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Há alguns dias atrás conversava com um missionário “evangélico” que veio a uma atividade que realizo mensalmente com jovens de minha comunidade. Ele se interessou em saber a razão de pessoas como eu, cristãos liberais, permanecerem ligados ao cristianismo em vez de simplesmente abandoná-lo (ele parecia ver-me, assim como aos membros de minha comunidade de fé, como um “herege” - no sentido geralmente atribuído à palavra, não tendo compreendido o uso metafórico que faço da mesma em alguns de meus discursos - , então vi-me obrigado a explicar-lhe a diferença entre meu uso da palavra “herege” e o uso que os ditos cristãos tradicionais faziam da mesma).
Sua pergunta não me surpreendeu nem um pouco, já que ela apenas refletia a perspectiva simplista dominante em nossa sociedade, na qual a visão do cristianismo (seja católico ou protestante) é monolítica, ou seja, ser cristão é simplesmente crer numa lista específica de afirmações e ser parte de uma determinada comunidade religiosa, e estar submetido às regras impostas por tal comunidade.
Sua voz reproduzia simplesmente o discurso que já estou acostumado a ouvir de outros cristãos que afirmam que não sou digno de identificar-me como cristão por não crer nesta ou naquela doutrina apregoada por este ou aquele credo, este ou aquele texto bíblico, esta ou aquela confissão, este ou aquele consenso, esta ou aquela compreensão particular do que seja o cristianismo. Suas perguntas reproduziam a esquizofrenia dogmática dos evangelicais fundamentalistas e conservadores que apregoam que sou um “falso profeta” ou um “anticristo” por ensinar o que chamam de falsas doutrinas, e que serei punido com o “inferno” por “separar” pessoas de Deus - como se qualquer pessoa tivesse o poder de “separar pessoas de Deus” (parecem não conhecer o texto de Romanos 8:38-39 – um belíssimo e poético texto, à propósito!).
Essas pessoas, ou esses grupos de pessoas, abraçam uma visão bem diferente da identidade cristã, ou seja, do que é ser cristão, daquela abraçada por minha corrente teológica.
Sua compreensão da identidade cristã poderia ser comparada com um estereótipo do que seja ser um brasileiro: um amante de samba, que come feijoada ou churrasco no almoço de domingo depois de ir à praia, que bebe água-ardente, dorme numa rede, e que mal pode esperar pelo carnaval; alguém que tenha um sobrenome português, e que tenha o idioma português como língua materna, e que se enquadre num perfil “étnico” padrão; alguém semi-alfabetizado ou com um nível de instrução pouco elevado; alguém adepto do catolicismo, do evangelicalismo pentecostal, do espiritismo kardecista ou de alguma tradição afro-brasileira; um adepto de alguma corrente política dita “esquerdista”, etc. Se abraçarmos essa visão da identidade brasileira, o que faremos com aqueles, também brasileiros, que têm sobrenomes alemães, italianos, japoneses ou árabes, por exemplo, e que não tenham o português como seu idioma materno? O que faremos com os brasileiros que não gostam de samba, que são vegetarianos ou simplesmente não comam feijoada? Com aqueles que não celebram o carnaval e que nunca viram o mar na vida? E sobre aqueles que não são católico-romanos, evangélicos ou espíritas? Com aqueles que possuam um pós-doutorado? O que faremos com aqueles brasileiros que preferem vinho a água-ardente? E com aqueles que não votaram em Lula da Silva nas últimas eleições presidenciais? Serão eles acusados de não serem brasileiros por simplesmente não se enquadrarem num perfil pré-determinado? Serão eles acusados de traição nacional, sendo banidos da pátria?... É muito semelhante às afirmações de que se pode ser cristão apenas de uma forma; que para ser digno da identidade cristã tenhamos que nos encaixar dentro de certos limites culturais ou ideológicos, doutrinários ou dogmáticos.
A identidade cristã, ou seja, ser cristão, não decorre de apenas ser membro de uma comunidade ou de apenas crer em uma lista de doutrinas. A identidade cristã é construída a partir do sentido que socialmente damos à fé, e da constante revisão das tradições; ao mesmo tempo em que também é construída a partir daqueles aspectos da tradição que continuam a ser significativos e relevantes para a igreja cristã e para o indivíduo.
Muitos apostam na continuidade como sendo a base para a estabilidade da igreja cristã num mundo que se remodela a cada dia. Essas pessoas, ingenuamente, pensam que a fé cristã tem sido a mesma desde sua origem até hoje, e que continuará a mesma até “os fins dos tempos” (seja lá o que isso signifique!). Essa é uma visão deveras romântica e utópica da realidade, e ignora a maneira como a história humana é construída – sim, porque a história (e o cristianismo e todas as outras tradições religiosas, são parte da história humana) é uma construção humana e não um fato inato e determinado.
O cristianismo, se visto como um sistema de crenças e práticas, foi sendo construído no decorrer de séculos de história, e, na verdade, ainda se encontra neste constante processo de construção e revisão, à medida que novas perguntas surgem, que deparamo-nos com novos problemas que nunca tiveram de ser enfrentados nos primeiros séculos da história cristã. E o que divide os cristãos, por exemplo, nós liberais daqueles mais conservadores, não é muito a lista de crenças que vemos como sendo essencial, mas, antes de tudo, é a maneira como vemos a história e sua origem. Essa visão da história dirige nosso entendimento da Divindade, de nossas relações com outros humanos e com a vida em si, e, consequentemente, nossa visão do cristianismo e do que é ser cristão.
Como um cristão liberal, entendo o cristianismo como sendo basicamente uma construção humana, mesmo que uma construção humana inspirada pela Presença Eterna. O cristianismo, incluindo aí nossas Escrituras, rituais, sacramentos, tradições, etc, é nossa tentativa de construir uma resposta ao que ou quem entendemos ser Deus. É nossa tentativa de encontrar e formular respostas às grandes questões que nos cercam e nos movem. É nossa tentativa de, juntos, construirmos uma comunidade baseada naquelas fontes que nos inspiram e moldam. Assim sendo, sei que não pode haver uma única compreensão válida do que é ser cristão, apenas uma explicação válida da identidade cristã. Há uma ampla diversidade de opiniões e compreensões no cristianismo, e apesar de muitas dessas compreensões e opiniões me fazerem sentir muito desconfortável e, por vezes, me chocarem, não posso descrever seus defensores como mais ou menos cristãos que eu próprio ou outros, pois se o fizesse, estaria negando minha compreensão de como a história humana é criada, estaria negando o que conheço a respeito da história cristã e, consequentemente, estaria abandonando minha visão de mundo mais básica.
Como sempre, penso ser necessário afirmar que não tenho muito interesse por religião organizada, se o que se entende por isso for um conjunto certo e indiscutível de doutrinas. Considero o dogmatismo uma “esquizofrenia social” (em um sentido teológico para a expressão), e por essa razão, distingo fé de dogma. A fé parece-me suficientemente segura para lidar com quaisquer tipos de questões. A fé nunca é ameaçada por perguntas ou dúvidas. O dogma, ao contrário, é sempre ameaçado pelas perguntas e dúvidas porque é duro, é rígido, é petrificado, é vigiado e controlado, e quebra-se sob a luz do questionamento, e, portanto, merece ser ameaçado pelas perguntas e dúvidas.
Então, como resposta à pergunta daquele missionário, se ser cristão significa submeter-me a um sistema dogmático certo e indiscutível, onde não há espaço para dúvidas, para perguntas, para opiniões pessoais, então não quero ser contado como um cristão, pois não estou disposto a abraçar uma “esquizofrenia social”, não estou disposto a abandonar algo que considero ser parte integrante de minha identidade social: minha liberdade e integridade intelectuais.
Se, entretanto, ser cristão for compreendido como ser seguidor dos ensinamentos e exemplos de vida atribuídos à figura de Jesus de Nazaré, e ser membro da grande e diversa comunidade de seus discípulos cujas compreensões estão num permanente processo de reflexão, reconstrução, e, por que não?, reafirmação, então, sim, eu sou um cristão devoto e fiel.
Minha identidade cristã é moldada por minha maneira de ver a história, de entender a fé e tradição cristã, e por minhas ações, que, por sua vez, são moldadas e amparadas por minha maneira de crer e por minha maneira de interpretar a vida e minha relação com tudo o que é parte da vida. Outras pessoas compreenderão sua fé e o mundo ao seu redor de outra forma, e utilizarão outros instrumentos para ajudá-los nesse processo. As respostas encontradas por essas pessoas podem não ser muito adequadas para mim, mas elas não são mais ou menos importantes na vida dessas pessoas que as respostas que eu mesmo encontro são para mim, e é por essa razão que (mesmo discordando de e criticando essas ideias) sempre me disponho a apreciar o que essas pessoas têm a ensinar e oferecer de bom para o mundo. Temos (cristãos liberais e outros cristãos) muito mais em comum do que a maioria de nós consegue enxergar, e podemos aprender muitíssimo uns com os outros. É realmente uma pena que não possamos ver isso!
Seja qual for a opinião pessoal de meus interlocutores, e a minha própria, a verdade é que há muitas diferentes maneiras de ser cristão. O cristianismo, tendo a história e a extensão que tem, possui variedades das mais impressionantemente belas às mais horrivelmente repugnantes (em minha visão). Todas as pessoas que, da sua forma, encontram na grande Tradição Cristã o seu caminho, são cristãos para mim – e ponto final. Não me sentarei na cadeira de juiz para decidir a sinceridade ou correção das crenças de quem quer que seja, no que toca a serem cristãos ou não. E da mesma maneira, não permitirei que o julgamento de outras pessoas interfira na forma como enxergo a minha própria identidade religiosa. Eu sou um cristão, um cristão liberal.
Rev. Gibson da Costa