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quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Uma breve reflexão natalina

 

Este foi um ano difícil para a imensa maioria do mundo. Se não diretamente, ao menos indiretamente fomos todos afetados pelas consequências da epidemia de COVID-19, especialmente os mais desprivilegiados e vulneráveis do mundo. Especificamente no Brasil, os privilegiados que viajam internacionalmente, tendo se contaminado no exterior, voltaram ao país trazendo em seus corpos uma mortal armadilha para uma imensa maioria de menos privilegiados vulneráveis. Esses menos privilegiados acabaram se tornando as principais vítimas das vantagens do capitalismo que outros usufruem.


O capitalismo, mais uma vez, mostrou a pior de suas contribuições para o mundo. O mundo da globalização capitalista – independentemente de ser o capitalismo dum Estado autoritário ou o da ilusória iniciativa privada – não apenas ajudou a alastrar um vírus, mas também a dificultar o acesso à cura tornando-a exclusividade de poucos. O mundo da busca incessante pelo lucro, das viagens turísticas internacionais, do consumo desenfreado, da exibição das imagens de riqueza nas vitrines das chamadas redes sociais é também o mundo no qual a vacina – construída, em parte, com o dinheiro arrecadado pelos impostos pagos pelo povo, cuja maioria vive em situação de menor privilégio – está disponível a uns poucos países do mundo.


Sou um otimista, mas não sou tolo. Apesar de – seguindo os mitos do calendário – esperar o melhor para o ano que se inicia, sei que as dificuldades ainda serão imensas para todos, especialmente para aqueles mais vulneráveis entre nós – onde quer que estejamos. Num mundo no qual alguns cidadãos dos países mais ricos do mundo já têm acesso a uma vacina, outros cidadãos – frequentemente nesses mesmos países – sequer têm o que comer ou um teto sobre suas cabeças. Assim, meu otimismo deve ser controlado e crítico.


Mas o que tudo isso tem a ver com o Natal?… Bem, para mim, tudo.


Se o Natal ainda tem algum sentido religioso para os cristãos, então deveria servir como um chamado ao serviço – e por “serviço” me refiro ao que alguns chamariam de “ação política”. Como as celebrações festivas de qualquer maneira estarão muito limitadas este ano, deveriam dar lugar, então, ao contínuo cuidado daqueles mais vulneráveis entre nós (os mais pobres, órfãos, doentes, desabrigados, desenraizados etc), às manifestações de protesto para com as autoridades políticas (e-mails, cartas etc), e ao comprometimento com a [auto]proteção contra a contaminação. E essas ações não podem ser limitadas a uma data festiva; devem ser permanentes.


Resistir à indiferença que se tornou característica do universo capitalista – a cultura do “você tem o que merece” – e construir a mudança (com o cuidado, com o voto, com os protestos, com a recusa ao silêncio corrupto) é melhor do que celebrações festivas de datas especiais com presentes acompanhados dum “Feliz Natal!”. O Natal, afinal, celebra o nascimento dum personagem que teria desafiado as regalias de grupos privilegiados que enriqueciam às custas da exploração dos mais vulneráveis; um personagem que, supostamente, ensinou um caminho de cuidado, perdão e cura. Como poderíamos, então, celebrar o mito do nascimento desse personagem ignorando o que o mesmo supostamente ensinou?


Meu otimismo, assim, é restaurado com um recompromisso para com minha responsabilidade com o bem-estar de meu mundo, dos demais seres humanos, dos meus “pequenos irmãos”. Esse recompromisso pode se manifestar em ações como:

  • exigir dos governantes eleitos que encontrem uma solução e disponibilizem os meios essenciais para que todos os cidadãos e cidadãs tenham acesso aos cuidados necessários;

  • boicotar as empresas e organizações que criam obstáculos para que os mais pobres e vulneráveis tenham acesso à saúde;

  • afastar-se daqueles que colaboram com as redes de desinformação, mentiras e ódio.


Essas, em minha compreensão, são atitudes inseparáveis de minha visão religiosa e política de mundo, e, assim, estão profundamente ligadas ao sentido que dou ao Natal. Jesus de Nazaré, afinal, parece ter sido um homem de ação e não apenas um recitador de orações.


Assim, cuidando uns dos outros e resistindo aos poderes do desprezo pelo valor da vida humana – a vida daquelas pessoas que vivem aqui e agora, à nossa volta – estaremos, de fato, celebrando algo muito mais importante do que uma data simbólica: tornaremos o mundo à nossa volta um domínio divino, construindo o “Reino de Deus” aqui e agora. É esse Natal que me interessa e é esse Natal que desejo a todos – um Natal de recomeço, de reconstrução, dum otimismo que leve à ação.


Que a data na qual se celebra o nascimento dum profeta do “shalom” divino nos inspire também a sermos construtores dum novo mundo, de todas(os) e para todas(os)!


Feliz Natal!


+Gibson

sábado, 14 de novembro de 2020

Religião e Política nas Eleições – Ou: Como nossa imaginação religiosa influencia nossas escolhas políticas

Minha orientação religiosa secularista não é segredo para absolutamente ninguém. Sou um convicto defensor da estrita separação entre Igreja/religião e Estado. De igual maneira, defendo a estrita separação entre a religião e os palanques eleitorais, e considero a instrumentalização política da religião como algo inaceitável num Estado laico. Minha visão religiosa, entretanto, apesar de secularista – e, em minha própria compreensão, humanista –, não deixa de influenciar a forma como compreendo o mundo social e, consequentemente, minhas escolhas políticas.


A religião, para mim, não é divina nem é sobrenatural. É, sim, uma construção humana, enraizada nas estruturas socioculturais e nos contextos históricos nos quais nos encontremos. Nossa “imaginação religiosa” – para apropriar-me, talvez indevidamente, dum clássico neologismo sociológico de C. Wright Mills – tem muito a dizer sobre nosso lugar social, da mesma forma como nossas visões políticas, e tem, obviamente, um reflexo nas escolhas eleitorais.


Esse elo filosófico entre o que se professa religiosamente e em quem se vota pode, obviamente, passar muito próximo do limite ético daquele conceito de laicidade do Estado – quando, por exemplo, se utiliza a filiação/lealdade religiosa como moeda para o voto (é só pensar nos incontáveis “Pastores/as”, “Missionários/as”, “Irmãos/ãs”, “Padres”, etc, que se candidatam a cargos eletivos!) –, mas todos nós, religiosos ou irreligiosos, somos influenciados pela carga ideológica de nosso meio social, consciente ou inconscientemente. Ou seja, independentemente de quem sejamos, todos nós falamos, ouvimos e votamos a partir dum lugar social.


Em se tratando do Unitarismo, nossa história oferece muitos exemplos dessa relação entre religião e política. Os unitaristas, afinal, sempre viram sua fé como uma fé politicamente orientada. Nossas atitudes para com nosso próprio dogma do valor e dignidade humanos, da liberdade absoluta de opinião, do desafio ao autoritarismo político e religioso, do questionamento ilimitado de nossas próprias crenças, tornam nossa tradição religiosa uma tradição socialmente politizante – apesar de não necessariamente partidária, considerando a relativa diversidade de filiações políticas entre nós (de libertários a comunistas, e toda a diversidade entre as duas).


Quando penso nos exemplos do diálogo positivo entre religião e política, no contexto unitarista, não posso deixar de pensar no radicalismo liberal anticonformista de Joseph Priestley, na Inglaterra do século XVIII; na destemida defesa dos direitos das mulheres por Abigail Adams, no período da Revolução Americana, no século XVIII; no radicalismo antiescravagista de Theodore Parker, no abolicionismo barulhento de Samuel J. May e nos esforços antiescravistas de John Quincy Adams, nos EUA do século XIX; no trabalho de Susan Brownell Anthony para que as mulheres pudessem votar e participar da vida política, também nos EUA do século XIX; na labuta de Sandra Ferreira, no Brasil do século XX, pela proteção das mulheres contra a violência doméstica; no imenso esforço de Margaret Barr para construir pontes de diálogo entre diferentes culturas, na Índia do século XX; na liderança de Ethelred Brown do movimento de Humanismo Negro na Igreja Unitarista do Harlem, nos EUA do século XX.


Todos esses unitaristas materializaram suas perspectivas religiosas em suas ações políticas no mundo, em favor de todas as pessoas e não de si próprios ou de outros unitaristas apenas. É nesse sentido que a relação entre religião e política pode ser positiva, mesmo num contexto de separação entre religião e Estado.


Em se tratando da relação entre religião e eleições, nem sempre é fácil manter uma coerência absoluta entre o que professamos e o que escolhemos eleitoralmente. Pessoalmente, me pergunto sempre como escolher um/a candidato/a a qualquer cargo eletivo que defenda pelo menos a maioria de minhas posições quando essas não são as posições das/os candidatas/os disponíveis?


Pessoalmente, observo alguns aspectos relevantes:


  • Quem é a/o candidata/o? Qual o seu histórico político e o de seu partido? Quem faz parte de sua equipe?

  • Quem patrocina sua campanha? E, mais subjetivamente, que interesses estariam por trás desse patrocínio?

  • Quais as suas propostas específicas?

  • Qual o seu comportamento para com seus oponentes políticos? Como desenvolveu sua campanha?

  • O que diz e como a/o candidata/o lida com os temas que mais me interessam:

    • democracia e o Estado Democrático de Direito;

    • honra e respeito ao valor e dignidade humanas;

    • diversidade sociocultural;

    • combate ao racismo, machismo/chauvinismo, xenofobia, homofobia;

    • proteção das crianças e dos adolescentes;

    • proteção do meio ambiente;

    • educação pública, gratuita e democrática de qualidade para todos;

    • ciência;

    • seguridade social;

    • renda básica universal;

    • internacionalismo;

    • paz.



Esses são alguns dos elementos que levo em consideração em minhas escolhas eleitorais e que se relacionam mais diretamente com minhas perspectivas filosóficas e religiosas. A crença ou descrença religiosa da/o candidata/o, sua religiosidade ou irreligiosidade não a/o faz melhor ou pior candidata/o – da mesma forma que sua cor, sua orientação emociono-sexual ou sua identidade de gênero. Sua história de atuação, suas relações com outros atores políticos, suas propostas e as ideias que defende são o filtro que utilizo para selecionar a/o candidata/o para um cargo eletivo.


Votar é se comprometer com o presente e o futuro de toda a nossa sociedade, em toda a sua diversidade. Quando votamos, assumimos a responsabilidade de decidir o que afetará as vidas de mulheres e homens, jovens e velhos, de todas as cores, de todas as des/crenças, de todas as sexualidades, de todas as classes/status sociais; além do que afetará as nossas próprias vidas e as de nossas famílias e amigos. Por esta razão, independentemente de nossas visões políticas ou lealdades partidárias, é importante votar conscientemente.


Vote com segurança e responsabilidade cidadã neste difícil ano de 2020! O futuro de sua comunidade depende de sua escolha!


+Gibson


domingo, 25 de outubro de 2020

Sexualidade, orientação sexual, identidade e espiritualidade

Nós, seres humanos, somos animais sociais e, ao mesmo tempo, relativamente conscientes de nossa individualidade. Carregamos em nós o peso do que herdamos biológica e socioculturalmente, e – graças ao que aprendemos em nosso meio sociocultural – construímos percepções individuais sobre a realidade da qual somos parte. Assim, não somos nem plenamente resultado do meio, nem plenamente autônomos. Somos seres complexos, resultantes duma combinação de herança e de criatividade.


Por conta dessa complexidade, individualmente, não somos “definíveis” como apenas uma coisa. Somos várias coisas ao mesmo tempo: emotivos, inteligentes, espirituais, sexuais etc. Assim, não penso que possamos ser definidos – porque a definição implica uma limitação/circunscrição – unicamente como heterossexuais, homossexuais, bissexuais etc. Cada um de nós é muito mais do que uma descrição de por quem nos sentimos emocional e sexualmente atraídos ou com quem nos relacionamos.


Pessoalmente, nunca gostei dessas adjetivações identitariamente sexualizadas, não porque me envergonhe de mim mesmo, não porque alimente discriminação contra a sexualidade alheia, mas, simplesmente, porque sou muito mais do que apenas um ser sexual. Minha sexualidade não me define – ela é apenas um dos vários elementos que constituem minha personalidade.


Sempre acreditei que, no caso das minorias – apesar de identidades serem importantes para a construção de laços comunitários –, as identidades impostas também servem como instrumentos de discriminação opressora e, consequentemente, como instrumentos de exclusão. Assim, pessoalmente, ser identificado como mizrahi-sefardi, desi, mestiço, gay, ou sei lá mais o quê, diz mais sobre como outros me enxergam do que como eu mesmo me compreendo.


Muitos adolescentes e adultos jovens gays, quando passam pela experiência de “sair do armário”, frequentemente encaram sua sexualidade como o aspecto mais importante de sua personalidade. E isso ocorre, dentre tantas razões, por conta de sua própria descoberta tanto da sexualidade em si quanto da discriminação socialmente associada à homossexualidade – assim como do senso de pertencimento que uma identidade pode oferecer. À medida que se fica mais velho, e se tem mais experiências na vida, aquele adolescente ou adulto jovem pode perceber que aquela definição identitária sexualizada não é suficiente para “definir” sua personalidade – se é que uma personalidade pode ser definida.


A maturidade pode nos mostrar que, além de sexuais, somos seres políticos, somos seres intelectuais, somos seres emotivos, somos seres artísticos, somos seres que carregam todos esses elementos como pequenos tijolos que dão forma ao edifício que é nossa pessoa individual – pessoa esta que, apesar de individual, é moldada num contexto social/coletivo. Isto é, somos únicos e ao mesmo tempo multidão; e essa unidade-multidão também é moldada pela outra “multidão” a partir da qual surgimos como seres humanos.


Minhas atuações – como Ministro de religião ou como professor – têm estado comprometidas com o dogma básico de minha religião, que é a afirmação do valor e da dignidade de cada ser humano e de toda a humanidade. Esse dogma é o meu padrão filosófico e político para minhas relações sociais. O ser humano – enquanto multidão e enquanto individualidade –, em toda a sua diversidade e complexidade, tem um valor e uma dignidade que devem ser honrados e respeitados. E esse valor e dignidade independem de cor, sexo, gênero, orientação emotiva/sexual, aparência, classe/status social, ocupação, ou qualquer coisa que o indivíduo/coletividade tenha feito.


Minha fé está firmemente enraizada nessa convicção. Não em deuses. Não em entes sobrenaturais. Mas no ser humano – em seu valor e em sua dignidade. É só nesse contexto que ouso utilizar a metáfora “Deus”. Minha eticidade está enraizada na tradição filosófica que afirma o ser humano como fim, não como meio.


Assim, não há lugar, em minha visão de mundo, para [auto-]ódio baseado em orientação emotiva/sexual. Não há lugar para negar a outro ser humano sua humanidade em nome dum fantasioso deus que espelha nossos próprios preconceitos. Dessa forma, a ética sexual tem a ver com a dignidade humana, não com as supostas maldições de deuses. O respeito ao valor, à dignidade e à liberdade (na forma da autonomia consciente) do ser humano e de cada indivíduo é o que, em minha visão, deve guiar a forma como lido com a sexualidade, assim como com qualquer outro tipo de relação entre seres humanos. Pouco importa a cor da pele, a nacionalidade, a língua, a identidade de gênero ou a orientação emociono/sexual.


+Gibson


terça-feira, 29 de setembro de 2020

Inauguração do novo espaço da Igreja Unitária do Rio de Janeiro

A inauguração do novo espaço da IGREJA UNITÁRIA DO RIO – Rua Carius, 241, Campo Grande, Rio de Janeiro, RJ – ocorrerá em 10 de outubro de 2020, sábado, com dois eventos:


  • 16h às 17h30 – Workshop sobre Liberdade Religiosa;

  • 18h às 19h30 – Celebração.


Para mais informações, visite a página da igreja no Facebook: <https://www.facebook.com/igrejaunitariadorio/>


ou seu website, em: <https://igrejaunitariadorio.org/>.




sexta-feira, 31 de julho de 2020

Morte e o que vem depois: uma resposta às questões sobre uma suposta vida pós-mortal

Já escrevi muito que minha fé/espiritualidade se centra neste mundo e, por isso, chamo-a de “materialista”. Com isso quero dizer que a vida – e sua razão de ser – encontra-se neste mundo; ou seja, ter “fé”, em minha compreensão, significa ver-me como parte integrante deste mundo físico, material, concreto: assim, meu viver e agir é no físico/material/concreto, através do físico/material/concreto, pelo físico/material/concreto.

Sei o quanto dizer isso pode soar controverso para religiosos em geral, das mais diferentes tradições. Para muitos, afinal, religião, fé e espiritualidade referem-se ao sobrenatural, àquilo que está fora do mundo: e isso é bem demonstrado naquelas figuras discursivas que criam um conflito entre o que chamam de “material” e o que chamam de “espiritual” – identificando o espiritual como oposto do material.

Para muitos, das mais diferentes tradições religiosas, haveria um domínio invisível, habitado por entidades espirituais. Para essas tradições, apenas o corpo morre, as pessoas possuiriam um espírito – independentemente de ser esse o termo que utilizem ou outro qualquer – que continuaria vivo naquele domínio invisível. E é dessa crença num domínio espiritual invisível que advém a preocupação cristã, por exemplo, com o tema da “salvação”. “Céu” e “inferno” seriam como que duas localidades distintas nessa geografia da dimensão espiritual, e a chegada a um dos dois seria o resultado das coordenadas seguidas pelo andarilho humano – a recompensa ou punição dada pela rota percorrida na vida.

Uma outra versão dessa preocupação com uma existência pós-mortal compreende que o espírito humano passe por um processo de purificação, de aprendizagem ou de expiação através de múltiplas reencarnações, voltando ao mundo material com um outro corpo – ou em alguma variação dessa ideia.

Eu, como já deveriam saber a partir de tudo que falo e escrevo, penso nisso tudo como uma narrativa metafórica. A linguagem metafórica dum domínio invisível, de céu e inferno, de recompensas e punições pós-mortais, entretanto, não faz nada relevante por mim. A metáfora, a lenda, a promessa, que para muitos parece reconfortante, não me torna uma pessoa melhor, não me ensina a viver, nem torna o mundo melhor ou pior para mim – em outras palavras, é indiferente.

Não se trata de acreditar ou desacreditar no mito dum mundo invisível e na continuidade duma vida consciente noutra dimensão. Trata-se, sim, de uma absoluta não preocupação com esse tema, duma completa irrelevância do mesmo para minha fé e práticas espirituais/religiosas. (Espiritualidade, para mim, a propósito, refere-se à maneira como escolho ver, compreender e experienciar a existência, e não a alguma ligação com uma suposta realidade imaterial.)

A verdade é que não sei o que acontece com as pessoas após a morte. Não sei se, além do corpo e suas funções e fenômenos, possuímos uma parte invisível que permanecerá viva após a morte. E não me importo com isso.

A experiência no/do/pelo mundo concreto, aqui e agora, que é o que chamo de experiência espiritual (fé/religião), é graciosa – isto é, é vivificante no sentido mais amplo, porque é o que posso conhecer da existência, a breve e terminal existência concreta. É nesse mundo concreto, aqui e agora, que posso experienciar o todo de tudo, que posso conhecer o Divino e o humano, o sacro e o profano, o eterno e passageiro. É aqui e agora que posso amar alguém. É para o aqui e agora que posso e devo fazer o que deve ser feito. Não num suposto mundo pós-mortal.

Minha fé, assim, toma a brevidade da vida humana – na verdade, a brevidade da vida de todo o Universo, de acordo com cosmologia científica moderna – como elemento indispensável à minha espiritualidade. Como a vida é breve, e como não espero recompensas pós-mortais para como a vivo, vivê-la plenamente se torna o ponto central. Assim, divinizar a vida – trazer o Divino à experiência da vida – torna-se um exercício espiritual. Esse “divinizar” se expressa, na linguagem cristã, por exemplo, na busca pela justiça, pela misericórdia, pela paz, pelo cuidado com o estrangeiro e o mais pobre, pela defesa do mais fraco etc. É isso que quero dizer com uma espiritualidade “materialista”.

Quando penso naquelas pessoas que amava e que morreram, penso em como elas, de alguma forma, impactaram minha vida e de outras pessoas. Não sinto nenhuma necessidade de pensar que estejam numa outra dimensão. Meu conforto está em saber que [1] elas marcaram as vidas de outras pessoas e criaturas, e [2] seus corpos continuarão a ser fonte para a origem de mais vida neste mundo e continuarão a ser parte do ciclo de criação do Universo do qual somos parte. Essa é minha compreensão do que seja uma “vida pós-mortal”.

Essa não é uma compreensão que funciona para todos, mas funciona para mim. É uma compreensão coerente com minha teologia e com minha forma de compreender o mundo. Admiti-la é ser intelectualmente íntegro, e essa integridade intelectual comigo mesmo encontra suas raízes em minha formação religiosa.


+Gibson



quinta-feira, 16 de julho de 2020

Religioso liberal secularista-humanista?


É frequente a reação de espanto quando pessoas de fora de minha tradição religiosa descobrem que sou um ministro religioso. Seu espanto se dá por não entenderem como minha “visão de mundo” se encaixa na ideia de “religião” que têm – e, consequentemente, na ideia resultante do que seria tanto um praticante quanto um “ministro” de religião.

É para essas pessoas que escrevo agora.

Venho duma formação religiosa liberal de persuasão secularista-humanista. Sou um ministro unitarista, e fui religiosamente educado nas culturas do Cristianismo e do Judaísmo liberais. Questionar, duvidar, examinar criticamente e não aceitar explicações sobrenaturais para fenômenos naturais foi parte dessa educação religiosa que recebi. Assim, “religião” ou “fé”, para mim, não possuem o sentido de sobrenaturalidade e dogmatismo que frequentemente recebem no imaginário popular – mesmo entre outros que receberam uma formação acadêmico-científica.

Os termos “secularista” e “humanista”, em seu mais básico sentido, se referem – de acordo com um dos teólogos que mais me influenciaram, e que ficou equivocadamente conhecido como uma das vozes da “teologia da morte de Deus”, Gabriel Vahanian – à noção de que este mundo é o todo da realidade. Em outro aspecto, referem-se, também, àquele velho anseio unitarista de separação entre Igreja/religião e Estado; isto é, de instituições estatais laicas – governo, justiça, escola etc.

Isso significa, dentre tantas outras coisas, que minha fé se centra neste mundo e nas relações que possuo com os seres, coisas, processos e percepções deste mundo. Significa que não busco explicações no sobrenatural para os fenômenos da vida. Significa que não acredito que haja necessidade duma fé religiosa para que vivamos uma vida ética. Significa que não me preocupo com uma suposta existência fora deste mundo – isto é, com uma suposta continuidade da vida após minha morte numa outra dimensão ou neste mundo como outra pessoa. Neste sentido, “secularista” e “humanista” tornam-se, para mim, sinônimos.

Abraçar uma compreensão secularista e humanista, entretanto, não é o mesmo que dizer que sou ateu. Talvez seja mais exato dizer que não sou um “teísta do senso comum” – isto é, não acredito numa deidade antropomorfa sobrenatural que controla o Universo e os destinos de vivos e mortos a partir duma outra dimensão espácio-temporal. Não acredito em seres sobrenaturais que povoem regiões invisíveis do Cosmos, independentemente de como os chamem. E essa [des]crença, a propósito, não foi causada por nenhuma tragédia, decepção ou frustração pessoal: foi-me ensinada por minha própria religião.

Minha não adesão ao que chamei de teísmo do senso comum, entretanto, não é sinônimo de ateísmo (seja do tipo afirmativo ou negativo). Como já afirmei inúmeras vezes, em variadas ocasiões, minha compreensão do Divino é, apenas, diferente daquelas abraçadas pelos cristãos que abraçam uma compreensão dum Deus Pessoal – e todas as consequências teológicas de tal compreensão.

Na verdade, a [des]crença, em si, sequer chega a ser uma preocupação para mim. E isso porque as crenças ou percepções espirituais/religiosas, em minha compreensão, são moldadas por nossas experiências no mundo. Assim, nossos relacionamentos, nossa educação, nossa [i]maturidade, nossas experiências com as coisas mais simples e/ou mais complexas, etc, podem nos oferecer permanentemente novas perspectivas sobre nós mesmos, sobre o mundo e sobre o que nos é desconhecido.

Isto é, não há compreensão que permaneça comigo ou com outros para sempre. Mesmo que imperceptivelmente, estamos sempre alterando as formas como compreendemos certas questões em nossa visão de mundo – e, neste caso, na visão que tenhamos sobre Deus e/ou religião, por exemplo. Assim, a forma como eu, pessoalmente, articulo minha compreensão de minha “espiritualidade” não é permanente ou imutável – e, novamente, por “espiritualidade” não me refiro a uma suposta dimensão sobrenatural da realidade, mas, antes, à maneira como experiencio a existência.

Identificar-me como um religioso de persuasão humanista, ademais, significa dizer que os únicos que podem estabelecer justiça e paz neste mundo somos nós mesmos. Ninguém mais. Os únicos que podem resolver os problemas que criamos no mundo social ou natural somos nós mesmos. Ninguém mais. Violência, guerras, fome, pobreza, poluição e os males que a acompanham, autoritarismo, analfabetismo, desemprego e todos os problemas gerados no meio ambiente pelas ações antrópicas só podem ser resolvidos por nós mesmos. Ninguém mais.

Sim, é verdade que oro/rezo por paz, justiça e pelo bem do mundo. Mas minhas orações são uma metáfora do desejo que deve nos levar ao esforço de transformar o mundo através de nossos próprios esforços coletivos e individuais. É um símbolo da esperança que move minha ação no e pelo mundo, aqui e agora.

Chamo isso de religião/espiritualidade adulta e responsável. É o tipo de religião na qual acredito e o tipo de espiritualidade que me esforço para viver. Religião e espiritualidade, para mim, devem se manifestar numa eticidade intelectualmente íntegra – mesmo que não corresponda ao tipo de mito de “sobrenatural” ao qual outros aderem.

Assim, minha compreensão do Cristianismo pode, sim, ser chamada de secularista e humanista – ética e espiritual, sim, mas também profundamente materialista (ao menos na forma como compreendo este termo).

+Gibson



sexta-feira, 17 de abril de 2020

Ciência e religião: uma breve resposta a Eduardo C., MJB e Solange


Resolvi responder, hoje, às questões levantadas por três leitores que, de alguma forma, se referem à relação entre ciência e religião em minha experiência pessoal. Tentarei ser o mais direto e breve possível para que não fiquem com a impressão – como afirmou um daqueles leitores – de que esteja “tentando escapar das perguntas”.

Para começar, poderia afirmar o óbvio: a ciência e a religião lidam com aspectos distintos da realidade humana. Para mim, isso vai um pouco além: a religião não me serve como resposta para “os mistérios do Universo”, nem, muito menos, como “conforto” para alguma coisa. Entretanto, porque minha religião está profundamente entrelaçada à minha imaginação filosófica, ela se associa ao conhecimento científico que adquiro para moldar minha visão de mundo.

Como um unitarista, a religião, para mim, tem um sentido muito mais materialista do que para pessoas de outras tradições religiosas. Isto é, em minha vida pessoal, a religião tem muito mais a ver com práticas no mundo – com base numa ética religiosa – do que especificamente com crenças sobre um suposto porvir metafísico. Tem a ver com fazer e não com acreditar – especialmente se esse “acreditar” se referir a abraçar ideias inquestionáveis.

Já discuti, aqui, muito a questão de se acredito na existência de Deus. Para responder de forma direta: penso que a própria questão é/foi formulada de forma equivocada. Não acredito na existência de Deus porque existência implica materialidade, fisicalidade; e não acredito numa divindade material, física, nem pessoal. Acredito, sim, na Realidade de Deus – que se refere mais à relação humana com a ideia de Deus do que com Deus propriamente.

Deus, para mim, é uma metáfora. Ser uma metáfora implica na multiplicidade de interpretações, já que metáforas apontam para realidades/aspectos diferentes para pessoas diferentes. Obviamente, a divindade foi retratada pelos hebreus e cristãos do passado como um ser, uma entidade, com características de um soberano que habita um reino em algum lugar no espaço e criou e controla o mundo habitado pelos humanos. Esse é o deus produto da cultura de onde surgiram as tradições jordânicas (judaísmos, cristianismos, islãs, babismos etc). É o deus que criou tudo do nada, que causava os terremotos e as chuvas, que destruía cidades com incêndios etc. É o mesmo deus que se comportava como um humano amoroso e ciumento, perdoador e vingativo.

Eu nasci, cresci, fui educado (inclusive em minha fé religiosa) e vivo num mundo urbano onde existe uma ciência desenvolvida – se comparado ao mundo rural palestino de dois milênios atrás. Naquele mundo, pessoas que nascessem com diabetes, como eu, morreriam. No meu mundo, a insulina foi isolada e passou a ser fabricada em massa na década de 1920. Naquele mundo antigo, as nuvens eram o limite do Universo. No meu mundo, humanos – graças ao conhecimento científico – já começam a explorar outros planetas.

Ou seja, uma pessoa educada na mesma cultura que eu não poderia realmente esperar que eu fosse obrigado a abraçar a visão de mundo – o que inclui a noção de Deus – que as pessoas daquela época abraçavam. Não faria o mínimo sentido.

Assim, a Bíblia – que em minha tradição não é sinônimo de Cristianismo, já que os Cristianismos se baseiam em muito mais do que apenas na Bíblia – não constitui as lentes através das quais enxergo o mundo. Os textos bíblicos, contraditórios e incoerentes como são em sua historicidade, são apenas testemunhos das experiências que os primeiros hebreus e os primeiros cristãos tiveram em sua busca pelo Sagrado. A Bíblia não é um livro de ciência, nem é um oráculo de onde se possa tirar respostas para todas as questões possíveis. É, sim, para mim, um registro da busca pela compreensão daquela metáfora chamada “Deus”, construídos e moldados – tanto o registro quanto a compreensão – pelas culturas nas quais emergiram.

Como não é na Bíblia onde encontro respostas para minhas questões sobre a origem do Universo e da humanidade, essas questões são respondidas pela ciência. Meus estudos nos campos da Física e da Geografia me ajudam a construir questões e a alcançar respostas sobre a realidade objetiva. Meus estudos nos campos das Ciências Sociais, da História e da Filosofia me ajudam a fazer o mesmo quanto à vida social. A Bíblia, lida a partir de minha tradição, me ajuda a construir uma compreensão ética sobre a humanidade e sobre como me relacionar com outros seres humanos e com os demais seres n/deste mundo – além de me ajudar a construir minha compreensão sobre a Divindade (novamente, quando lida a partir de minha tradição e de minhas fontes para a compreensão do mundo). Dela saem os princípios que, lidos a partir de meu lugar sociocultural, moldam minha consciência religiosa.

Sobre a ciência, penso que Marcelo Gleiser consegue explicá-la muito bem quando escreve que “Ciência não é um sistema de crenças, mas um sistema de conhecimento desenvolvido com o objetivo de organizar a realidade à nossa volta” (2006, p. 336). Assim, crença, num sentido dogmático de não poder ser questionada, não tem muito a ver com ciência. Na verdade, sequer tem necessariamente a ver com religião – já que nem todas as tradições religiosas, incluindo o Unitarismo, mantêm-se em torno de dogmas inquestionáveis, sendo até teologicamente muito fluidas (os Judaísmos Reformista e Reconstrucionista, o Quakerismo, além da própria tradição Unitarista, são exemplos dessa fluidez teológica).

Tendo escrito tudo isso, já deve ficar óbvio que aceito as descobertas científicas. Assim, a evolução é a maneira como compreendo a origem humana – enquanto entidade física. Essa compreensão científica em nada contradiz minha fé, já que não abraço uma crença religiosa que se baseie no teísmo sobrenaturalista de algumas formas “ortodoxas” de Judaísmo ou Cristianismo.

Grande abraço a todos!

+Gibson


REFERÊNCIA

GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo: dos Mitos de Criação ao Big-Bang. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

sábado, 15 de junho de 2019

Espiritualidade e Religião sem Deus? – Uma resposta a Eduardo


A bibliografia dum curso que ensino sobre história das religiões inclui um texto que afirma categoricamente que a diferença entre a religião e a ciência está no fato de a primeira exigir “fé submissa” numa divindade e no sobrenatural. Apesar de eu discordar daquela afirmação e de saber, por experiência própria, que há religiões que não se focam numa suposta realidade sobrenatural e que, assim, não exigem uma “fé submissa” numa divindade e no sobrenatural, ainda incluo tal texto em minhas aulas para que meus alunos possam refletir acerca da limitada compreensão que ainda temos sobre a experiência espiritual/religiosa humana.

Não sou um adepto do teísmo sobrenatural. Com isso quero dizer que, em minha compreensão e experiência, a crença/fé em Deus – ou em deuses – não é necessária para que experienciemos o transcendental, o numinoso, o espiritual, o místico, ou seja lá que outro termo utilizemos para nos referirmos àquela “dimensão misteriosa” tradicionalmente tratada pelas religiões. Essa “dimensão misteriosa” pode ser experienciada através das artes, da ciência, dos esportes, da filosofia, do trabalho, da relação com e do serviço aos outros seres deste mundo etc. Assim, se a religião representa um processo de “religação” com algo, esse “algo” pode ser a própria realidade palpável que experienciamos em nosso dia a dia – sem absolutamente nenhuma necessidade de crença no e devoção ao invisível. E, consequentemente, a própria religião pode ser identificada em atividades que não correspondem àquelas tradicionalmente realizadas em templos, igrejas ou outros “lugares sagrados”.

Dizer que não sou adepto do “teísmo sobrenatural” (termo tão usado pelo finado professor Marcus J. Borg) não significa dizer que sou ateu; significa que compreendo “Deus” de formas diferentes daquelas usualmente abraçadas por “teístas” tradicionais; significa também que, para mim, o “sobrenatural” é indiferente, que não é essencial para a forma como encaro o mundo e vivo minha vida. Por exemplo, se e quando faço algo que julgo ser “bom” e “certo”, não o faço porque temo a punição ou espero a recompensa de Deus, faço-o porque – para mim – viver com eticidade é como que o “cerne” da espiritualidade.

Nas culturas influenciadas pelas tradições jordânicas (ou, se preferir, “abraâmicas” – uso “jordânicas” como uma referência geográfica à origem dessas tradições) – especialmente os Judaísmos, os Cristianismos e os Islamismos –, pensar em religião equivale a pensar no(s) Deus(es) jordânico(s) – ou seja, significa pensar no que as formas ortodoxas dessas religiões jordânicas têm ensinado sobre Deus. Assim, as noções de espiritualidade, religião e mesmo Divindade têm sido, em nossa cultura, aprisionadas às compreensões ditas ortodoxas dos Judaísmos, dos Cristianismos e dos Islamismos. Esse aprisionamento é levado a cabo, infelizmente, inclusive pelo próprio discurso acadêmico sobre religião.

Por conta disso, é importante, para mim, enfatizar que as concepções ortodoxas de religião – e estou pensando especificamente nas tradições jordânicas – não são as únicas formas historicamente válidas de compreender Deus, fé, religião, espiritualidade, o numinoso, o transcendental etc. Todas as formas religiosas, ortodoxas ou heréticas – na verdade, todo o conhecimento e práticas humanas – são produtos históricos, condicionados às diferentes circunstâncias nas/das quais emergiram e se desenvolveram. O próprio Deus do teísmo sobrenatural – assim como o do meu tipo de compreensão – é um produto cultural, histórico, uma construção humana.

Como posso ser um religioso e dizer isso? Como ouso me dizer “cristão” e afirmar que Deus é uma construção humana, um produto da cultura?

Isso, obviamente, tem a ver com minhas próprias circunstâncias, com minha própria história e formação. Minha própria tradição religiosa me ensina que duvidar e questionar é necessário para construir uma fé relevante. Por isso, declarar crenças que não se conciliem com tudo o que já sei ou que julgo saber sobre o Universo representaria uma falta de integridade intelectual (=espiritual) de minha parte. Essa é uma das razões básicas pelas quais compreender o domínio numinoso de forma agnóstica, como o faço, não representa um problema para mim.

Como já disse e escrevi antes, creio na Realidade de Deus – apesar de não acreditar na existência dum Deus pessoal que governe monarquicamente o Universo a partir dum ponto específico do cosmos. Deus representa, para mim, uma Realidade com a qual me relaciono, mas que não sei quem/o que é. Essa Realidade pode se fazer ou se faz presente em meus relacionamentos com outras pessoas, em minha relação com o mundo, em meu trabalho, no entretenimento, em minha vida religiosa etc. Não finjo ser capaz de explicar de forma coerente essa Realidade ou a forma como a experiencio. Deus, assim, em minha compreensão e experiência, é uma metáfora – e não uma entidade objetiva.

Ora, metáforas são importantes para a construção do conhecimento, para a interpretação do mundo. Não são, contudo, “essenciais”, indispensáveis. Da mesma forma, se Deus é uma metáfora, e a religião é uma forma de conhecimento, uma forma de interpretação da experiência humana, então Deus não é essencial ou indispensável para a experiência religiosa.

Mas isso, claro, depende de (a) quem, quando e onde perguntar. Essa é minha perspectiva, até hoje pelo menos – a perspectiva dum cristão agnóstico religioso. Se as mesmas questões sobre Deus, espiritualidade e religião forem feitas a outra pessoa, você certamente terá respostas bem diferentes das que lhe ofereço aqui.

Grande abraço!

+Gibson


sábado, 22 de dezembro de 2018

Jesus, migração, refúgio: o espírito da celebração do Natal

Nunca escondi que o Natal, mais do que qualquer outra data do calendário cristão, me fascina. E isso porque, para mim, o Natal carrega em si elementos que ecoam em minha memória elementos de minha própria história pessoal, e porque, nesta celebração, cristãos podem encontrar um aspecto em comum com pessoas das mais diferentes tradições de fé, especialmente com seus irmãos judeus e muçulmanos: a relação entre a narrativa natalina e a memória da diáspora/migração.

A tradicional narrativa natalina, independentemente de sua possível não factualidade, fala sobre uma família que foge de sua terra de origem para um país estrangeiro – o Egito – em busca de proteção. Seu filho, o recém-nascido Jesus, tem sua vida ameaçada e seus pais buscam abrigo numa terra onde esta ameaça específica não esteja presente. Assim, a família de Jesus, como tantas outras famílias de todos os tempos e culturas, passa pelo desafio do desenraizamento – de, metaforicamente, “arrancar suas raízes” de sua terra de origem –, migrando em busca duma situação mais favorável.

Esse elemento da narrativa cristã do Natal envolve toda a compreensão que os seguidores posteriores de Jesus construirão a seu respeito. Enquanto criança, Jesus – como Noé, Ló, Abraão, Jacó, José, Moisés – é moldado pela experiência migratória. Quando adulto, experienciará outra migração, saindo de sua Galileia de origem para desempenhar sua missão profética na Judeia, passando pela Samaria. Mais tarde, a maioria de seus seguidores não hebreus lhe atribuirão uma identidade migratória mais “divina”, quando começam a ensinar que ele era o filho de Deus que descera dos céus para se encarnar entre os homens. Assim, Jesus experiencia, na narrativa cristã, uma dupla migração: [I] uma migração divina, descendo do domínio celestial para o terrestre; e [II] uma migração terrena, buscando refúgio no Egito e, posteriormente, saindo da Galileia rumo à Judeia.

É uma grande pena que muitos cristãos tenham ignorado esse aspecto humano da narrativa sobre Jesus. Num mundo cada vez mais marcado pelas experiências de emigrantes/imigrantes e refugiados, aqueles que se dizem seguidores do refugiado nazareno deveriam enxergá-lo nas faces dos desenraizados de hoje.

A conexão entre a experiência migratória e a narrativa religiosa não é exclusiva dos cristãos. Os patriarcas e profetas doa antigos israelitas também foram moldados pelo exílio e pelo retorno. Igualmente o foram o profeta do Islã e os primeiros muçulmanos. Nas três grandes tradições, a própria existência humana na Terra e a busca pelo divino têm uma relação com a experiência migratória: por exemplo, nas ideias de que a vida humana na Terra seja um momento transitório de preparação para uma futura eternidade num reino divino, podemos encontrar traços dessa influência. Assim, migração, exílio, desenraizamento e a busca pelo “lar” pavimentam, de certa forma, o ethos das tradições jordânicas (judaísmos, cristianismos, islãs, babismos etc).

O que é importante, para mim, é celebrar na narrativa natalina esse lembrete de que aquele de quem me declaro ser discípulo – Jesus de Nazaré – compartilhou comigo e com tantos outros a experiência da migração, da diáspora (independentemente de eu estar mais interessado na experiência humana do que em mitos celestiais, e de eu estar ciente de que muito do que os evangelistas relataram provavelmente não ser factual). Assim, para seguir seu caminho, me torno obrigado a atentar para aquelas e aqueles que, como ele, foram desenraizados e que buscam um lar numa “terra estrangeira” (que pode, também, ter um sentido metafórico).

Minha oração é que possamos enxergar nas faces dos imigrantes, refugiados, estrangeiros, forasteiros – literal ou metaforicamente –, a face do menino e do homem nazareno, e – por que não? – a face do profeta ou do filho de Deus que vem morar entre os humanos. Essa, para mim, é a missão da celebração natalina.

Feliz Natal a todas e todos!

+Gibson


segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Sobre a vitória de Jair Bolsonaro (2)

Tendo exposto minhas preocupações e desconforto com o modo como qual o candidato se tornou Presidente eleito, resta-me apenas fazer algumas sugestões àqueles que não votaram em Jair Bolsonaro.

É importante, para mim, afirmar o óbvio: Jair Bolsonaro, independentemente dos sentimentos que possamos ter a respeito de seu comportamento e falas como Deputado e como candidato à Presidência da República Federativa do Brasil, foi eleito Presidente pela vontade da maioria dos votos válidos.

Reconhecer esse fato é reconhecer que aceitar o processo democrático compreende aceitar os resultados que não nos agradam. No processo eleitoral democrático sempre haverá vencedores e perdedores e, desta vez, Jair Bolsonaro e as elites e massas por trás de sua vitória ganharam o processo – mesmo que tenham demonstrado, inúmeras vezes, que não apreciavam o sistema democrático. Ele é o Presidente que assumirá as rédeas do Executivo Federal a partir de 1º de janeiro próximo.

A glória da democracia é que ela permite vozes discordantes e, assim, as cidadãs e os cidadãos, organizados em partidos políticos e em movimentos sociais, podem exercer pressão sobre o Executivo e o Legislativo, cobrando a proteção de seus direitos civis – que o candidato Bolsonaro parecia ameaçar.

Também é possível que o agora Presidente eleito seja, ele mesmo, amansado pelo establishment político – como o foi o ex-Presidente Lula da Silva, por exemplo. Seu comportamento anterior poderá ser aos poucos “planaltizado”, a partir de sua posse, por aqueles com quem trabalhará. Essa é, ao menos, minha esperança.

Seja como for, numa democracia, as vozes minoritárias não podem ser caladas pelas vozes da maioria – e vice-versa. Deve-se aceitar os resultados das eleições – isto é, supondo que nenhum crime tenha sido cometido ao longo da campanha (e estou agora pensando no caso noticiado pela Folha de São Paulo e que, supostamente, ainda será investigado pela Polícia Federal e pela Justiça Eleitoral) – e isso implica aceitar a vitória de Bolsonaro. Mas a relação do cidadão que nele não votou – especialmente daqueles que votaram contra ele (há uma diferença clara entre ter votado em Haddad e ter votado contra Bolsonaro) – não se encerra com a aceitação de sua vitória.

Resta-nos, agora mais do que nunca – especialmente daqueles na educação, na comunicação e na Igreja/religião –, ajudar na construção duma compreensão social ampla do que é a democracia e do que é um Estado Democrático de Direito; a defesa da liberdade e dos direitos de absolutamente todos, especialmente daqueles mais vulneráveis numa sociedade que se dividiu insanamente; o esforço pela construção da paz social, através do diálogo, de todas as formas possíveis.

O Brasil e as brasileiras e brasileiros, afinal de contas, são mais importantes do que a pessoa e os grupos que os governam. Os cidadãos podem e devem elevar suas vozes e trabalhar pela democracia e por seus direitos civis se esses forem ameaçados.

+Gibson