Olá
Sarah!
Bem, duma
certa forma, já respondi a essa mesma questão sobre veracidade da
Bíblia em diferentes ocasiões aqui, e meu pensamento continua a ser
basicamente o mesmo nessa questão. Não posso pensar numa resposta a
essa questão sem fazer outras perguntas para decidir o que é
essencial e relevante nas Escrituras para minha relação com Deus. A
primeira pergunta a fazer, talvez, seja “O que é a Bíblia, afinal
de contas?” – a resposta que dou a essa pergunta definirá a
resposta que darei à sua questão. Se a resposta for algo como “A
Bíblia é a Palavra literal de Deus, e não humana, infalível, sem
erros, inquestionável” etc, então fim de história; não posso
tentar descobrir diferentes níveis de sentido em suas palavras;
ponto final. Claro que, se assim pensasse, estaria ignorando tudo o
que sei sobre a forma como o mundo e a sociedade funcionam, sobre a
mente humana, sobre as leis da física, sobre a história de Israel e
da Igreja etc. Essa, obviamente, não é a resposta que eu ofereceria
a essa pergunta!
A Bíblia
é, em minha compreensão, um livro humano (na verdade, um conjunto de livros), escrito por seres
humanos, e que se tornou sagrado por meio dum processo de
canonização. A Bíblia não nasceu como Escritura Sagrada, ela foi
tornada sagrada por meio dum longo processo que demorou séculos. A
história da Igreja cristã mostra como esse processo foi complexo e
quão ligado ele está àquilo que costumamos chamar de “tradição”
– por isso, podemos dizer que a Bíblia é, na verdade, um produto
da tradição de duas comunidades distintas, a antiga Israel e a
Igreja. A complexidade reside, parcialmente, no fato de que essas
duas tradições são múltiplas; por exemplo, no caso da Igreja
cristã, não havia no início da história da Igreja (como não há
hoje) uma forma única de ser cristão nem uma concordância absoluta
sobre todos os pontos doutrinários da tradição. Assim, Jesus, por
exemplo, foi compreendido de diferentes formas – i.e., quando os
cristãos ouviam (sim, porque a maioria deles não liam, mas ouviam!)
os relatos de determinado Evangelho que era lido em sua comunidade
(nem todas as comunidades tinham acesso a todos os Evangelhos que
hoje chamamos de canônicos), esse relato podia ser compreendido de
diferentes formas, a depender do pensamento preponderante naquele
meio. Só após o Cristianismo tornar-se a religião oficial do
Império Romano é que surge a preocupação com uniformidade de
crenças – já que para que se tornasse um braço do Estado romano,
era importante que a Igreja apresentasse-se de uma única forma. Após
séculos e séculos de toda a construção duma tradição de
leitura, parece ser anormal que determinados relatos das Escrituras
sejam lidos de maneira diferente daquela estabelecida pela tradição
“católica” (com este termo não me refiro apenas ao Catolicismo
Romano, mas ao pensamento cristão dominante no Ocidente).
Na
história da Igreja se desenvolveram diferentes formas ortodoxas de
interpretação das Escrituras – tradições hermenêuticas que,
conjuntamente, ainda são reconhecidas pelas grandes famílias
cristãs (católicos romanos e orientais, e protestantes).
Tradicionalmente, na Igreja Oriental, existiam duas grandes
tradições, uma centrada numa interpretação literal que apelava ao
sentido alegórico das Escrituras (chamada de Escola
Alexandrina de exegese bíblica –
cujos membros incluíam Clemente e Orígenes, por exemplo); e outra
que apelava ao contexto histórico para interpretá-las (chamada de
Escola Antioquina
de exegese bíblica – Diodoro de Tarso e João Crisóstomo, por
exemplo, eram parte dessa tradição). Ademais, podemos pensar em
três tradições de interpretação das Escrituras na Igreja
Ocidental: 1) A do Bispo de Milão, Ambrósio,
que desenvolveu uma compreensão tripla do sentido das Escrituras →
um sentido natural, um sentido moral, e um sentido racional; 2) A de
Agostinho de Hipona,
que defendeu uma compreensão dupla do sentido das Escrituras → um
sentido histórico, e um sentido espiritual; e 3) a Quadriga,
que foi o método interpretativo padrão no Ocidente, durante a Idade
Média, e buscava quatro sentidos básicos nos textos das Escrituras
→ um sentido literal, um sentido alegórico, um sentido moral
(tropológico), e um sentido anagógico (um sentido que nos conduza a
Deus). [A Igreja Católica Romana, por exemplo, em seu Catecismo
oficial, faz uso de todos esses elementos em sua interpretação das
Escrituras – veja mais em: CATECISMO
DA IGREJA CATÓLICA. 4ª ed.
Petrópolis:
Vozes; São Paulo: Loyola; Paulinas; Ave-Maria; Paulus; 1998. p.
41-42.)
Minha
maneira de interpretar as Escrituras se ancora numa combinação de
todas essas tradições. Assim, busco um sentido metafórico (mais
que real) nas Escrituras, tendo como guia a compreensão do contexto
histórico de seus textos, e desses na Igreja cristã. Como sou um
homem que vive no mundo moderno, que é influenciado pela ciência e
pela filosofia de minha própria época – e não pela filosofia do
mundo grego antigo, como os primeiros cristãos –, então é mais
que normal que minha leitura esteja condicionada por meu próprio
contexto histórico. E mais, nesse processo de interpretação, entra
minha experiência pessoal no mundo real – o que chamo de senso
comum. É a combinação de tudo isso que me leva a entender as
narrativas bíblicas duma forma que pode ser muito diferente daquela
dos primeiros cristãos, por exemplo – muito provavelmente,
diferente da leitura que o próprio Jesus fazia… É uma questão de
escolha, uma questão de integridade intelectual – e,
consequentemente, moral!
Não
pense que isso seja fácil. Não é. Se prestar atenção, isso faz
com que eu rejeite certos conceitos que outros cristãos fiéis –
talvez a maioria deles – julgam imprescindíveis. Enquanto acredito
na possibilidade da permanência de muitas verdades, outras, para
mim, são temporárias e secundárias, já que estão condicionadas a
determinadas experiências históricas. Como conciliar, por exemplo,
o papel atribuído por Jesus – ao menos, de acordo com os
Evangelhos – às mulheres com aquele a elas atribuído supostamente
pelo apóstolo Paulo? Nos relatos sobre Jesus, as mulheres estão no
centro – ele quebra todas as regras sobre a separação entre
homens e mulheres –, mas, para Paulo, as mulheres deveriam
continuar em seu papel de submissão à autoridade masculina. Como
lidar com este problema? Os dois relatos não podem ser vistos como
sendo absolutamente “verdadeiros”, já que se contradizem!…
Minha resposta: a única solução é entender qual seja a mensagem
básica do Evangelho, e, a partir daí, decidir o que se encaixa
nessa visão, e o que é apenas tradição cultural – pode soar
muito herético para aqueles que se declaram “cristãos bíblicos”,
por exemplo, mas eles mesmos fazem isso de sua própria forma (na
verdade, todos nós o fazemos o tempo todo!).
Para
esclarecer o que penso sobre a maneira como Jesus compreendia Deus e
sua relação com o Divino, deixe-me afirmar que Jesus era um judeu.
Como judeu, Jesus provavelmente compreendia Deus de diferentes
formas, dependendo do momento – já que sua tradição de fé não
possuía uma declaração teológica como os credos cristãos,
definindo Deus de forma objetiva. Deus era uma Realidade que podia
ser definida de forma positiva quanto negativa – ou seja, Deus era
e Deus não era etc. Eu discordo que a visão que Jesus tinha de Deus
fosse “teísta”, já que essa visão (quando historicamente
definida) emerge apenas a partir do encontro do movimento de Jesus
com o pensamento grego. Para que Jesus fosse um teísta, ele teria
que possuir uma visão objetiva de Deus como algo que pudesse ser
quase que matematicamente definido – e isso não surge até mais
tarde. O que podemos afirmar é que Jesus certamente possuía uma
visão de Deus como uma Realidade pessoal, e mais que pessoal – mas
dizer isso não é o mesmo que dizer que ele fosse um teísta!
Essas
questões dogmáticas não geram constrangimento entre nós
unitaristas, pois a maioria de nós – ou pelo menos dos ministros
unitaristas – as tratariam da forma como as estou tratando com você
agora: sem oferecer uma definição objetiva em nome de todos! Assim,
posso dizer a você: sim, Deus, Jesus, ressurreição, vida eterna
etc, são temas importantes para mim – só que, aceito que
diferentes pessoas compreendam esses temas de diferentes formas,
desde que sua conclusão seja dirigida pelos princípios que julgo
indispensáveis ao Evangelho, e que resumo com uma frase em latim –
sola caritas (só a
compaixão, a caridade, o amor). Isso porque os Evangelhos e as
demais Escrituras ensinam que Deus é amor e que somos chamados a
amar, então esse amor deve ser o padrão de minha compreensão da
mensagem de Cristo; não o “amor” enquanto uma palavrinha da moda
para mostrar o quão legal sou, mas o amor enquanto uma força de
transformação de mim mesmo e do mundo ao meu redor – um amor que
deve se manifestar em como trato o próximo, cuido do planeta,
respeito aos diferentes de mim, recebo meus inimigos à minha mesa,
voto em meus representantes, cumprimento aos estranhos etc; é uma
forma dolorosa e desconfortável de ler a Bíblia e a tradição
cristã.
Isso
é enfatizar só aquilo que me convém?! É claro que é! Acredito e
tento praticar essas coisas, leio as Escrituras e a tradição dessa
forma porque, de certa forma, isso é conveniente. Da mesma forma
como é, em algum nível, conveniente para todas aquelas pessoas que
acreditam em outras coisas acreditarem naquilo! Como vivemos numa
sociedade na qual somos livres para escolher nossa religião,
escolhemos aquilo que nos é conveniente! Isso não desacredita minha
fé mais do que desacreditaria a fé de nenhuma outra pessoa, já que
todas elas – mesmo que não estejam plenamente cientes disso –
escolherem a tradição onde, pelo menos, se sentiam mais satisfeitas
(e isso, em si, já é uma forma de conveniência!). Mas, se escolho
um caminho no qual a mulher e o homem, o heterossexual e o gay, terão
acesso a Deus da mesma forma; se escolho uma tradição na qual minha
visão científica não tenha de ficar do lado de fora, quando
atravesso as portas da igreja, sendo forçado a fingir que acredito
em outra coisa e não sendo íntegro comigo mesmo e com os outros,
esta é uma questão de fé pessoal – é assim que experiencio
Deus!
Poderia,
talvez, escolher falar aqui sobre minhas crenças pessoais sobre
ressurreição, Deus, a natureza de Jesus etc. Entretanto, a não ser
que esteja em discussões teológicas muito específicas, escolho não
o fazer, porque julgo ser esse tipo de discussão irrelevante para
mim. Concordo quando você diz, por exemplo, que o mesmo Paulo que
fala sobre amor, fala sobre ressurreição – mas, para este mesmo
Paulo (isso se eu acreditasse que os autores de todas as cartas que
levaram seu nome fosse a mesma pessoa!), diferentemente de Jesus, eu
sequer poderia estar trocando mensagens com uma mulher! Então, como
pode ver, é realmente uma questão de se fazer escolhas!
Como
poderia te ajudar se me recuso a dar uma resposta sobre o que é
“verdadeiro” ou não nas Escrituras? [Já discuti várias vezes
neste blog o sentido que dou ao termo “verdade”: em se tratando
de minha fé, o termo não é sinônimo de factualidade!] Não sei.
Penso que a única pessoa que pode construir uma resposta que lhe
seja satisfatória é você mesma: você tem de fazer escolhas que
levem em consideração sua relação com o Divino, a pessoa que você
é, a maneira como compreende o mundo, sua experiência de vida etc.
Só assim você descobrirá o que é verdade, e, talvez, poderá
descobrir que a verdade é algo que toma diferentes formas em
diferentes momentos da vida, dependendo de um sem número de razões.
Eu continuarei aqui, orando para que você possa alcançar esta
“verdade”, mas não serei presunçoso a ponto de pensar que possa
dizer a você – ou a quem quer que seja – o que é a “verdade”
válida para todos, em todos os tempos, em todos os lugares.
Bençãos!
Espero que possamos continuar nossas conversas e, quem sabe, um dia
vê-la em pessoa!
+Gibson