Este foi um ano difícil para a imensa maioria do mundo. Se não diretamente, ao menos indiretamente fomos todos afetados pelas consequências da epidemia de COVID-19, especialmente os mais desprivilegiados e vulneráveis do mundo. Especificamente no Brasil, os privilegiados que viajam internacionalmente, tendo se contaminado no exterior, voltaram ao país trazendo em seus corpos uma mortal armadilha para uma imensa maioria de menos privilegiados vulneráveis. Esses menos privilegiados acabaram se tornando as principais vítimas das vantagens do capitalismo que outros usufruem.
O capitalismo, mais uma vez, mostrou a pior de suas contribuições para o mundo. O mundo da globalização capitalista – independentemente de ser o capitalismo dum Estado autoritário ou o da ilusória iniciativa privada – não apenas ajudou a alastrar um vírus, mas também a dificultar o acesso à cura tornando-a exclusividade de poucos. O mundo da busca incessante pelo lucro, das viagens turísticas internacionais, do consumo desenfreado, da exibição das imagens de riqueza nas vitrines das chamadas redes sociais é também o mundo no qual a vacina – construída, em parte, com o dinheiro arrecadado pelos impostos pagos pelo povo, cuja maioria vive em situação de menor privilégio – está disponível a uns poucos países do mundo.
Sou um otimista, mas não sou tolo. Apesar de – seguindo os mitos do calendário – esperar o melhor para o ano que se inicia, sei que as dificuldades ainda serão imensas para todos, especialmente para aqueles mais vulneráveis entre nós – onde quer que estejamos. Num mundo no qual alguns cidadãos dos países mais ricos do mundo já têm acesso a uma vacina, outros cidadãos – frequentemente nesses mesmos países – sequer têm o que comer ou um teto sobre suas cabeças. Assim, meu otimismo deve ser controlado e crítico.
Mas o que tudo isso tem a ver com o Natal?… Bem, para mim, tudo.
Se o Natal ainda tem algum sentido religioso para os cristãos, então deveria servir como um chamado ao serviço – e por “serviço” me refiro ao que alguns chamariam de “ação política”. Como as celebrações festivas de qualquer maneira estarão muito limitadas este ano, deveriam dar lugar, então, ao contínuo cuidado daqueles mais vulneráveis entre nós (os mais pobres, órfãos, doentes, desabrigados, desenraizados etc), às manifestações de protesto para com as autoridades políticas (e-mails, cartas etc), e ao comprometimento com a [auto]proteção contra a contaminação. E essas ações não podem ser limitadas a uma data festiva; devem ser permanentes.
Resistir à indiferença que se tornou característica do universo capitalista – a cultura do “você tem o que merece” – e construir a mudança (com o cuidado, com o voto, com os protestos, com a recusa ao silêncio corrupto) é melhor do que celebrações festivas de datas especiais com presentes acompanhados dum “Feliz Natal!”. O Natal, afinal, celebra o nascimento dum personagem que teria desafiado as regalias de grupos privilegiados que enriqueciam às custas da exploração dos mais vulneráveis; um personagem que, supostamente, ensinou um caminho de cuidado, perdão e cura. Como poderíamos, então, celebrar o mito do nascimento desse personagem ignorando o que o mesmo supostamente ensinou?
Meu otimismo, assim, é restaurado com um recompromisso para com minha responsabilidade com o bem-estar de meu mundo, dos demais seres humanos, dos meus “pequenos irmãos”. Esse recompromisso pode se manifestar em ações como:
exigir dos governantes eleitos que encontrem uma solução e disponibilizem os meios essenciais para que todos os cidadãos e cidadãs tenham acesso aos cuidados necessários;
boicotar as empresas e organizações que criam obstáculos para que os mais pobres e vulneráveis tenham acesso à saúde;
afastar-se daqueles que colaboram com as redes de desinformação, mentiras e ódio.
Essas, em minha compreensão, são atitudes inseparáveis de minha visão religiosa e política de mundo, e, assim, estão profundamente ligadas ao sentido que dou ao Natal. Jesus de Nazaré, afinal, parece ter sido um homem de ação e não apenas um recitador de orações.
Assim, cuidando uns dos outros e resistindo aos poderes do desprezo pelo valor da vida humana – a vida daquelas pessoas que vivem aqui e agora, à nossa volta – estaremos, de fato, celebrando algo muito mais importante do que uma data simbólica: tornaremos o mundo à nossa volta um domínio divino, construindo o “Reino de Deus” aqui e agora. É esse Natal que me interessa e é esse Natal que desejo a todos – um Natal de recomeço, de reconstrução, dum otimismo que leve à ação.
Que a data na qual se celebra o nascimento dum profeta do “shalom” divino nos inspire também a sermos construtores dum novo mundo, de todas(os) e para todas(os)!
Feliz Natal!
+Gibson