Esta
semana, facilitei um minicurso, no IRWEC, chamado “O Fim Está
Chegando: Dois Milênios de Mitos Escatológicos”. Como
contamos com a presença de membros de outras instituições
teológicas ou outras comunidades de fé, os debates foram acirrados
e gratificantes. Para mim, como facilitador e autor daquele
minicurso, aquela foi uma excelente oportunidade para discutir
aquelas ideias com alunos, participantes e leitores, mesmo que com a
aparente limitação de tempo (vinte horas distribuídas ao longo de
cinco dias) para a abordagem dum tema tão importante à maioria dos
cristãos.
Agradeço
a todas e todos pelas provocações, questionamentos e ampla
contribuição. Abaixo, responderei, como prometido, àquelas
provocações às quais não pude responder, ontem, por falta de
tempo.
Sou
um cristão liberal. Minhas
tradições e comunidades de fé me ensinaram a questionar, a
duvidar, a buscar. Não a temer. O questionamento, em minha
experiência, não destrói a fé. Muito pelo contrário. O
questionamento a fortalece sobre bases sólidas, capazes de enfrentar
a experiência da vida adulta.
Creio ser uma infantilização da fé
– perdoem-me a linguagem
– encará-la como algo que deva ser “defendida”, “protegida”,
etc,
quanto à sua relação com a
cultura contemporânea. Esse
tipo de asserção ao mesmo tempo personifica e coisifica a fé. Eu,
pessoalmente, rejeito essa atitude. A
fé, para mim, é a língua que utilizo e reconheço para
articular minha compreensão do Mistério, para participar do diálogo
espiritual do qual todos – mesmos os formalmente descrentes –
participamos neste mundo. A fé, como as línguas que falamos, possui
uma gramática própria, um vocabulário característico, uma melodia
poética. Ademais, cada um de seus “falantes” possui seu próprio
idioleto.
Obviamente,
a comparação é metafórica, mas a metáfora se reveste de verdade
para minha experiência humana.
Se
alguns veem a “religião” – que chamo de “fé” – como uma
“[re]ligação” com o Divino, eu a vejo como a língua
através da qual articulamos a compreensão do e nossa relação com
esse Divino. E essa língua independe duma ligação formal com
uma “comunidade de fé” específica, por exemplo. Da mesma forma
como ocorre com falantes de línguas minoritárias em países onde
essas línguas não são oficiais ou não são faladas pela maioria.
Em
minha relação com a Dimensão Misteriosa – que chamo de Deus –,
“falo”, além da “língua” oficial ou majoritária da minha
comunidade de fé, meu
próprio idioleto espiritual, que pode ser estranho a outros membros
daquela comunidade. E creio
que isso ocorra com todos nós.
E
já que tratamos de Teologia Histórica, é importante enfatizar que
aquela
atitude – o da “defesa da fé”, nos
termos que foram levantados por um dos participantes
– tem uma origem
histórica específica no
pensamento teológico ocidental: a Reforma Protestante. É a partir
das diferenças que emergem na Reforma entre os variados grupos
“protestantes”, e entre esses e os católicos romanos, que a “fé”
passa a ser sinônimo, quase que exclusivo, de “crença”. Ela
deixa de ser uma ação divina na alma humana e passa a ser uma ação
intelectual do próprio homem. Ter fé, a partir de então, é
acreditar na doutrina certa – e, obviamente, o que é “certo”
(ortodoxo) para alguns, será “errado” (herético)
para outros. Com isso,
obviamente, não estou querendo dizer que as noções de “ortodoxia”
e “heresia” só passaram a existir a partir da Reforma; o que
estou afirmando é que a noção de “fé”, no Cristianismo
ocidental, foi reduzida e determinada por aquelas duas outras
noções!… É por isso que ouço, por exemplo, pessoas me chamando
de “descrente”, “ateu” etc, por
não compartilhar de suas compreensões.
Como não acredito no que elas acreditam, então – para essas
pessoas –, não tenho fé alguma, estou longe de Deus! [Não foi
exatamente isso que foi dito pelo participante que me questionou?!]
[O
questionamento, a propósito, não me ofendeu por inúmeras razões.
A primeira delas é o simples fato de eu acreditar plenamente que o
questionamento seja essencial ao aprendizado e que esse só é
possível num ambiente de liberdade intelectual – como quero
acreditar que tenha sido o nosso ao longo do minicurso. A segunda é
o também simples fato de eu saber exatamente a origem daquela dúvida
– conhecendo o background
do questionador, ficou fácil entender a
raison d'être de sua
questão, e que eu tinha de respondê-la a partir de sua
perspectiva (isto é,
colocar-me em seu
lugar). Então, por mais que
ele pudesse ter sido menos agressivo em suas colocações, entendo
suas razões, e por isso não me sinto ofendido!]
O
grande problema em se definir
a fé como “assensus” – isto é, como
“crença” – é o de
lidar com o tipo de conhecimento que nos estão disponíveis hoje em
dia. Um exemplo: um cristão, do século XXI, lê os relatos da
Criação no Gênesis – sim, porque não há apenas um, há dois
relatos distintos
da Criação (a mais antiga
começa em Gênesis 2:4 e se estende até o fim do capítulo 3; a
segunda narrativa aparece entre Gênesis 1:1 – 2:3) – e percebe
que há um grande “conflito” entre aqueles relatos e o que
sabemos sobre a origem de nosso Universo
e da vida aqui. O que faz?… Bem, se ele acredita que a Bíblia seja
um escrito divino em sua origem, no qual não há erros, sua única
opção – de acordo com os que ensinam essa perspectiva – será
rejeitar o que a ciência ensina. Ou, como alternativa, poderá
abandonar sua “fé”. Mas, novamente, esse é um caso extremo em
dois aspectos: sua compreensão do conceito de “fé” é
exclusivista; assim como também o é sua compreensão do conceito de
“ciência”.
O
mais interessante é que isso é defendido não apenas por pessoas
religiosas. Muitos “cientistas” também abraçam uma visão
exclusivista tanto da fé quanto da ciência! [Correndo
o risco de fazer certas asserções equivocadas acerca da fé
religiosa como as feitas por Christopher Hitchens num famoso livro
seu, “God is not great”.]
Pessoalmente,
não penso que haja contradição entre fé e ciência, pela simples
razão de as duas lidarem com distintas dimensões da realidade.
Deus, espírito, etc, são conceitos que utilizamos para lidar com a
dimensão Misteriosa de nossa realidade. Os terremotos, a evolução,
os tsunamis, as doenças, etc, são todos temas que dizem respeito à
dimensão objetiva de nossa realidade. E há aqueles temas que se
dividem entre os dois: o nosso tema de estudo no
minicurso – a
Escatologia – é um exemplo disso.
Preocupações
escatológicas, a propósito, não se restringem apenas a tradições
religiosas judaicas, cristãs e islâmicas, já que também
adentraram, até certo ponto, as filosofias políticas que emergiram
entre judeus, cristãos e muçulmanos (Marx e Engels
sendo, para alguns, um exemplo disso no Ocidente judaico-cristão;
Sayyid Qutb, um exemplo dentre os pensadores muçulmanos); e,
se entendermos essa preocupação escatológica de forma mais ampla,
ela também se faz presente, de alguma forma, na narrativa
cosmológica da ciência contemporânea (por exemplo, na ideia de
que vivemos num Universo em evolução, um Universo com uma seta
quântica de tempo, cuja direção lhe é transmitida pela assimetria
temporal advinda da segunda lei da termodinâmica).
Quanto
às questões específicas referentes às Escatologias judaicas e
islâmicas, elas foram discutidas em nosso segundo encontro, e estão
no material que disponibilizei para vocês. Assim,
esclarecerei apenas o ponto sobre o chamado “Mahdismo”
islâmico do século XIX – o
termo “Messianismo” não é apropriado para nos referirmos a esse
movimento no Islã. Um
“mahdi”
seria alguém divinamente escolhido para livrar uma comunidade do
perigo. No século XIX, em decorrência da experiência do
imperialismo europeu, muitos
“mahdis” surgiram nos países de maioria muçulmana,
especialmente na África. Esse
movimento, obviamente, criou uma tensão com as formas mais
“ortodoxas” de Islã. E isso mantém certas semelhanças com o
que ocorreu no próprio Cristianismo, com seus movimentos
“proféticos” (o Profetismo)… Mas já discutimos isso, logo não
necessito tratar disso aqui novamente.
Para
concluir, apesar de ser limitado tratar do desenvolvimento de
compreensões escatológicas sem se levar em consideração o
contexto sociocultural do lugar onde emergiram,
é ainda muito mais limitado pensar que crenças religiosas sejam
determinadas pelos contextos políticos ou econômicos nas quais
surgiram. Essas crenças – parte
da dimensão conceitual
– envolvem elementos
daquela dimensão
misteriosa
à qual fiz menção, que não se justificariam apenas pela política
ou economia. A abordagem interpretativa que abraço envolve as três
“dimensões”: a objetiva, a misteriosa e a conceitual
– ou seja, do encontro de nossa experiência com a dimensão
objetiva com a
dimensão misteriosa,
participamos na construção da dimensão
conceitual (que
consiste em muito mais que apenas crença). Assim, a fé (a dimensão
conceitual), em minha compreensão, é um processo de relações
entre nossa experiência com o mundo, com outras pessoas, conosco
mesmos, e desses com o “Mistério”; dessas relações emerge
nossa compreensão – nossos conceitos.
Bem,
é isso!… Quaisquer comentários, críticas ou dúvidas, é só me
escrever.
Grande
abraço a todas e todos!
+Gibson