“Tomé, chamado Gêmeo, que era um dos Doze, não estava com eles quando Jesus veio. Os outros discípulos disseram para ele: “Nós vimos o Senhor.” Tomé disse: “Se eu não vir a marca dos pregos nas mãos de Jesus, se eu não colocar o meu dedo na marca dos pregos, e se eu não colocar a minha mão no lado dele, eu não acreditarei.”
Uma semana depois, os discípulos estavam reunidos de novo. Dessa vez, Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou. Ficou no meio deles e disse: “A paz esteja com vocês”. Depois disse a Tomé: “Estenda aqui o seu dedo e veja as minhas mãos. Estenda a sua mão e toque o meu lado. Não seja incrédulo, mas tenha fé”. Tomé respondeu a Jesus: “Meu Senhor e meu Deus!” Jesus disse: “Você acreditou porque viu? Felizes os que acreditaram sem ter visto”.
Jesus realizou diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes sinais foram escritos para que vocês acreditem que Jesus é o Messias, o Filho de Deus. E para que, acreditando, vocês tenham vida em seu nome. (João 20:24-31)
No último curso de preparação para confirmação que tivemos aqui, pelo menos um jovem disse claramente “Não acredito em Deus” e outros se declararam como sendo céticos ou agnósticos. E, mesmo assim, nós os confirmamos como membros desta congregação.
Crença. Certeza. Dúvida. Fé. No Cristianismo ocidental contemporâneo, especialmente no meio protestante brasileiro, essas palavras passaram a significar certas coisas, passaram a carregar em si um certo peso. Mas há um grande problema com o uso dessas palavras, por causa das noções que vêm atreladas a elas.
Quando alguém me diz “Não acredito em Deus”, como vários jovens já me disseram e como aquele jovem repetiu no curso de preparação para a confirmação, minha resposta tem sempre sido: “Me fale um pouco sobre esse Deus no qual você não acredita – eu provavelmente também não acredito nele”.
O que geralmente se fala no meio cristão é que Deus é um ser sobrenatural onisciente e todo-poderoso que age com intenção e intervém na história humana. Muitas pessoas acreditam que Deus tem uma vontade, um plano para a humanidade, e que Deus manipula os eventos em nossas vidas, como se fôramos marionetes.
As crenças que se tornaram padrão no Cristianismo incluem a aceitação de que a Bíblia seja de alguma forma uma comunicação da mensagem de Deus e plano para como devamos viver juntos como comunidade humana. A ortodoxia cristã inclui as crenças em Jesus como filho único de Deus, sendo divino e humano em sua natureza, e que ele foi o mensageiro da vontade de Deus e que morreu para reconciliar uma humanidade caída e corrupta com Deus.
O problema que muitos de nós aqui nesta sala tivemos é que, em algum ponto, essas crenças não são mais críveis, não fazem mais sentido. Mas porque é assim que o Cristianismo é ensinado e compreendido na cultura brasileira, não acreditar naquelas doutrinas significa que se está pisando fora do território do Cristianismo.
Um amigo meu está no meio dessa jornada de não mais acreditar na verdade literal da mitologia de nossa narrativa cristã, e me disse: “Acho que não posso continuar a ser cristão”. Como ele, um grande número de pessoas está abandonando a fé, ou ridicularizando-a, ou foi deixado com um senso de perda e desespero por causa do como identificamos a aceitação de doutrinas – algumas delas antigas e sem sentido – como sendo a verdade sobre a experiência religiosa cristã.
É exatamente aí que me afasto plenamente da ortodoxia cristã. Não creio que o Cristianismo possa ser definido como sendo o que acreditamos. Não em sua essência. Não em seu início. Penso que se tornou isso, mas não penso que seja isso que ele deva ser.
A passagem que eu li do evangelho de João fala um pouco sobre isso. A narrativa sobre o duvidoso Tomé e como ele teve de tocar a ferida de Jesus antes de poder acreditar tem sido interpretada e usada através dos séculos para tentar incutir culpa nas pessoas, para forçá-las a abandonar suas dúvidas e fazê-las aceitar algo que é inacreditável – que Jesus apareceu em carne após ter sido executado. Tomé é ridicularizado e usado como um exemplo do que não deveríamos ser, como se para que nossa fé fosse vista como mais autêntica, não exigiríamos tais provas.
Há vários níveis no livro de João, e ele, como um livro e como um documento teológico, tem um relacionamento único com o evangelho de Tomé – e não é por acaso que o discípulo duvidoso nesta narrativa é chamado de Tomé. E, tanto no evangelho de João como no de Tomé, o que é importante é que se acredite. Não em nome da própria crença, mas por causa de onde ela lhe levará.
Em seu início, o Cristianismo era uma experiência que as pessoas tinham. Era um visão radical de comunidade inclusiva. Uma nova sociedade que praticava um amor transformador. Crer na possibilidade disso, comprometer sua vida com isso, vivendo essa realidade, isso é que era o Cristianismo – e é isso que eu penso ser o Cristianismo agora. Há uma pista disso naquela passagem de João – mesmo estando pavimentada com a linguagem da crença.
Os últimos dois versos dizem o seguinte: “Jesus realizou diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes sinais foram escritos para que vocês acreditem que Jesus é o Messias, o Filho de Deus. E para que, acreditando, vocês tenham vida em seu nome”. Em outra parte do livro de João, lemos que Jesus tenha dito: “Eu vim para que vocês tenham vida, e a tenham de forma plena” - outras traduções dizem: “e a tenham em abundância”.
O Cristianismo não é, creio eu, sinônimo de aceitação de noções não científicas a respeito da origem do universo, ou que Maria tenha sido uma virgem, ou que Jesus tenha andado sobre a água. Não é sinônimo de aceitar Deus como sendo um ser todo-poderoso que tenha um plano específico ou que tenha poder sobre a decisão dos brasileiros nas próximas eleições presidenciais, nos resultados da Copa ou sobre o tempo. Não é sinônimo de como pensamos que o mundo terminará ou se há ou não uma vida pós-mortal.
Para mim, a experiência religiosa é abraçar o mistério que nos cerca. É reconhecer que há algo sagrado nesta vida que vivemos. Que há um ímpeto à criação que nos traz vida, e nos move em direção ao bem e eleva na humanidade uma resposta de admiração diante da vida. É a fonte de nossa poesia, de nossa música, e da profunda ligação que sentimos com as pessoas que amamos e com a própria criação. É isso que nos move à gratidão e, às vezes, nos faz cair de joelhos.
Escolho permanecer dentro da tradição cristã, porque ela é meu lar. Fui criado nela, eu a compreendo, sua linguagem e seus rituais me tocam. Mas não penso que o Cristianismo seja exclusivamente certo ou que seja melhor que qualquer outro caminho religioso que nos levará à essência da experiência humana – a essência que identifico como Deus.
Essa essência, esse caminho sagrado de vida, é o que nos faz formar uma comunidade, é o que dá sentido a nossas vidas, e é o que nos convoca ao trabalho pelo bem-estar de toda a família humana e de nosso planeta. Isso é Deus para mim, isso é fé religiosa para mim, e é nisso que eu acredito.
E como aqui em nossa comunidade não exercemos monólogos, convido todos vocês a participarem desse diálogo. Você acredita em Deus?
[Sermão na Congregação Unitarista de Pernambuco. Domingo, 16 de maio de 2010.]