das escolhas que vocês, como membros desta congregação, decidem fazer. Em um encontro recente que tivemos com alguns outros ministros aqui mesmo em Recife, ouvi um questionamento que merece uma resposta pessoal minha a vocês. Um dos participantes disse não compreender por que aqueles que servem esta congregação como Ministros da Palavra e Sacramento abrem mão de receber um salário e são obrigados, por isso, a ter um emprego lá fora – enquanto que se a congregação investisse em seus próprios ministros, estaria investindo em si mesma, já que teriam nossa atenção em tempo integral. Ele disse que não compreendia como uma comunidade que tem membros espalhados por vários Estados pode não cuidar de seus ministros. Não preciso dizer que aquele comentário levou todos os participantes a se envolverem na atividade mais tradicional duma comunidade Unitarista: um debate – um debate que durou cerca de duas horas após os comentários iniciais, e que tem continuado ainda no universo virtual!

Gostaria de dizer àqueles entre vocês que não sabem disso que a decisão de tornar o Ministério desta congregação um Ministério não-estipendiário foi tomada pelos seus próprios Ministros da Palavra e Sacramento: os Ministros Auxiliares e eu – que, de acordo com o Estatuto desta comunidade, recebem salário para trabalhar aqui. Tomamos essa decisão quando aceitamos o chamado para nos engajarmos no ministério entre vocês. Todos nós já tínhamos sido Ministros de outras congregações e, assim, conhecíamos os desafios financeiros de comunidades como essa. Quando ainda estava sendo entrevistado para este chamado, tinha certeza de que a educação religiosa seria o melhor investimento que poderíamos fazer, além daquelas outras ações de natureza social na qual esta comunidade investe.

Alguns de nossos amigos não entendem como uma comunidade se desfaz de seus poucos bens para levantar fundos e ajudar a construir um hospital do outro lado do mundo. Não entendem por que pessoas que se aposentaram, e poderiam estar aproveitando os frutos de seu trabalho, decidem trabalhar em outras comunidades – que surgiram a partir dos esforços desta – na África do Sul, no Quênia, na Índia e na Guiana, sendo financiados pelos suas próprias economias. Não entendem por que nossos jovens são estimulados a doarem parte de seu tempo livre em serviço a outras pessoas no Sertão de nosso Estado. E não sei dizer se nós, os ministros desta comunidade, compreendemos isso plenamente, mas posso garantir que somos inspirados pela dedicação e amor de vocês à causa que abraçam. Enquanto comunidade que toma essas decisões, vocês dão vida, em suas próprias ações, às palavras que rezam na aliança feita por todos aqueles que se tornam membros desta congregação:

O amor é a doutrina desta igreja,
E o serviço é a sua oração.
Habitar juntos em justiça e paz,
Buscar a verdade com liberdade,
Respeitar o valor e dignidade de todas as pessoas,
E servir a humanidade juntos,
A fim de que todas as almas
Possam crescer em harmonia com o divino,
Esta é a aliança que fazemos uns com os outros.

Quanto a mim, posso garantir-lhes que é sua dedicação que me inspira a continuar servindo-os, enquanto vocês desejarem isso.

A maneira como os quatro ministros desta congregação – Tadeu, Peter, Alícia e eu - têm conseguido servi-los, enquanto mantemos uma vida profissional envolve muita oração e negociação. Cada um de nós tem um ou mais empregos, e dividimos nossas responsabilidades de acordo com nossos horários; e esses horários são alterados de acordo com a necessidade que nossa comunidade tem. Por isso, nem sempre, vocês podem ter a presença específica de um de nós numa atividade na qual gostariam que estivéssemos. Cito como exemplo o caso de um de nossos grupos que me chamou na última semana para estar presente em uma atividade na qual não pude estar, por estar trabalhando naquele horário; não estive lá, mas um outro ministro esteve em meu lugar. Esse aparente sacrifício – de todos os lados, tanto dos ministros quanto da congregação em si – tem uma razão muito especial de ser: o que vocês gastariam com salários, pode ser investido nos programas essenciais desta comunidade, e como bem sabem, mesmo assim, ainda é difícil! Precisamos de um novo prédio, preferencialmente de mais fácil acesso a todos aqueles que queiram estar entre nós, e onde possam chegar mesmo que tenham acesso apenas ao transporte público. Essa meta, entretanto, jamais será cumprida se esta congregação gastar dinheiro pagando salários para seus ministros – e essa é uma conclusão a qual todos os Ministros da Palavra e Sacramento desta congregação chegaram juntos, não é uma conclusão minha apenas.

Essa dificuldade de equilibrar necessidades financeiras pessoais com as necessidades da comunidade a qual servimos é que motiva algumas decisões polêmicas que pessoalmente tomei neste ano. Quando deixei a Presidência da Associação Unitarista, o fiz para que pudesse cumprir meu chamado mais importante, que é o de pastorear esta Congregação, e, ao mesmo tempo, de ser capaz de trabalhar para me sustentar. Eu passava muito tempo, quando não estava cuidando de minha própria vida, ocupado em reuniões da Associação, e tendo apenas poucas horas por semana para estar com vocês. Quando fui chamado como seu Ministro, prometi que cuidaria de vocês, que me comprometeria com suas necessidades, e esta foi a razão pela qual me afastei da Presidência da Associação. Continuo a servir também na Associação, mas apenas duma forma que não interfira em meu serviço entre vocês.

Tenho me esforçado em todos os projetos educativos de nossa comunidade, além de trabalhar num ministério de capelania a parte. E, para que se tranquilizem, quero que saibam que tenho sido capaz de lidar com minhas próprias necessidades financeiras, sem necessitar ser pago por vocês.

Como hoje vocês votarão o orçamento da Congregação para o próximo ano, saibam, desde agora, que nós, os Ministros desta Congregação, e eu, como seu Ministro Geral, lhes pedimos que confiem em nossa decisão conjunta e continuem a permitir que trabalhemos aqui como Ministros não-estipendiários. Peço que façam a melhor escolha para esta comunidade, levando em consideração as necessidades que ela tem, e que os poucos fundos sejam destinados aos programas de educação religiosa e missional no qual temos, como comunidade de fé, nos engajado nos últimos cinco anos. Cremos que possamos iniciar entre os membros um programa de arrecadações para a construção de nosso novo prédio, em alguns anos, mas que não devamos comprometer os fundos da Congregação com isso agora. O espírito de voluntariado tem sido a tradição desta igreja, e oramos para que ele continue a guiar suas decisões orçamentárias. É a nossa oração como Ministros desta Congregação; é a minha oração e pedido como seu Ministro Geral!

+Gibson

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O exílio da alma


Para mim, uma palavra-chave resume toda a tradição judaico-cristã de forma mais plenamente metafórica que qualquer outra: exílio. As Escrituras, que enxergamos como testemunhas de nossa fé e tradição, estão imersas na ideia de exílio. Nossa relação com o Divino, o Nome que traz-nos e o todo da Criação à existência, é uma relação de exílio. A história de nossa espécie sobre este planeta é uma história de exílio.

Exílio, êxodo, migração, errância e nomadismo são palavras que definem minha experiência humana e minha relação com a única verdade que continua ancorada em minha alma: Deus – o Mistério Eterno que aguça minha busca por uma permanência, em meio a todas as experiências de instabilidade identitária que têm modelado minha história até agora.

Nas tradições judaicas e cristãs, encontramos uma complexa e contínua narrativa de exílio. O exílio das almas humanas neste planeta, afastadas da esfera do domínio divino. O êxodo do povo hebreu na terra dos egípcios. A migração pelo deserto físico. A errância do Filho do Homem na terra da dor e sofrimento. E o nomadismo espiritual que é parte da jornada humana em sua busca pelo Divino. Nossa vida é uma existência de êxodo e exílio.

Por que, em seu sonho, Jacó não pode também subir as escadas que levavam ao domínio divino, como os anjos o faziam? Por que foi a terra do exílio que o Divino ofereceu-lhe, quando poderia ter-lhe oferecido o destino final? (Gênesis 28:10-15)

Aparentemente, o Deus de Jacó via o exílio como um privilégio, a possibilidade de ultrapassar o alcance das raízes identitárias que nos amarram e limitam; a oportunidade de ser divino também – no sentido de poder compreender a limitação da própria Criação. Por isso o sofrimento no deserto quente e seco do êxodo marca-nos a todos nós, mesmo aqueles que nunca deixaram os limites de seu próprio quintal. O filósofo Gilles Deleuze chamaria essa experiência exílica de “mobilidade”, e a compreenderia como sendo a essência do ser. Para ele, a mobilidade constituiria o instrumento da criatividade do ser. E eu não poderia discordar de Deleuze.

Desenraizar-se, ou, talvez, como diria o apóstolo Paulo sobre Jesus, esvaziar-se, é um ato revolucionário em si. É um ato corajoso de desafio àquilo que parece ser permanente em nós, mas que, ao nos tornarmos nômades, descobrimos ser transitório: nossa própria identidade.

Qualquer um que tenha experienciado a migração, qualquer um que tenha enfrentado a distância, a solidão, a saudade, conhece a sensação de se agarrar ao que restou para permanecer sendo o mesmo. Mas à medida que o novo e desconhecido se abre e desnuda diante de nossos olhos, deixamos de temer, e passamos, talvez, a inserir pequenos fragmentos daquela novidade em nossa própria identidade. E nascemos de novo.

Essa mobilidade, ou êxodo, ou exílio, é minha compreensão do “nascer de novo” da linguagem cristã. O exílio é o morrer e ressuscitar que devemos experienciar para que possamos nos tornar unos com Cristo.

Sim, Deus acertou em não ter permitido que Jacó subisse a escada que levava aos céus. A terra do exílio ensina-nos muito mais.

+Gibson


sábado, 1 de setembro de 2012

Palavras verdadeiras ou falsificadas?


(Leitura: João 6:56-69)


Para aqueles de vocês que têm participado da classe de adultos da Escola Dominical, onde agora estamos explorando um livro de Jack Miles, “Deus: uma biografia”, ou que tenham participado de outras discussões que tivemos anteriormente, isso não será novidade; para aqueles que não têm participado de nosso fórum de discussão, talvez esse seja um fato despercebido: a Bíblia é um clássico literário traduzido, conhecido em suas línguas originais apenas por um número limitadíssimo de pessoas. [1]

Todos os que já foram meus alunos no seminário costumam brincar com a primeira pergunta que os faço quando começam a estudar comigo: “Alguém aqui já leu a Bíblia?”. Todos levantam as mãos. Alguns retrucam que não a leram completamente. Outros dizem que já a leram muitas vezes. Costumo, então, demonstrar minha alegria e perplexidade em saber que somos um grupo de estudantes tão linguisticamente capacitados, e que isso facilitará em muito nosso trabalho durante o semestre – já que todos conhecem hebraico e grego tão bem! Os rostos mudam de expressão. “Mas além do hebraico e grego, também conseguem ler latim sem problemas?”... E o gelo é quebrado!

A brincadeira que sempre faço com meus alunos tem a ver com o fato de a maioria das pessoas lerem traduções das Escrituras, e não os textos nas línguas originais das mesmas. Sei que aqui entre nós há outros tradutores além de mim. A Sílvia, por exemplo, é tradutora de alemão, e tem trabalhado conosco, no IRWEC, traduzindo textos teológicos importantes. Semana passada, numa conversa, falávamos sobre a dificuldade em manter a inteligibilidade dum texto, ao mesmo tempo em que nos esforçamos para mantermo-nos fiéis à linguagem própria do autor do texto que estejamos traduzindo. Entretanto, independentemente do excelente trabalho de tradução efetuado por um tradutor ou um grupo de tradutores, quando lemos uma tradução, não estamos lendo o texto original – estamos lendo a interpretação daquele feita por um terceiro.

Recentemente, ensinei um minicurso a um grupo de universitários não acostumado a questões como essas, e percebi o quão difícil foi, para alguns deles, entenderem que a “Bíblia” que discutíamos era uma construção histórica. Era uma construção, em primeiro lugar, por não ter “caído do céu” pronta – seus textos, independentemente da natureza que lhes atribuamos (i.e., se inspirados pelo Divino ou não), foram compostos e editados por humanos como nós durante um longo período de tempo; em segundo lugar, todos aqueles textos foram vertidos duma língua a outra, e (por muito tempo) dessa outra a uma terceira – e imaginem a dificuldade que se teria, antes de se ter acesso a tecnologias linguísticas tão sofisticadas (e, mesmo assim, limitadas) como as que temos hoje, para traduzir um texto do hebraico para o grego, e depois traduzir essa tradução para o latim: quantos “equívocos” linguísticos, e consequentemente, teológicos, não poderiam ter resultado disso?; em terceiro lugar, aquilo que chamamos de “Bíblia” não é um livro, mas, como indica seu próprio nome, que deriva do grego, é uma pluralidade, uma coleção de escritos – que não surgiram todos ao mesmo tempo e no mesmo lugar, nem foram compostos pelo mesmo autor, nem na mesma língua original! Imaginem o quão confuso e traumático isso pode ser para alguém que está acostumado a ler uma tradução que é tratada como uma obra única e original!

A reação de muitas pessoas – seja um público mais geral, quando falo em ambientes fora de nossa comunidade de fé, ou seja em meio a um grupo de estudantes – tem sido a de surpresa e ofensa, quando falo de um tema tão natural como este: o fato de nossa Escritura Sagrada, em inglês e/ou português, no caso de nossa comunidade, ser a tradução de uma construção histórica imperfeita. Como ouso tomar este tempo tão sagrado em nossa comunidade, no qual outros pregadores em outras comunidades cristãs estariam exaltando palavras extraídas de suas traduções da Bíblia, para chamá-la de construção histórica imperfeita, de criação humana, ou de uma simples tradução? Isso, em si, já seria evidência mais que suficiente de nossa heresia e não-cristandade, na visão de algumas pessoas.

Mas, para aqueles que costumam se preocupar tanto em afirmar a biblicidade de sua fé, faço uma pergunta: onde, em sua tradução da Bíblia – ou em seu texto em hebraico e grego – está explícita e inequivocamente declarado que este volume que alguns costumam carregar em suas mãos com orgulho seja sinônimo de Evangelho? Onde está escrito que o centro da fé cristã é um volume de textos escritos e traduzidos por outros homens – e onde está listado que textos sejam esses, exatamente –, e não a vida, obra e ensinamentos daquele que todos os cristãos dizem seguir?

Sempre penso que a questão por trás da insegurança que acompanha o enfrentamento da historicidade das bases teológicas de nossa fé seja, de fato, a questão da verdade. Pois se desafiarmos uma compreensão literal restritiva das narrativas bíblicas, por exemplo, estaríamos negando “a verdade”. O problema é que esse tipo de argumento só faz sentido se entendermos “verdade” como sinônimo necessário de “factualidade” – um equívoco interpretativo cometido não apenas por cristãos fundamentalistas, mas também muito defendido por ateus militantes (quando se trata de suas críticas ao Cristianismo, em particular).

A hermenêutica cristã fundamentalista – ou seja, a teoria que baseia sua interpretação dos textos sagrados – enxerga (quando lhe é conveniente, isto é) as narrativas bíblicas como relatos factuais. Assim, Jesus, de fato, caminhou sobre as águas; Moisés, de fato, abriu o Mar Vermelho; de fato houve um primeiro casal num Jardim do Éden etc. A leitura dessas tradições bíblicas não pode ser feita de maneira metafórica, pois a factualidade das narrativas é essencial para a veracidade da Escritura. A não-factualidade narrativa invalidaria a veracidade das palavras. Imaginem o efeito duma operação interpretativa como essa, se a mesma fosse aplicada à famosa pintura de John Trumbull representando a assinatura da Declaração de Independência dos Estados Unidos e à pintura de Pedro Américo que representa a declaração de Independência do Brasil por D. Pedro I: os eventos que representam não seriam verdadeiros, se os cenários não tivessem sido como representados naquelas obras de arte!

Alguns poderiam argumentar que a narrativa cristã só é verdadeira se aquele suposto discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum, que acabamos de ouvir na leitura do Evangelho de hoje, de fato aconteceu, ou aconteceu literalmente como relatado. Não preciso reforçar que não compartilho dessa compreensão de “verdade”. Para mim, não importa se a tradição oral que deu origem àquela narrativa escrita tenha surgido apenas como resposta ao sentimento dos seguidores do rabino nazareno após o que veio a ser chamado posteriormente de “Ressurreição”, e que não tenha factualmente ocorrido como relatada ou que não tenha ocorrido de forma alguma. Para o espírito da tradição cristã, independentemente das peculiaridades de cada uma de nossas correntes teológicas, aquelas palavras são verdadeiras. Nós unitaristas, e outros cristãos e judeus liberais, diríamos que a “verdade” não se encontra nas palavras per se daquela narrativa, mas nos efeitos que as mesmas têm em transformar nossas mentes e ações; se elas ajudam-nos em nosso processo de Imitatio Dei (Imitação de Deus) e Imitatio Christi (Imitação de Cristo), elas nos levam à Verdade Eterna, então são verdadeiras – mesmo que sejam metafóricas.

Na introdução de “Verdade e Método” (sim, estou usando uma tradução), o filósofo Hans-Georg Gadamer, sugere algo interessante: em se tratando da investigação filosófica, seria uma fraqueza que alguém hoje não reconhecesse a verdade presente nos textos dos grandes filósofos do passado, como Platão, Aristóteles, Leibniz, Kant ou Hegel, achando que poderia construir sua própria filosofia sem beber da fonte desses pensadores [2]. Para mim, seu raciocínio pode ser aplicado ao universo teológico: como cristãos ou judeus, não podemos rejeitar a sabedoria e a verdade do passado, simplesmente por a linguagem dessa verdade ferir nossa sensibilidade moderna. O que podemos fazer é encarar as dificuldades interpretativas e buscar, por exemplo, na linguagem metafórica e simbólica a verdade que nos moverá para mais próximos à Verdade Eterna, o Divino que devemos imitar em nossas ações para com nossos vizinhos.

O espírito das palavras das Escrituras, o espírito presente na tradição bíblica, e que molda a tradição cristã, é o que nos dá vida. O amor que Jesus exigiu daqueles que ousarem seguir-lhe para com Deus e o próximo é a verdade. Esse é o sentido misterioso e eterno que se esconde por baixo daquelas palavras antigas traduzidas e retraduzidas de nossos livros sagrados. Esse é o Evangelho!

[1] MILES, Jack. Deus: uma biografia. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. p. 124.
[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 32-33.

+Gibson

(Sermão – 26 de agosto de 2012)