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sábado, 26 de janeiro de 2013

A religião como algo maior que a crença


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Durante esta semana, me envolvi em três discussões interessantes sobre crença e religião – com diferentes pessoas e em diferentes contextos, mas com os argumentos seguindo o mesmo caminho conceptual: a fé religiosa, na compreensão de meus interlocutores, é identificada com crença; sua compreensão é que a fé religiosa seja necessariamente sinônimo de aceitação de dogmas. Felizmente, meus colegas não poderiam estar mais equivocados!

Acredito que a razão básica pela qual tantas pessoas pensem assim seja por estarem acostumadas à preocupação cristã com ortodoxia: a fé como sinônimo de assensus, ou seja, a fé como uma função intelectual de aceite duma formulação da crença correta. Assim, a maioria dos herdeiros da tradição cristã não se dá conta de que o termo “fé” possui diferentes sentidos no Cristianismo – assim como também para outras tradições de fé jordânicas (o Judaísmo e o Islã). Essas pessoas não se dão conta de que, por exemplo, mesmo nas tradições “ortodoxas” da Igreja ocidental – i.e., o Catolicismo Romano, o Luteranismo, o Anglicanismo, e as variadas tradições reformadas etc – há não apenas uma preocupação com a fé enquanto uma afirmação intelectual, mas também como prática. Assim, falamos não apenas em ortodoxia (crença correta) – que parece ser uma obsessão, especial e surpreendentemente para aqueles que estão fora da igreja (e eu poderia apontar um sem número de razões para isso, mas vou deixar isso de lado!) –, mas também em ortopraxia, isto é, na prática correta.

A preocupação com a ortopraxia é uma marca de tradições como o Judaísmo e o Islã, mas também é parte integrante do Cristianismo – apesar de a história da Igreja ocidental ser marcada, por inúmeras razões, por uma preocupação com a “correção” teológica, e isso fazer com que as pessoas (especialmente aqueles que tendem a reduzir a religião a um instrumento de “dominação” ou a enxergá-la a partir da ótica funcionalista) não consigam ver as variadas facetas fenomenológicas da fé religiosa. Cristãos liberais como eu não rejeitam a importância da fé como assensus, apenas compreendemos esse aspecto da fé como sendo secundário, enfatizando muito mais o fazer do que o crer.

A Reforma Protestante, com sua ênfase na fé como assensus, e sua rejeição das obras como instrumento salvífico, acabou por criar no inconsciente de muitos protestantes, com o passar do tempo, uma antipatia para com preocupações com nossas ações. Entretanto, nós protestantes liberais, encontramos nossa compreensão da religião como uma prática enraizada na própria narrativa bíblica. Gosto de pensar sempre neste trecho do Novo Testamento:

Meus irmãos, se alguém diz que tem fé, mas não tem obras, que adianta isso? Por acaso a fé poderá salvá-lo? Por exemplo: um irmão ou irmã não tem o que vestir e lhes falta o pão de cada dia. Então alguém de vocês diz para eles: “Vão em paz, se aqueçam e comam bastante”; no entanto, não lhes dá o necessário para o corpo. Que adianta isso? Assim também é a fé: sem as obras, ela está completamente morta. Alguém poderia dizer ainda: “Você tem a fé, e eu tenho as obras.” Pois bem! Mostre-me a sua fé sem as obras, e eu, com as minhas obras, lhe mostrarei a minha fé.” (Tiago 2:14-18)

Esta é apenas uma citação bíblica que trata dessa preocupação com a maneira como damos vida à religião em nosso dia a dia, e para mim (que tenho um pé na tradição teológica luterana), uma das mais emblemáticas – já que parece contradizer a compreensão de Lutero (não vou entrar aqui na discussão do por quê essa aparência é equivocada, em minha compreensão!). Seja como for, o Cristianismo é amplo demais para ser reduzido à tradição do “cremos”. Também, respondendo ao que alguns comumente me dizem, uma religião que trata a “crença” teológica como algo secundário não é apenas uma “filosofia”, e essa parece ser uma ideia compartilhada pelo próprio autor da já citada Epístola de Tiago:

Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo.” (Tiago 1:27)

Minha compreensão pessoal é a de que a religião seja uma prática, uma ética e um modo de vida moldados por minhas crenças teológicas. Essas crenças – a fé como assensus – são muito importantes, mas desempenham um papel extremamente menor do que aquilo que minha tradição de fé me ensina ser esperado de mim em minhas ações para com todas as pessoas que me cercam, e para com toda a criação.

+Gibson

2 comentários:

  1. Oi, Gibson, fazia um tempo que eu não visitava o seu blog, mas aqui estou eu de novo!
    Gostei muito de seu texto. A epístola de Tiago é um dos meus textos preferidos do Novo Testamento. E eu justamente queria ler mais sobre o seu comentário entre parênteses a respeito de Lutero. Eu já tinha ouvido falar que Lutero queria eliminar essa epístola da sua versão da Bíblia, mas não sei se isso é verdade. Eu gostaria de ler a sua opinião!
    Um abraço unitarista!
    Bruno

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  2. Ei Bruno! Bom ter você de volta por aqui novamente!

    Tenho uma ligação teológica e emocional muito grande com a Epístola de Tiago. Emocionalmente, a linguagem judaica do texto fala muito à minha própria herança cultural; e, teologicamente, o texto está muito ligado à minha tradição cristã liberal, especialmente ao chamado Evangelho Social protestante.

    Quanto à questão da canonicidade, a questão é mais complexa do que um simples “sim” ou “não” implicariam. A abordagem de Lutero ao problema está relacionada à sua noção de “justificação pela fé”, que parece (e deixe-me enfatizar o verbo aqui: “parece”!) contradizer a teologia do autor de Tiago. Para ser bem objetivo: não é que Lutero quisesse eliminar a Epístola de Tiago do Novo Testamento – ele não poderia fazê-lo, já que ele não rejeitava a tradição da Igreja concernente às Escrituras; o que acontecia é que ele classificava as Escrituras com base em sua ênfase doutrinária: a Epístola de Tiago, para ele, possuía um “problema” (minha expressão), a ênfase nas obras – que, como você sabe, não parece ser reconciliável com o seu “somente a fé”. Essa epístola do Novo Testamento era utilizada pelos teólogos escolásticos como parte da justificativa bíblica para sua noção de “fides caritate formata” (que a fé é moldada pela caridade) – i.e., Deus inspiraria a caridade na alma do cristão, a ponto de fazê-lo obedecer aos mandamentos divinos, e as obras advindas dessa obediência tornavam-no merecedor da vida eterna (para esses teólogos, essa era a justificação pela fé). Numa série de escritos, Lutero desenvolve a noção de que não são nossas boas obras que alcançam o mérito para a salvação. Entretanto, é importante lembrar que ele nunca escreveu (ao menos, em nenhum texto seu que tenha sobrevivido!) que as boas obras ou a obediência aos “mandamentos” estivessem fora do jogo! Para ele, havia, pelo menos (há mais coisas que podem ser discutidas, mas é algo muito técnico pra ser tratado aqui!), duas vias para a justiça: uma de Deus para conosco, e outra de nós para com Deus e o próximo. Ele fala sobre boas obras em seu “Das Boas Obras”, na qual fala de duas classes de boas obras: as certas, e as erradas. Nenhuma boa obra verdadeira pode existir aparte dos mandamentos de Deus – e essas, para ele, consistem em absolutamente tudo o que fazemos em nossas vidas, desde que com confiança em Deus. Não são ações apenas relacionadas à vida religiosa – como alguns poderiam supor –, mas envolvem nossas relações com o todo da vida e da criação (ele tem uma visão bem relacional da questão das obras). A diferença entre a visão de Lutero e a de outros teólogos cristãos anteriores a ele é que ele afirma que nossas ações per se não são capazes de nos justificar (=favorecer) diante de Deus; elas só funcionam juntamente com nossa fé – que, como sempre digo, para ele não se limita à crença, mas é um poder relacional que nos une a Deus.

    Bem, na verdade, isso não encerra a questão, Lutero não é um teólogo tão fácil de apreender. Há escolas teológicas muito distintas na tradição luterana que constroem interpretações muito diversas do pensamento de Lutero. A tradição finlandesa tende a ter um impacto maior em minha leitura de Lutero – é bom que saiba, entretanto, que nem todos aqueles que estudam o pensamento de Lutero concordariam com a visão que expus aqui. Mas espero que isso possa ajudá-lo a entender um pouco da questão.

    Abraços unitaristas para você também!

    +Gibson

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