[De vez em quando, recebo um ou
outro e-mail, ou uma ou outra mensagem aqui no blog, que me deixa acordado
durante a madrugada, pensando sobre a pessoa que me escreveu e como ajudá-la.
Isso aconteceu na noite passada. Recebi uma mensagem através do blog e meu
correspondente (que se identificou como “R”, um batista formado em teologia num
seminário “evangélico” e, hoje, distanciado de sua igreja por ser homossexual)
não deixou um e-mail para contato, então tentarei respondê-lo aqui mesmo. O que
segue é uma resposta a cada um dos pontos levantados por “R”.]
Caro “R”:
Não, você não está sozinho! Há
inúmeras pessoas, homens e mulheres, na Igreja cristã como um todo, que se
reconhecem como “homossexuais” e como cristãs ao mesmo tempo. E por que deveria
ser diferente? Por que elas deveriam separar uma coisa da outra?
Você me relatou sobre a conversa
que teve com o ministro da igreja que costumava frequentar. Tenho certeza que
ele acreditava estar lhe dando os melhores conselhos, e que aquilo o ajudaria a
ser mais feliz. Mas, ao que parece, ele confundiu homossexualidade com crime –
e isso é, no mínimo, uma opinião teológica, filosófica, sociológica,
psicológica e juridicamente desinformada.
Os seres humanos são extremamente
complexos. Somos, no que tange aos aspectos biológicos, muito semelhantes aos
outros mamíferos; mas, em outros aspectos – ao menos aparentemente –, somos
muito diferentes. Nós temos a capacidade – supostamente, única entre os seres
deste planeta – de refletir criticamente sobre nós mesmos e sobre nossa relação
com o visível e o invisível. Temos a capacidade de aprender diferentes tipos de
linguagens, técnicas, métodos, ideias, etc, etc, etc. Somos seres espirituais,
que buscam sentido para nossa existência e ações. Somos, em minha compreensão
cristã, “filhos de Deus” – ou seja, mantemos uma ligação com uma Realidade que
ultrapassa nossa compreensão racional.
Mas além de tudo isso que somos,
somos – todos nós – seres sexuais. Mesmo monges que vivam celibatariamente em
mosteiros nos Montes Athos ou no Himalaia, são seres sexuais. Isso quer dizer
que nossos corpos e nossas mentes lidam, no mínimo, com atrações, desejos, interesses,
etc, de “natureza” sexual – mesmo que esses não sejam materializados em ações
voluntárias.
Não posso dizer o que seja certo
ou errado na compreensão que outras pessoas, ou outras tradições cristãs,
tenham da fé cristã. Acredito na verdade relativa das diferentes tradições
teológicas – ou seja, o que uma comunidade pentecostal, por exemplo, aceita
como “verdade” cristã será, para eles, verdade, da mesma forma como o que outra
comunidade cristã veria como sendo verdade para si mesma. Logo, o que penso ser
certo ou errado é válido apenas para mim mesmo ou, no máximo (e apenas em
certos pontos, talvez), para aqueles que compartilhem de [parte de] minha visão
teológica.
Discordo do que aquele ministro
lhe disse quando falou que ser homossexual é uma escolha, por, pelo menos, duas
razões. A primeira razão é que não sei até que ponto se possa dizer que se “é
homossexual”, e não que se “está homossexual”. Não sei se o “ser” homossexual –
que me parece referir-se a algo permanente – acontece com todos, ou se podemos
dizer que alguns “estejam” homossexuais em algum período de sua vida e em
outros não. Essa é uma questão muito complexa para discutirmos aqui, mas creio
que algumas pessoas possam não se sentir num estado de permanência, e sim, num
estado de questionamento de sua orientação emociono-sexual – converso com
muitos jovens que passam por esse questionamento.
A segunda razão, e a mais
importante, é que, em minha experiência, você não escolhe ter uma determinada
orientação emociono-sexual – seja esta heterossexual, homossexual ou bissexual.
Você pode escolher o que faz, uma vez se dê conta dela, mas não pode escolher a
orientação em si. Ao menos, essa tem sido minha experiência. Desde muito jovem
já sabia que me sentia emocional e sexualmente atraído por rapazes, e não por
moças. Isso foi algo que descobri, e não que escolhi. Não me acordei, numa
manhã de verão, e decidi que a partir dali me interessaria por outros rapazes.
Isso foi algo que fui descobrindo a meu respeito com o passar dos anos, desde a
infância. Só na adolescência me dei conta do que aqueles sentimentos
significavam. Não escolhi me sentir daquele jeito, nem aprendi a ser assim de
outra pessoa. O que escolhi foi apenas a forma como lidaria com aqueles
sentimentos.
Para mim, é importante não falar
apenas em “orientação sexual”, mas em “orientação emociono-sexual”. Por
isso, sinto um grande desconforto com o uso dos termos “homossexual” ou
“heterossexual”, etc, já que esses apontam para esse aspecto humano como sendo
apenas algo mecânico. Quando você diz que ama seu companheiro – um outro
homem –, você não está dizendo que apenas tem um interesse sexual por ele; você
está dizendo muito mais que isso – acredito que o aspecto sexual seja apenas um
elemento do que você sente por ele. Isso vale para pessoas de todas as
orientações emociono-sexuais. Um homem que ame sua companheira – uma
mulher –, sente muito mais que apenas atração sexual por ela; novamente, o
componente sexual é apenas uma parte de seus sentimentos por ela. Amar
romanticamente é estar ligado a outra pessoa de forma muito mais complexa e
profunda do que apenas sentir-se atraído física ou sexualmente por ela.
Qualquer pessoa que ame ou já tenha amado outra, romanticamente, sabe disso. [À
propósito, falo em amor romântico pois acredito haver diferentes tipos de amor
– o amor que sinto pelos meus pais ou irmãos não envolve todos os elementos que
o amor que sentiria por meu cônjuge envolveria, por exemplo.]
Assim, quando alguém se refere ao
amor entre dois homens ou duas mulheres como sendo algo apenas físico ou
sexual, está, em minha opinião, sendo intelectualmente desonesto – ao menos,
supondo que essa pessoa já tenha experienciado o amor romântico em sua vida.
Qualquer pessoa, heterossexual ou homossexual, que já tenha amado romanticamente
alguém sabe quão complexa é a ligação que sente pelo objeto de seu afeto.
Obviamente, há relacionamentos que não envolvem amor mútuo, envolvimentos entre
pessoas que não passam de parceiras sexuais – e isso, à propósito, acontece com
pessoas de toda e qualquer orientação emociono-sexual –, mas esse tipo de
relacionamentos não é o objeto de nossa conversa! Entendo que sexualizar a
conversa sobre relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo seja um instrumento
discursivo dos que querem desmoralizar tais relacionamentos – levando em
consideração sua compreensão do que seja pecado e sua noção de moralidade, é
muito fácil convencer que a relação entre pessoas do mesmo sexo seja uma
“abominação” –; mas, por outro lado, a sexualização do debate também por parte
daqueles que se apresentam ou são vistos como “representantes” de todos os
outros “homossexuais” só reforça essa visão distorcida e intelectualmente
desonesta.
Em se tratando da questão mais
explicitamente teológica sobre esse tema, é importante que eu reafirme o que já
é notório aqui: não sou um protestante evangelical, ou seja, não afirmo
encontrar minhas justificativas teológicas exclusivamente nas Escrituras.
Ademais, também não faço uma leitura supostamente literal das Escrituras. Como
um protestante liberal, faço uso conjunto das Escrituras (a Bíblia), da
Tradição, da razão, da experiência pessoal, de certos princípios teológicos
específicos, etc, como instrumentos para minha compreensão teológica. Minha
leitura das Escrituras é moldada por aqueles outros elementos. E, na verdade,
não acredito que absolutamente ninguém faça uma leitura literal
das Escrituras. Nenhuma igreja, nenhum teólogo, nenhum ministro cristão, que
afirme fazer uma leitura literal da Bíblia, conseguiria inquestionavelmente harmonizar
todas as afirmações, interditos etc, bíblicos, já que o conjunto desses textos
se contradiria se fosse lido literalmente e de forma comparativa.
Outra coisa importante é que não
tenho interesse algum em me envolver em discussões sobre passagens específicas
na Bíblia – especialmente na Bíblia Hebraica – que, supostamente, fariam
referência à homossexualidade. Meu conhecimento das Escrituras, em hebraico e
grego, e meu conhecimento das discussões teológicas e eclesiásticas que
envolvem esses escritos, é suficiente para me convencer de que, pastoralmente,
discuti-los é irrelevante para a vida cristã da maioria das pessoas. A
compreensão linguística, histórica e teológica que tenho daquelas passagens é
extremamente distinta das que você aprendeu no seminário onde se formou e na
comunidade da qual era parte. Logo, penso que discutir o sentido desta ou
daquela palavra, deste ou daquele hábito cultural da antiga Israel ou da Igreja
primitiva, etc, etc, etc, provavelmente não fará nenhuma diferença na maneira
como você se sente sobre você mesmo e sua relação com o Divino e com outras
pessoas; e, não fará nenhuma diferença sobre a forma como sua antiga comunidade
compreende a sexualidade humana. Considero mais importante refletir sobre sua
vida à luz de sua própria compreensão de sua fé, construindo uma autonomia
espiritual em relação ao que outras pessoas lhe digam ser certo ou errado – essa
é, devo enfatizar, uma das características históricas do Protestantismo,
especialmente de sua própria tradição batista.
O Cristianismo, em minha opinião
é – e não apenas o Cristianismo – uma fé ética, uma fé que enfatiza as relações
humanas com outros humanos, com o todo da Criação e com Deus. E é com base
nessas relações que se estabelecem, na tradição cristã, as noções de pecado e
retidão. Assim, pecado é aquilo que agride ao próprio indivíduo, aos demais
seres humanos, ao resto da Criação e a Deus. Pecar é violar o valor e a
dignidade do ser humano e da criação, já que todos fomos, metaforicamente,
“feitos à imagem de Deus”. É assim que compreendo o sentido de “pecado”. Logo,
amar, respeitar, honrar, valorizar, apreciar outro ser humano, e se relacionar
com alguém que, voluntária e legalmente, entre num relacionamento com outra não
pode ser descrito como pecado, apenas porque os parceiros são pessoas do mesmo
sexo. [Falo em “legalmente”, já que as leis brasileiras atuais estabelecem
tipos de relacionamentos que são abusivos, como, por exemplo, a pedofilia – na
qual um adulto pode estar se aproveitando da inexperiência ou desvantagem dum
menor, mesmo que o menor em questão pense estar envolvido por sua própria
escolha.]
Em se tratando da classificação
de relacionamentos como sendo “morais” ou “imorais”, me preocuparia com outros
detalhes. Quão “moral” seria a relação entre um homem e uma mulher casados, se
entre eles houvesse desrespeito, desonra ou agressão? Quão “imoral” seria a
relação entre dois homens ou duas mulheres, se entre eles houvesse respeito,
honra e cuidado? Contrapor dois casos extremos assim pode parecer uma
comparação injusta – e é –, mas é essa a lógica utilizada na conversa que você
me relatou. Prefiro pensar que, em termos da moralidade cristã, a preocupação
se centre na presença do “amor” naquela relação – i.e., amor como respeito,
devoção, cuidado, atenção, honra, lealdade etc. Acredito numa ética do
relacionamento, na honra e no valor do compromisso mútuo.
Se estivéssemos tendo uma
conversa acadêmica sobre este tema, faria questão de apontar as origens
históricas das variadas opiniões teológicas cristãs sobre o tema – inclusive
das opiniões teológicas que defendo –, mas, como escrevi antes, você saber como
essas opiniões se desenvolveram, no fim das contas, não alteraria a maneira
como outros compreenderão a questão. Você não pode mudar a forma como os outros
sentem o mundo. O que você pode mudar é a si mesmo: a forma como você enxerga a
si mesmo; como se relaciona consigo mesmo, com outras pessoas e com o resto do
mundo.
Para finalizar, se você realmente
quer saber o que penso sobre cada uma daquelas coisas sobre as quais escreveu,
deixe-me dizer que minha fé me ensina que cada um de nós, você inclusive, é
imensuravelmente importante. Cada um de nós nasce com a capacidade de fazer
tanto o bem quanto o mal, de amar e odiar, de ser feliz ou infeliz. Eu, pessoalmente,
não acredito na noção de que o ser humano seja depravado e mau por natureza.
Acredito, sim, que certos relacionamentos sejam inapropriados, mas o status
moral dum relacionamento romântico não advém do sexo daqueles que se
relacionam. Esse tipo de discussão, entretanto, sempre causará conflitos entre
diferentes pessoas ou grupos – e não apenas entre aqueles que professem uma
religião. Também não acredito que grupos religiosos devam mudar suas doutrinas
para que pessoas sintam-se bem-vindas; afinal de contas, a filiação a uma
comunidade de fé é voluntária, e aqueles que escolhem ser parte de qualquer uma
supostamente estão cientes (ou deveriam estar) dos compromissos que estão
assumindo com aquela comunidade e consigo mesmos. Então, não posso dizer muita
coisa que possa ajudá-lo a lidar com os conflitos com a disciplina duma outra
comunidade de fé, mas posso garantir como há igrejas protestantes aí em São
Paulo onde seria muito bem-vindo independentemente de sua orientação
emociono-sexual e de seu relacionamento conjugal com outro homem. Se tiver
interesse em contatar tais comunidades, envie-me seu endereço de e-mail ou me
escreva diretamente por meio do e-mail de contato em meu perfil.
Grande abraço!
+Gibson
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