“Ó homem, já foi explicado o que é bom e o que o Senhor exige de você: praticar a justiça, amar a misericórdia, caminhar humildemente com o seu Deus.” (Miqueias 6:8)
Tenho uma grande antipatia pela palavra “religião”. A razão é porque, para grande parte das pessoas, religião é sinônimo de “dogma”. Para essas pessoas, ter uma religião – especialmente quando se trata do cristianismo – é abraçar definições dogmáticas a respeito da humanidade, de Deus, de Jesus, da Bíblia, do certo e do errado, do destino do universo, etc.
O dogma é uma verdade absoluta, que não pode e, na visão daqueles que a mantêm, não deve ser questionada. A fé, por outro lado, é um elo relacional bem mais amplo que nos faz enxergar nossa tradição religiosa (ou nossa tradição de fé, como eu prefiro dizer) – o cristianismo – não como uma lista de crenças às quais devemos subscrever, mas como um caminho que devemos percorrer. Não podemos esquecer que esse é justamente um dos primeiros nomes que recebeu o “cristianismo”: o Caminho (Atos 19:23). [Obviamente, utilizo "dogma" aqui com um sentido "leigo" apenas como provocação. Este não é o sentido teológico do termo.]
Quando critico o dogma, não estou necessariamente negando a importância de crenças ou declarações teológicas. Mesmo cristãos liberais como eu, reconhecem a importância da fé entendida como “assensus”, ou seja, como “crença”. E é justamente a minha crença religiosa, o meu entendimento teológico, o meu “assensus”, que me faz abominar o dogma – que me faz abominar a ideia, que está inerentemente entrelaçada ao dogmatismo religioso, de que o Deus celebrado pelos cristãos seja tão mesquinho, tão pequeno, tão intransigente, tão infantil, tão intolerante, que se sinta ameaçado pelos questionamentos de quem quer que seja, e que afaste de si aquelas pessoas que pensem diferentemente daqueles antigos que escreveram os credos da igreja, por exemplo. Obviamente, apenas pessoas que compreendem Deus como sendo um “ser pessoal” poderiam pensar assim – o que não é exatamente o meu caso.
A fidelidade, a confiança, a visão, e a crença, que constituem os quatro sentidos básicos da ideia de “fé” (na interpretação de Marcus Borg), devem nos mover à “prática correta” - que eu chamo de “ortopraxia” e que elevo acima da tradicional “ortodoxia”, a “crença correta”.
Se podemos, por meio do senso comum, ser levados a pensar que é a crença correta que nos leva à prática correta, a história cristã nos mostra claramente que esse não é o caso – pelo menos se entendermos “crença correta” como sendo a “ortodoxia” defendida pelas maiores comunidades cristãs.
O próprio relato dos Evangelhos a respeito das palavras e ações atribuídos a Jesus nos indicam o que deveria constituir a crença e práticas corretas – logo, a fé (ou se preferir, a religião) correta. Um exemplo encontra-se em Mateus 25:31-46. Lá, descrevendo uma imagem metafórica do “juízo final”, Jesus não cita nenhuma questão de “crença” certa ou errado como sendo a razão para o veredito recebido pelos povos da terra. Pelo contrário. É o tratamento dado aos famintos, aos sedentos, aos estrangeiros, aos desnudos, aos doentes e aos encarcerados que serve de base para o julgamento.
Não poderia ser diferente. Jesus e seus primeiros seguidores eram judeus. E na tradição hebraica, crença e ações são inseparáveis. Na verdade, o “assensus” (assentimento, aceitação, crença) intelectual, como exigida na tradição cristã, era desconhecida como uma exigência entre os hebreus naquela época. A fé hebraica era manifesta nas ações do dia a dia, e não em declarações dogmáticas a respeito de pormenores teológicos.
Pode-se acompanhar esse espírito de “ortopraxia” ao longo de toda a Bíblia, onde o ouvinte ou leitor é convidado a pôr sua fé em prática, e é repetidamente lembrado que a fé, quando não acompanhada de ações, é morta (para desespero daqueles adeptos do “sola fides” que enxergam o “fides” apenas como sinônimo de “assensus”).
Como um seguidor de Jesus, como um cristão, sou desafiado diariamente a abraçar a prática correta – a ortopraxia. Com isso não quero dizer que eu conheço o (único) caminho correto e outras pessoas não. A ortopraxia – a prática correta – à qual me refiro consiste no espírito que deve guiar meu pensamento e minhas ações, espírito esse que encontro nos ensinamentos e exemplos atribuídos a Jesus, espírito presente na tradição cristã, e também presente em outras tradições de fé e nas palavras e ações de outras figuras religiosas.
Foi esse espírito da prática correta que já me fez alterar o percurso muitas vezes. Já me fez enxergar o quanto estava errado. Já me fez ver que muitas vezes contribuí com um sistema de dominação injusta; que muitas vezes já deixei de valorizar o que realmente importava, supervalorizando o que era secundário; que muitas vezes já doei tempo e talentos – mesmo sem ter plena compreensão disso – a uma causa que não salvava o mundo, mas apenas maximizava a violência ideológica e suas consequências.
Infelizmente, continuo e certamente continuarei a cometer erros de julgamento e a errar em minhas ações. Mas espero que minha “fé” (=assensus, fiducia, fidelitas, visio) também continue a me mostrar o caminho, continue a me apontar os erros que cometo, e continue a ser minha motivação para mudanças.
+Gibson da Costa