“[...] Se vocês
guardarem a minha palavra, vocês de fato serão meus discípulos;
conhecerão a verdade, e a verdade libertará vocês.”
(João 8:31-32)
Quando penso em minha
própria experiência de fé, percebo que tenho, de diversas
maneiras, nadado contra duas grandes correntezas: primeiro, aquela no
meio cristão que insiste que haja apenas uma leitura válida do todo
da tradição cristã; segundo, aquela no meio secular que zomba
daqueles que, como eu, confiam na realidade de Deus e da experiência
cristã. Essas duas correntezas – com suas mais variadas
manifestações – parecem tentar sabotar uma sabedoria que
sobrepuja a simplificação exagerada das categorias que utilizamos
para organizar o mundo, uma sabedoria que emerge de nossa (i.e.,
minha e sua) experiência do Divino. Aqui, me referirei apenas à
primeira dessas correntes, aquela formada por compreensões
exclusivistas da verdade cristã.
Como sempre tenho dito,
confio em Deus. Confio na realidade de Deus. Sinto a presença divina
em minha vida e no mundo do qual sou parte. Tenho, contudo, problemas
para utilizar verbos como “acreditar” ou “crer” quando me
refiro a Deus, pois creio que a fé não seja uma mera ação
intelectual, mas uma “rendição” à graça de Deus. Sim, eu
acredito/creio em Deus – já que exerço um esforço intelectual em
minha fé –, mas penso que os verbos “acreditar” e “crer”
sejam limitados demais para lidarem com a realidade divina. Por essa
razão, prefiro utilizar o verbo “confiar”. Minha compreensão de
Deus muda com o passar dos anos, mas a realidade de Deus é
permanente.
Dizer coisas como essas
pode parecer uma contradição para alguns. Tenho a impressão, a
julgar pelos comentários feitos por alguns de meus ouvintes ou
leitores, que pensem ser eu um absoluto relativista – o que,
definitivamente, não sou. Meu relativismo é seletivo. Para mim, em
se tratando da fé cristã, há verdades absolutas. O que não há,
é, talvez, a capacidade de plenamente apreendermos essas verdades.
Para mim, por exemplo, Deus é uma verdade absoluta; Jesus é uma
verdade absoluta; o mandamento de amar ao meu próximo é uma verdade
absoluta. Como apreendo cada uma dessas verdades, entretanto, é uma
outra questão. Dizer que Deus é uma verdade absoluta, por exemplo,
significa dizer que ele seja uma pessoa que vive sobre um trono, num
reino em algum lugar espacial? E se minha compreensão de Deus não
for essa? E se eu tiver diferentes compreensões de Deus em
diferentes épocas de minha vida? Significaria que não tenho fé em
Deus?…
É por essa razão que
enfatizo tanto a diferença entre “verdade” e “factualidade”.
Algo não precisa ser factual – i.e., objetivamente verificável –
para que seja verdadeiro; assim como nem tudo que é factual é
verdadeiro para todos. E nem tudo que é verdadeiro para alguém numa
determinada época de sua vida, continuará a sê-lo para sempre. Há
não muito tempo atrás, uma criança, por exemplo, poderia acreditar
que o Papai Noel trouxera seu presente de Natal. Para ela, naquela
época de sua vida, aquela crença era uma verdade. Com o passar dos
anos, entretanto, ela deixou de confiar no Papai Noel, e aquela
deixou de ser uma verdade para si. Ela, talvez, tenha se dado conta
do fato de que seu pai ou sua mãe – ou outra pessoa –
perguntara-lhe o que ela queria de presente e fizera compras um pouco
antes do Natal. A factualidade, assim, contribuiu para um ajuste da
percepção de verdade.
A noção com a qual me
preocupo, no tocante à fé, é a de “verdade”, e não
“factualidade”. A verdade religiosa não precisa ser mensurada,
pesada, observada sob um microscópio. Ela simplesmente é. Em minha
experiência, especificamente, ela é mais uma prática que
propriamente uma noção. Quando articulamos essa verdade por meio de
nossos artefatos linguísticos e, tolamente, elevamos essa
articulação à posição de asserção dogmática – ou seja,
quando “factualizamos” a verdade –, então arrogantemente
supomos que sejamos maiores que a verdade que dizemos proclamar.
Deus, assim, deixa de ser, metaforicamente, aquele Pai de amor e
passa a ser acorrentado por nossa interpretação da metáfora
original. Jesus deixa de ser o Mestre que deveríamos ouvir e emular,
e passa a ser um “cristão” – i.e., apenas um seguidor da
interpretação específica que fizemos de sua suposta mensagem.
Com isso não quero, em
absoluto, dizer que não haja necessidade de articularmos nossa fé
num corpo doutrinário. Mesmo tendo a antipatia que tenho pela
maneira como muitos apreendem o conceito de “dogma” na vida da
Igreja cristã, minha fé se articula num edifício dogmático (i.e.,
doutrinário). O que importa, entretanto, é que sei que minha
compreensão da fé cristã não é a única válida ou verdadeira.
Como acredito que o Espírito continua a se mover na Igreja hoje,
confio que possamos “descobrir” diferentes formas de sermos fiéis
ao que compreendemos ser o caminho de Cristo, mesmo se discordarmos
em nossas compreensões. É assim, ao menos, que leio as Escrituras e
a tradição da Igreja. É com esse espírito que me esforço para
celebrar a Presença Divina no seio da comunidade de fé. Todos somos
diferentes, pensamos de formas diferentes, mas assumimos o
compromisso de tomarmos sobre nós o nome de Cristo. Isso, para mim,
basta para chamá-los de “irmãos” na fé.
Assim, rejeito asserções
exclusivistas da verdade como propriedade desta ou daquela tradição
cristã. Deus, Jesus, as Escrituras, a Tradição, a fé etc, não
são propriedades duma instituição eclesiástica, duma tradição
teológica ou duma mente individual. Em minha experiência e
compreensão, a verdade cristã é encontrada num cristianismo vivido
no dia a dia em nossas relações conosco mesmos, com outras pessoas,
com o todo da criação e, consequentemente, com o Divino. É no
caminho dessa verdade – sim, porque a verdade cristã, para mim, é
uma senda e não um destino – que encontro minha liberdade. E é
assim que experiencio mais proximamente Jesus como meu Salvador:
tentando ouvir os ensinamentos que lhes foram atribuídos e emular
seus supostos exemplos.
+Gibson