Esta é minha resposta à pergunta de um amigo em um fórum de discussões. Como muitas vezes respondo a perguntas semelhantes, achei ser legal postar esta resposta aqui.
“Gibson,
Qual a interpretação que a sua igreja faz daquelas passagens do Novo Testamento onde Cristo expulsa demônios, anda por sobre as águas, cura enfermos, ressuscita mortos, etc? Qual o significado dessas passagens fora do contexto da interpretação literal?” (pergunta no fórum)
Em princípio, devo dizer que “minha igreja” não possui uma interpretação oficial dessas passagens. Posso interpretar essas passagens de uma maneira, e posso encontrar dentre outros membros de minha comunidade uma interpretação completamente diferente da minha. E isso não é um problema para nossa vida comunitária. O que nos une não é uma lista de crenças em comum, mas a aliança que temos entre nós e Deus.
A compreensão que cada um de nós temos, você e eu e todos os outros, das Escrituras vem das lentes com as quais enxergamos o mundo. Cada um de nós utiliza, mesmo que não tenha plena consciência disso, certas bases teóricas para filtrar nossa percepção das coisas, e isso inclui nossa percepção dos textos sagrados. Eu, por exemplo, abraço certa compreensão acerca da origem do universo que tornaria uma crença literal no relato da Criação, como no Gênesis, algo impossível para mim, pelo menos agora. Isso não torna o relato uma mentira. Trata-se apenas de uma outra maneira de falar a respeito do começo de tudo. Eu creio que as explicações dadas pela teoria do big-bang façam mais sentido para mim – a Criação como um processo que ainda não terminou, outra pessoa pode acreditar que uma Criação perfeita ocorrida em seis dias e executada por um Deus pessoal – uma Criação temporalmente localizada e executada – faça mais sentido. Considero isso até certo ponto indiferente para nossa busca espiritual.
Tenho uma compreensão não muito dogmática do sentido da palavra “verdade”. Essa palavra é importante para essa nossa discussão aqui. O sentido que dermos a essa palavra é o que vai definir, em grande parte, nossa compreensão desses relatos bíblicos que você aponta.
Para mim, a verdade é relativa. E quando digo “relativa”, estou me referindo à raiz latina desta palavra (relativus, a, um), ou seja, a verdade está sempre relacionada a um tempo, lugar, pessoa ou pessoas. Para as pessoas que viveram durante o início da igreja, provavelmente os relatos acerca de milagres sobrenaturais eram verdadeiros, como o são para pessoas hoje que têm uma compreensão do mundo diferente da minha, e como são para mim (mesmo que para mim dizer que aqueles relatos sejam verdadeiros não equivale a dizer que são factuais, que tenham ocorrido como foi relatado). Eu não sinto a mínima necessidade de acreditar em eventos sobrenaturais para acreditar em Deus – em minha experiência, a realidade de Deus não exige a factualidade de relatos sobrenaturais.
Mesmo não tendo a necessidade de factualizar a verdade – ou seja, torná-la algo objetivo e verificável, literalizá-la -, creio que seja válido fazê-lo, já que para algumas pessoas isso é uma necessidade. Essa factualização – tornar a verdade como algo necessária e literalmente verificável, objetiva – é uma necessidade construída pelo mundo moderno. Mas, se olharmos para a história do pensamento teológico cristão veremos que desde o início temos tido uma variedade de interpretações bíblicas. Duas escolas de pensamento se desenvolveram na interpretação bíblica pelos pais da igreja: a escola alexandrina (a escola de Clemente, Orígenes e Dídimo), que se baseou em antigas tradições interpretativas judaicas e nas ideias de Filo de Alexandria, e que permitia uma interpretação metafórica das Escrituras; e a escola antioquina (a escola de Diodoro de Tarso e João Crisóstomo, por exemplo), que enfatizava uma interpretação mais literal das Escrituras.
Quando olhamos para o método de interpretação bíblica dominante na Idade Média, vemos uma diversidade ainda maior, encarnada na Quadriga (o senso quádruplo das Escrituras): o sentido literal, o sentido alegórico/metafórico, o sentido tropológico ou moral, e o sentido analógico.
E então, depois do Iluminismo, surge uma ênfase exagerada na interpretação literal das Escrituras, especialmente entre protestantes mais conservadores. E o domínio dessa visão é tão difundido que as pessoas chegam a pensar que o literalismo seja a única opção interpretativa no mundo teológico cristão, o que não é. Por outro lado, entre liberais, pode-se também acreditar que a única saída seja correr para uma direção o mais distante possível da literalidade. Eu, entretanto, como um cristão unitarista, escolho permanecer dentro da própria tradição cristã: a tradição do equilíbrio. Assim, posso enxergar aqueles relatos como tendo algo de histórico (sentido literal), como servindo de símbolo para algo (sentido metafórico), como um ensinamento ético para a conduta cristã (sentido tropológico), ou como algo que aponta para a esperança cristã no fim da jornada (sentido analógico). Talvez tudo isso de uma vez só.
Então, não, não posso indicar uma resposta. Mas posso afirmar que a própria tradição cristã oferece meios para alcançarmos uma resposta por nós mesmos.
+Gibson