A bibliografia dum curso que ensino sobre história das religiões
inclui um texto que afirma categoricamente que a diferença entre a
religião e a ciência está no fato de a primeira exigir “fé
submissa” numa divindade e no sobrenatural. Apesar de eu discordar
daquela afirmação e de saber, por experiência própria, que há
religiões que não se focam numa suposta realidade sobrenatural e
que, assim, não exigem uma “fé submissa” numa divindade e no
sobrenatural, ainda incluo tal texto em minhas aulas para que meus
alunos possam refletir acerca da limitada compreensão que ainda
temos sobre a experiência espiritual/religiosa humana.
Não sou um adepto do teísmo sobrenatural. Com isso quero dizer que,
em minha compreensão e experiência, a crença/fé em Deus – ou em
deuses – não é necessária para que experienciemos o
transcendental, o numinoso, o espiritual, o místico, ou seja lá que
outro termo utilizemos para nos referirmos àquela “dimensão
misteriosa” tradicionalmente tratada pelas religiões. Essa
“dimensão misteriosa” pode ser experienciada através das artes,
da ciência, dos esportes, da filosofia, do trabalho, da relação
com e do serviço aos outros seres deste mundo etc. Assim, se a
religião representa um processo de “religação” com algo, esse
“algo” pode ser a própria realidade palpável que experienciamos
em nosso dia a dia – sem absolutamente nenhuma necessidade de
crença no e devoção ao invisível. E, consequentemente, a própria
religião pode ser identificada em atividades que não correspondem
àquelas tradicionalmente realizadas em templos, igrejas ou outros
“lugares sagrados”.
Dizer que não sou adepto do “teísmo sobrenatural” (termo tão
usado pelo finado professor Marcus J. Borg) não significa dizer que
sou ateu; significa que compreendo “Deus” de formas diferentes
daquelas usualmente abraçadas por “teístas” tradicionais;
significa também que, para mim, o “sobrenatural” é indiferente,
que não é essencial para a forma como encaro o mundo e vivo minha
vida. Por exemplo, se e quando faço algo que julgo ser “bom” e
“certo”, não o faço porque temo a punição ou espero a
recompensa de Deus, faço-o porque – para mim – viver com
eticidade é como que o “cerne” da espiritualidade.
Nas culturas influenciadas pelas tradições jordânicas (ou, se
preferir, “abraâmicas” – uso “jordânicas” como
uma referência geográfica à origem dessas tradições) –
especialmente os Judaísmos, os Cristianismos e os Islamismos –,
pensar em religião equivale a pensar no(s) Deus(es) jordânico(s) –
ou seja, significa pensar no que as formas ortodoxas dessas religiões
jordânicas têm ensinado sobre Deus. Assim, as noções de
espiritualidade, religião e mesmo Divindade têm sido, em nossa
cultura, aprisionadas às compreensões ditas ortodoxas dos
Judaísmos, dos Cristianismos e dos Islamismos. Esse aprisionamento é
levado a cabo, infelizmente, inclusive pelo próprio discurso
acadêmico sobre religião.
Por conta disso, é importante, para mim, enfatizar que as concepções
ortodoxas de religião – e estou pensando especificamente nas
tradições jordânicas – não são as únicas formas
historicamente válidas de compreender Deus, fé, religião,
espiritualidade, o numinoso, o transcendental etc. Todas as formas
religiosas, ortodoxas ou heréticas – na verdade, todo o
conhecimento e práticas humanas – são produtos históricos,
condicionados às diferentes circunstâncias nas/das quais emergiram
e se desenvolveram. O próprio Deus do teísmo sobrenatural –
assim como o do meu tipo de compreensão – é um produto cultural,
histórico, uma construção humana.
Como posso ser um religioso e dizer isso? Como ouso me dizer
“cristão” e afirmar que Deus é uma construção humana, um
produto da cultura?
Isso, obviamente, tem a ver com minhas próprias circunstâncias, com
minha própria história e formação. Minha própria tradição
religiosa me ensina que duvidar e questionar é necessário para
construir uma fé relevante. Por isso, declarar crenças que não se
conciliem com tudo o que já sei ou que julgo saber sobre o Universo
representaria uma falta de integridade intelectual (=espiritual) de
minha parte. Essa é uma das razões básicas pelas quais compreender
o domínio numinoso de forma agnóstica, como o faço, não
representa um problema para mim.
Como já disse e escrevi antes, creio na Realidade de Deus – apesar de não
acreditar na existência dum Deus pessoal que governe monarquicamente
o Universo a partir dum ponto específico do cosmos. Deus
representa, para mim, uma Realidade com a qual me relaciono, mas que
não sei quem/o que é. Essa Realidade pode se fazer ou se faz
presente em meus relacionamentos com outras pessoas, em minha relação
com o mundo, em meu trabalho, no entretenimento, em minha vida
religiosa etc. Não finjo ser capaz de explicar de forma coerente
essa Realidade ou a forma como a experiencio. Deus, assim, em
minha compreensão e experiência, é uma metáfora – e não
uma entidade objetiva.
Ora, metáforas são importantes para a construção do conhecimento,
para a interpretação do mundo. Não são, contudo, “essenciais”,
indispensáveis. Da mesma forma, se Deus é uma metáfora, e a
religião é uma forma de conhecimento, uma forma de interpretação
da experiência humana, então Deus não é essencial ou
indispensável para a experiência religiosa.
Mas isso, claro, depende de (a) quem, quando e onde perguntar. Essa é
minha perspectiva, até hoje pelo menos – a perspectiva dum cristão
agnóstico religioso. Se as mesmas questões sobre Deus,
espiritualidade e religião forem feitas a outra pessoa, você
certamente terá respostas bem diferentes das que lhe ofereço aqui.
Grande abraço!
+Gibson