Já
me perguntaram, muitas vezes, o por quê de eu ainda ser cristão.
Muitas das pessoas que continuamente me fazem essa pergunta enxergam
o cristianismo como aquela tradição religiosa autoritária e
opressiva, que já foi responsável por tantos males no mundo, e que
se opõe às descobertas que a ciência tem feito, se tornando,
assim, um obstáculo ao desenvolvimento da humanidade (ou, pelo menos
àquela parte da humanidade que o segue).
Como
já é sabido por todos aqueles que me conhecem, eu me encontro numa
posição ideológica contrária ao pensamento daqueles cristãos
chamados de “fundamentalistas” (me refiro aqui ao sentido
teológico dado a esse termo, ou seja, àquele movimento nascido em
inícios do século XX nos Estados Unidos, como resposta às
afirmações da ciência a respeito das origens da vida, e que parece
ter um grande impacto no pensamento protestante brasileiro) e também
da maioria dos “conservadores”; mas também é sabido que
ideologicamente me encontro bem distante daqueles que se opõem a
toda forma de religião.
Eu
vejo a vida espiritual como sendo uma necessidade humana. Alimentar o
“espírito” (ou seja, o interior do ser) é tão essencial quanto
alimentar o corpo. O ateísmo ou o pseudo-humanismo de alguns prega
que a religião seja a causa dos problemas no mundo. Eu, como muitos
outros, entretanto, creio que não seja a religião a causa desses
males; a causa desses males está em nossa falta de compreensão de
nossa religião, na falta de autenticidade e hospitalidade (em seu
sentido mais amplo) na maneira como praticamos nossa religião.
Para
citar um exemplo claro disso, sempre me sinto irritado quando alguém
insinua que o islã seja uma religião que pregue o terrorismo e a
violência – porque sei que isso não é verdade. Alguns dizem,
então, que muita violência é praticada em nome do islã. Os
“islamitas” (aqueles envolvidos com movimentos que usam o nome do
islã para cometerem atos de violência) matam, sequestram, e cometem
todo tipo de violência em nome da religião islâmica. Os críticos
não conseguem entender que esses radicais se prendem a uma visão
muito estreita de um ponto e que acabam por violar toda a sua
tradição religiosa como consequência. Eles não são porta-vozes
do islã.
Sempre
penso em minha própria religião como sendo uma grande jornada, um
eterno êxodo. Nesse sentido, já percorri as rotas mais sombrias do
caminho que passam pelos campos mais perfumados, e que posteriormente
me lançam em lugares solitários e sombrios, para que novamente
possa alcançar mais luz e perfume. Vejo essa como sendo a perpétua
jornada do viajante que busca aquele Mais, que chamo de Deus. O
cristianismo é minha jornada nessa busca pelo Mais.
Mas,
afinal de contas, por que o cristianismo? Por que alguém como eu
continuaria a percorrer o caminho do cristianismo e se comprometeria
em ensiná-lo a outras pessoas?
Eu
seria incapaz de oferecer uma resposta única a essa pergunta. Tenho
certeza de que outras pessoas que seguem outros caminhos espirituais
também seriam incapazes de resumir suas motivações a apenas um
ponto.
Talvez
possa começar dizendo que o caminho que sigo é um caminho simples.
Meu cristianismo é um cristianismo não acorrentado a definições
pré-estabelecidas; é um cristianismo não preso a explicações do
passado que meu senso comum seja incapaz de aceitar, e que acabam
virando um obstáculo à minha jornada. Creio que não sejam as
explicações do sagrado que sejam eternas, mas sim nossa experiência
do sagrado – e essa experiência do sagrado sempre ganhará
explicações individuais diferentes, em todos os tempos e em todos
os lugares.
Me
vejo como um seguidor de um rabino judeu que viveu na Palestina no
primeiro século de nossa era. Esse mestre espiritual era Jesus de
Nazaré, chamado por seus seguidores posteriores de “o Cristo”.
Não.
Se você pensa que eu perco meu tempo discutindo as explicações que
os seguidores posteriores desse homem deram a respeito de sua
natureza, de quem seria seu pai, como se deu seu nascimento, ou se
ele sempre existiu em algum lugar do universo antes de sair do ventre
de sua mãe... Não. Essas coisas não me interessam. Para mim, Jesus
foi um homem normal, como eu mesmo, nascido da mesma maneira que
todos os outros humanos – e é por esta mesma razão que ele
consegue ser relevante em minha vida espiritual.
Se
por um lado eu rejeito as explicações filosófico-religiosas que
exaltaram Jesus ao nível divino e que criaram a imagem de um Cristo
etéreo e não humano, por outro lado eu abraço as tradições que
lhe atribuem palavras e ações que não podemos saber serem factuais
ou não (levando em consideração o fato de eu não acreditar que os
relatos dos Evangelhos sejam relatos históricos – no sentido que
geralmente damos à palavra “história” -, mas que se tratam de
testemunhos religiosos).
Àqueles
que pensam ser tolice acreditar que Jesus de Nazaré tenha sido um
personagem factual (ou seja, que realmente tenha existido no tempo e
espaço), respondo: Não faz diferença! Mesmo se Jesus de Nazaré
tivesse sido apenas uma criação dos primeiros “cristãos”, o
personagem criado e exibido nos Evangelhos ensina uma mensagem
poderosa e que tem tido profundo impacto na vida de incontáveis
pessoas no decorrer de dois milênios. Tem tido profundo impacto em
minha própria vida desde minha infância.
Um
dos livros que compõem o Novo Testamento, o Evangelho de Marcos,
narra um encontro entre Jesus e um líder religioso de seu tempo
(Marcos 12:28-34). Esse líder pergunta-lhe qual seria o mais
importante dever de um judeu. Jesus responde: “O
primeiro mandamento é este... ame ao Senhor seu Deus com todo o seu
coração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento e com
toda a sua força. O segundo mandamento é este: Ame ao seu próximo
como a si mesmo. Não existe outro mandamento mais importante do que
esses dois”.
AMOR
é a palavra que Jesus utiliza para
resumir a essência de seu ensinamento. Uma entrega total de si mesmo
ao amor a Deus e ao próximo, criando um laço entre o indivíduo e
aqueles que o cercam a uma Realidade desconhecida aos olhos mas
perceptível ao coração. Essa é a mensagem de Jesus.
Em
outro episódio emblemático, Jesus é descrito como tendo ensinado o
seguinte a seus seguidores (Mateus 5:3-12):
“Felizes
os pobres em espírito, porque deles é o reino do céu. Felizes os
aflitos, porque serão consolados. Felizes os mansos, porque
possuirão a terra. Felizes os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados. Felizes os que são misericordiosos, porque
encontrarão misericórdia. Felizes os puros de coração, porque
verão a Deus. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados
filhos de Deus...”
Que diferença entre esse
Jesus dos Evangelhos e aquele outro Jesus dos pregadores de rádio e
televisão! É essa imagem do Jesus descrito nos Evangelhos que me
faz um de seus seguidores.
Alguém poderia me perguntar
se não me sinto desconfortável em ouvir as palavras de uma coleção
de livros (a Bíblia) que já foi usada como desculpa para a prática
dos atos mais vergonhosos, como a escravidão, a violência contra
outras comunidades de fé, guerras, exploração econômica, o
sexismo, etc.
Bem, eu acredito que todos
nós, incluindo aqueles que dizem acreditar ser a Bíblia
literalmente “a palavra de Deus”, fazemos leituras seletivas dos
“textos sagrados”, retendo aquilo que pensamos ser bom e
descartando aquilo que não nos convém.
Eu, como um cristão
liberal, certamente faço isso. Renuncio as visões tribalistas,
violentas e, para mim, sem sentido, enquanto abraço de mente e
coração abertos aqueles ensinamentos que me fazem sentir mais
próximo da Realidade Divina.
Abro meus ouvidos para as
vozes de Miqueias, Isaías, Jesus, Tiago, e Paulo, que nos ensinam a
amar, servir, alimentar, vestir, e abrigar nosso próximo. Essa é
minha maneira seletiva de ouvir a Bíblia.
“Ó
homem, já foi explicado o que é bom e o que o Senhor exige de você:
praticar a justiça, amar a misericórdia, caminhar humildemente com
o seu Deus.” (Miqueias
6:8)
“...
acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr
em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a
comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem
abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua
própria gente...”
(Isaías
58:6-10)
“...Pois
eu estava com fome, e vocês me deram de comer; eu estava com sede, e
me deram de beber; eu era estrangeiro, e me receberam em sua casa; eu
estava sem roupa, e me vestiram; eu estava doente, e cuidaram de mim;
eu estava na prisão, e vocês foram me visitar... todas as vezes que
vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o
fizeram...” (Mateus
25:31-46)
“Religião
pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os
órfãos e as viúvas em aflição...”
(Tiago
1:27)
“...
no amor fraterno, sejam carinhosos uns com os outros... sejam
solidários... se aperfeiçoem na prática da hospitalidade. Abençoem
os que perseguem vocês e não amaldiçoem. Alegrem-se com os que se
alegram, e chorem com os que choram. Vivam em harmonia uns com os
outros... Não paguem a ninguém o mal com o mal; a preocupação de
vocês seja fazer o bem a todos os homens... Vivam em paz com
todos... se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver
sede, dê-lhe de beber... Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o
mal com o bem.” (Romanos
12:10-21)
Essas passagens da Bíblia
indicam o cristianismo que considero minha jornada, o caminho que me
leva ao Divino. Não é muito uma crença dogmática, mas uma fé que
toma forma em um modo de vida. Outras pessoas talvez prefiram os
credos, as declarações de fé, a crença na perfeição e
infalibilidade de todas as palavras da Bíblia. Eu, entretanto,
escolho um caminho mais simples e, para mim, mais objetivo. Escolho
acreditar que exista um Mais além de tudo isso que meus olhos podem
ver. Não tenho interesse algum em definir esse Mais, mas escolho
chamá-lo de Deus ou Pai/Mãe. Jesus é, para mim, a porta para essa
Realidade – mas reconheço que outras pessoas encontrem sua porta
para esse Mais em outros lugares, e a porta que encontram pode ser
tão verdadeira para elas como a minha é para mim.
Minha religião, isto é,
meu cristianismo, é a compaixão, o amor, a misericórdia, a
hospitalidade, a paz entre eu e os outros – absolutamente TODOS os
outros.
Tenho muito a aprender, a
praticar, a transformar para que possa tornar minha vida um reflexo
dessa fé, uma expressão dessa religião, mas, como disse antes,
minha religião é uma jornada, meu cristianismo é um contínuo
êxodo.
+Gibson