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sexta-feira, 31 de julho de 2020

Morte e o que vem depois: uma resposta às questões sobre uma suposta vida pós-mortal

Já escrevi muito que minha fé/espiritualidade se centra neste mundo e, por isso, chamo-a de “materialista”. Com isso quero dizer que a vida – e sua razão de ser – encontra-se neste mundo; ou seja, ter “fé”, em minha compreensão, significa ver-me como parte integrante deste mundo físico, material, concreto: assim, meu viver e agir é no físico/material/concreto, através do físico/material/concreto, pelo físico/material/concreto.

Sei o quanto dizer isso pode soar controverso para religiosos em geral, das mais diferentes tradições. Para muitos, afinal, religião, fé e espiritualidade referem-se ao sobrenatural, àquilo que está fora do mundo: e isso é bem demonstrado naquelas figuras discursivas que criam um conflito entre o que chamam de “material” e o que chamam de “espiritual” – identificando o espiritual como oposto do material.

Para muitos, das mais diferentes tradições religiosas, haveria um domínio invisível, habitado por entidades espirituais. Para essas tradições, apenas o corpo morre, as pessoas possuiriam um espírito – independentemente de ser esse o termo que utilizem ou outro qualquer – que continuaria vivo naquele domínio invisível. E é dessa crença num domínio espiritual invisível que advém a preocupação cristã, por exemplo, com o tema da “salvação”. “Céu” e “inferno” seriam como que duas localidades distintas nessa geografia da dimensão espiritual, e a chegada a um dos dois seria o resultado das coordenadas seguidas pelo andarilho humano – a recompensa ou punição dada pela rota percorrida na vida.

Uma outra versão dessa preocupação com uma existência pós-mortal compreende que o espírito humano passe por um processo de purificação, de aprendizagem ou de expiação através de múltiplas reencarnações, voltando ao mundo material com um outro corpo – ou em alguma variação dessa ideia.

Eu, como já deveriam saber a partir de tudo que falo e escrevo, penso nisso tudo como uma narrativa metafórica. A linguagem metafórica dum domínio invisível, de céu e inferno, de recompensas e punições pós-mortais, entretanto, não faz nada relevante por mim. A metáfora, a lenda, a promessa, que para muitos parece reconfortante, não me torna uma pessoa melhor, não me ensina a viver, nem torna o mundo melhor ou pior para mim – em outras palavras, é indiferente.

Não se trata de acreditar ou desacreditar no mito dum mundo invisível e na continuidade duma vida consciente noutra dimensão. Trata-se, sim, de uma absoluta não preocupação com esse tema, duma completa irrelevância do mesmo para minha fé e práticas espirituais/religiosas. (Espiritualidade, para mim, a propósito, refere-se à maneira como escolho ver, compreender e experienciar a existência, e não a alguma ligação com uma suposta realidade imaterial.)

A verdade é que não sei o que acontece com as pessoas após a morte. Não sei se, além do corpo e suas funções e fenômenos, possuímos uma parte invisível que permanecerá viva após a morte. E não me importo com isso.

A experiência no/do/pelo mundo concreto, aqui e agora, que é o que chamo de experiência espiritual (fé/religião), é graciosa – isto é, é vivificante no sentido mais amplo, porque é o que posso conhecer da existência, a breve e terminal existência concreta. É nesse mundo concreto, aqui e agora, que posso experienciar o todo de tudo, que posso conhecer o Divino e o humano, o sacro e o profano, o eterno e passageiro. É aqui e agora que posso amar alguém. É para o aqui e agora que posso e devo fazer o que deve ser feito. Não num suposto mundo pós-mortal.

Minha fé, assim, toma a brevidade da vida humana – na verdade, a brevidade da vida de todo o Universo, de acordo com cosmologia científica moderna – como elemento indispensável à minha espiritualidade. Como a vida é breve, e como não espero recompensas pós-mortais para como a vivo, vivê-la plenamente se torna o ponto central. Assim, divinizar a vida – trazer o Divino à experiência da vida – torna-se um exercício espiritual. Esse “divinizar” se expressa, na linguagem cristã, por exemplo, na busca pela justiça, pela misericórdia, pela paz, pelo cuidado com o estrangeiro e o mais pobre, pela defesa do mais fraco etc. É isso que quero dizer com uma espiritualidade “materialista”.

Quando penso naquelas pessoas que amava e que morreram, penso em como elas, de alguma forma, impactaram minha vida e de outras pessoas. Não sinto nenhuma necessidade de pensar que estejam numa outra dimensão. Meu conforto está em saber que [1] elas marcaram as vidas de outras pessoas e criaturas, e [2] seus corpos continuarão a ser fonte para a origem de mais vida neste mundo e continuarão a ser parte do ciclo de criação do Universo do qual somos parte. Essa é minha compreensão do que seja uma “vida pós-mortal”.

Essa não é uma compreensão que funciona para todos, mas funciona para mim. É uma compreensão coerente com minha teologia e com minha forma de compreender o mundo. Admiti-la é ser intelectualmente íntegro, e essa integridade intelectual comigo mesmo encontra suas raízes em minha formação religiosa.


+Gibson



quinta-feira, 16 de julho de 2020

Religioso liberal secularista-humanista?


É frequente a reação de espanto quando pessoas de fora de minha tradição religiosa descobrem que sou um ministro religioso. Seu espanto se dá por não entenderem como minha “visão de mundo” se encaixa na ideia de “religião” que têm – e, consequentemente, na ideia resultante do que seria tanto um praticante quanto um “ministro” de religião.

É para essas pessoas que escrevo agora.

Venho duma formação religiosa liberal de persuasão secularista-humanista. Sou um ministro unitarista, e fui religiosamente educado nas culturas do Cristianismo e do Judaísmo liberais. Questionar, duvidar, examinar criticamente e não aceitar explicações sobrenaturais para fenômenos naturais foi parte dessa educação religiosa que recebi. Assim, “religião” ou “fé”, para mim, não possuem o sentido de sobrenaturalidade e dogmatismo que frequentemente recebem no imaginário popular – mesmo entre outros que receberam uma formação acadêmico-científica.

Os termos “secularista” e “humanista”, em seu mais básico sentido, se referem – de acordo com um dos teólogos que mais me influenciaram, e que ficou equivocadamente conhecido como uma das vozes da “teologia da morte de Deus”, Gabriel Vahanian – à noção de que este mundo é o todo da realidade. Em outro aspecto, referem-se, também, àquele velho anseio unitarista de separação entre Igreja/religião e Estado; isto é, de instituições estatais laicas – governo, justiça, escola etc.

Isso significa, dentre tantas outras coisas, que minha fé se centra neste mundo e nas relações que possuo com os seres, coisas, processos e percepções deste mundo. Significa que não busco explicações no sobrenatural para os fenômenos da vida. Significa que não acredito que haja necessidade duma fé religiosa para que vivamos uma vida ética. Significa que não me preocupo com uma suposta existência fora deste mundo – isto é, com uma suposta continuidade da vida após minha morte numa outra dimensão ou neste mundo como outra pessoa. Neste sentido, “secularista” e “humanista” tornam-se, para mim, sinônimos.

Abraçar uma compreensão secularista e humanista, entretanto, não é o mesmo que dizer que sou ateu. Talvez seja mais exato dizer que não sou um “teísta do senso comum” – isto é, não acredito numa deidade antropomorfa sobrenatural que controla o Universo e os destinos de vivos e mortos a partir duma outra dimensão espácio-temporal. Não acredito em seres sobrenaturais que povoem regiões invisíveis do Cosmos, independentemente de como os chamem. E essa [des]crença, a propósito, não foi causada por nenhuma tragédia, decepção ou frustração pessoal: foi-me ensinada por minha própria religião.

Minha não adesão ao que chamei de teísmo do senso comum, entretanto, não é sinônimo de ateísmo (seja do tipo afirmativo ou negativo). Como já afirmei inúmeras vezes, em variadas ocasiões, minha compreensão do Divino é, apenas, diferente daquelas abraçadas pelos cristãos que abraçam uma compreensão dum Deus Pessoal – e todas as consequências teológicas de tal compreensão.

Na verdade, a [des]crença, em si, sequer chega a ser uma preocupação para mim. E isso porque as crenças ou percepções espirituais/religiosas, em minha compreensão, são moldadas por nossas experiências no mundo. Assim, nossos relacionamentos, nossa educação, nossa [i]maturidade, nossas experiências com as coisas mais simples e/ou mais complexas, etc, podem nos oferecer permanentemente novas perspectivas sobre nós mesmos, sobre o mundo e sobre o que nos é desconhecido.

Isto é, não há compreensão que permaneça comigo ou com outros para sempre. Mesmo que imperceptivelmente, estamos sempre alterando as formas como compreendemos certas questões em nossa visão de mundo – e, neste caso, na visão que tenhamos sobre Deus e/ou religião, por exemplo. Assim, a forma como eu, pessoalmente, articulo minha compreensão de minha “espiritualidade” não é permanente ou imutável – e, novamente, por “espiritualidade” não me refiro a uma suposta dimensão sobrenatural da realidade, mas, antes, à maneira como experiencio a existência.

Identificar-me como um religioso de persuasão humanista, ademais, significa dizer que os únicos que podem estabelecer justiça e paz neste mundo somos nós mesmos. Ninguém mais. Os únicos que podem resolver os problemas que criamos no mundo social ou natural somos nós mesmos. Ninguém mais. Violência, guerras, fome, pobreza, poluição e os males que a acompanham, autoritarismo, analfabetismo, desemprego e todos os problemas gerados no meio ambiente pelas ações antrópicas só podem ser resolvidos por nós mesmos. Ninguém mais.

Sim, é verdade que oro/rezo por paz, justiça e pelo bem do mundo. Mas minhas orações são uma metáfora do desejo que deve nos levar ao esforço de transformar o mundo através de nossos próprios esforços coletivos e individuais. É um símbolo da esperança que move minha ação no e pelo mundo, aqui e agora.

Chamo isso de religião/espiritualidade adulta e responsável. É o tipo de religião na qual acredito e o tipo de espiritualidade que me esforço para viver. Religião e espiritualidade, para mim, devem se manifestar numa eticidade intelectualmente íntegra – mesmo que não corresponda ao tipo de mito de “sobrenatural” ao qual outros aderem.

Assim, minha compreensão do Cristianismo pode, sim, ser chamada de secularista e humanista – ética e espiritual, sim, mas também profundamente materialista (ao menos na forma como compreendo este termo).

+Gibson