Caro Prof. A. Toffer,
Gostei muito de saber sobre sua
experiência e de sua esposa como uma família interreligiosa. Tenho a impressão
de que uma grande parcela das famílias de hoje saibam o que significa ter um
pai, uma mãe, e, talvez, mesmo filhos, que professem religiões distintas umas
das outras – e os desafios que podem advir dessa diversidade, quando há uma
preocupação com a educação religiosa dos filhos. Minha própria experiência de
conviver entre o Judaísmo e o Cristianismo me ensinou a lidar com isso, e foi o
que me guiou no projeto que deu origem ao livro “Building Bridges: Jews and Christians in Interfaith Marriages”
[Construindo Pontes: judeus e cristãos em casamentos interreligiosos].
Escrevi aquele livro em 2004, e
lancei apenas uma edição limitada on demand – cerca de duas mil cópias,
se me recordo bem. Ele se baseou em palestras que proferi numa paróquia da
Igreja Episcopal e num templo judaico Reformista, nos Estados Unidos,
endereçadas a famílias formadas por pais cristãos e judeus. As discussões
centravam-se na construção dum ambiente de respeito e honra pela diferença e em
como lidar com a educação religiosa dos filhos. Os exemplos incluídos no livro
eram de pessoas reais, que compartilharam suas experiências nas palestras, além
de minha própria experiência. A publicação foi distribuída, posteriormente,
apenas aos participantes das palestras, e o que restou foi doado a
interessados. Não o fiz para ser vendido em livrarias. Acho surpreendente que
você tenha conseguido uma cópia num sebo – muito legal!
É bom que eu esclareça,
entretanto, que eu era muito jovem quando escrevi aquilo – tinha 26 anos – e,
portanto, algumas de minhas perspectivas mudaram. Então, se reescrevesse aquele
livro, teria quase uma década de experiência para enriquecê-lo!
Nunca pensei em traduzir o livro
para português, porque não acho que aquele tema seja tão recorrente no Brasil
como o é nos Estados Unidos ou em outros países anglófonos. Em minha comunidade
de fé, por exemplo, há algumas famílias formadas por judeus e cristãos, mas,
como eles já são parte duma comunidade extremamente aberta para essas
diferenças, suas questões são respondidas no dia a dia de sua vida com outros
membros da comunidade.
Para que fique clara minha
posição, não sou um “messiânico”. Não sou um judeu que se tornou um seguidor de
Jesus como o Moschiah; nem sou um cristão que resolveu se “judaizar” – i.e.,
que resolveu seguir certos aspectos da Halachah. Sou um judeu cristão ou um
cristão judeu (quão herético não é isso?!): até certo ponto vivi simultaneamente
as duas tradições, até ter maturidade suficiente para decidir o que era minha
fé pessoal – o Cristianismo –; sem, no entanto, completamente abandonar a
mentalidade e certos aspectos culturais judaicos. Assim, costumo dizer que sou
religiosamente um cristão compromissado e devoto, e intelectual e culturalmente
um judeu questionador e “encrenqueiro”. Minha fé é o Cristianismo, mas esse é
moldado pela herança do Talmud e do debate que herdei da tradição judaica.
Esse reconhecimento de minhas múltiplas
heranças de fé – o Reformismo e o Reconstrucionismo, pelo lado judaico; e o
Anglicanismo e o Unitarismo, pelo lado cristão – é extremamente difícil de ser
compreendido e/ou apreciado por outras pessoas, especialmente aquelas que não
me conhecem. As pessoas, sejam judias ou cristãs, se sentem desconfortáveis e
desafiadas por isso. E essa é uma das razões pelas quais falo muito pouco sobre
isso em público hoje em dia (apesar de, geralmente, falar sobre algumas de
minhas experiências pessoais, para que possa haver uma ligação humana entre eu
e meus ouvintes ou leitores). Se falar sobre minhas múltiplas heranças cristãs
já cria um certo desconforto para alguns, imagine quando incluo o Judaísmo
nessa equação! E entre os judeus, reconhecer qualquer ligação com o
Cristianismo já me tornaria um “herege”!
Para mim, as reações que a
maioria dos fiéis demonstra são compreensíveis. Afinal de contas, há um
importante aspecto identitário na religião, especialmente quando se trata duma
religião “étnica” como o Judaísmo. O sentido identitário das tradições judaicas
estão atreladas à própria experiência histórica do chamado “povo judeu” (uma
expressão que não aprecio muito, por carregar em si uma noção essencialista de
identidade) com a Igreja cristã ao longo dos séculos, e é isso que torna algo
aparentemente tão simples como uma árvore de natal uma afronta tão dolorosa
para muitos judeus. Entretanto, não custa lembrar que a questão da identidade
judaica não é tão simples quanto professar um credo religioso. E isso é muito
importante para famílias como as nossas.
A pergunta é: quem é judeu,
afinal de contas? E a resposta depende de a quem, onde e quando você pergunta.
Dizer que judeus são aqueles que professam o Judaísmo é uma meia verdade, já
que não há um “Judaísmo” único, e as divisões religiosas entre os judeus são tão
graves quanto a que há – na imaginação judaica – entre judeus e não-judeus. Na
realidade, é razoável dizer que, se pensássemos nos judeus como um “povo”, o
que mais os dividiria seria os “judaísmos” (i.e., as diferentes expressões da
fé judaica). A religião, assim, é, para a maioria daqueles judeus que cresceram
expostos à sua tradição, um aspecto secundário da identidade judaica.
O senso identitário judaico
emerge muito mais do nascimento do que dum compromisso pessoal com um credo
religioso. É da história familiar que se constrói uma ligação com os demais
judeus, e essa ligação se estende através das gerações passadas até os
patriarcas. E isso é parte do senso identitário não apenas de judeus comprometidos
com as tradições religiosas propriamente judaicas, mas também daqueles que não
se veem como religiosos e – em minha experiência – daqueles que professam outra
fé que não o(s) Judaísmo(s).
A lei judaica oferece uma
resposta simples à questão identitária. A identidade judaica define-se por meio
do nascimento ou da conversão. No que concerne à sua experiência, e também à
minha, as tradições ortodoxas definem como judeu aquele que tenha nascido de
pai e mãe judeus, ou, de uma mãe judia e de um pai não-judeu (as tradições
liberais consideram o filho duma mãe não-judia como judeu, desde que o pai seja
judeu e o filho tenha sido criado como judeu). Essa identidade atrelada à
ligação histórica familiar é – para a maioria dos intérpretes da lei judaica –
inapagável, mesmo que você não pratique ou professe o Judaísmo. Assim, para
mim, não deixo de ser judeu apenas por não praticar o Judaísmo como religião,
já que minha ligação com outros judeus ser de outra natureza.
Você me pergunta como lido com
isso enquanto um ministro religioso, e como creio que conheça bem a obra de Immanuel
Kant, utilizá-lo-ei para dar-lhe uma ideia de minha solução ao problema.
Kant, no texto “O que é a Ilustração?” [Was ist Aufklärung?], escreve:
“[…] Do
mesmo modo também o sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos discípulos
do catecismo ou à comunidade, de conformidade com o credo da Igreja a que
serve, pois foi admitido com esta condição. Mas, enquanto sábio, tem completa
liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas
ideias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de
errôneo naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição
da essência da religião e da Igreja. Nada existe aqui que possa constituir um
peso na consciência. Pois aquilo que ensina em decorrência de seu cargo como
funcionário da Igreja, expõe-no como algo em relação ao qual não tem o livre
poder de ensinar como melhor lhe pareça, mas está obrigado a expor segundo a
prescrição de um outro e em nome deste. Poderá dizer: nossa igreja ensina isto
ou aquilo; estes são os fundamentos comprobatórios de que ela se serve.
[…]”
Nesse pequeno trecho, ele
compartilha uma ideia que tenho abraçado em meu compromisso com a Igreja.
Enquanto um ministro ordenado duma comunidade de fé, quando ensino ou celebro
liturgias no contexto daquela comunidade, estou limitado aos compromissos que
assumi com ela. Em minha espiritualidade pessoal, não devo explicações a
outros. Logo, se escolhesse seguir as regras de cashrut, acender velas de
shabat, manter mezuzot às portas de minha casa, etc, ao mesmo tempo em que
mantenho todas as minhas tradições cristãs, esse seria um problema apenas meu,
já que não interferiria em nada com a vida de outras pessoas. Escolho apenas
ser honesto sobre minha compreensão de fé com meus paroquianos e amigos.
Qualquer um que conheça minhas perspectivas teológicas, não verá nenhuma
contradição nisso. Ademais, é também uma questão de integridade intelectual, no
que tange ao meu lidar comigo mesmo.
No final das contas é muito
semelhante à maneira como cristãos e judeus, por exemplo, lidam com sua
tradição de fé e a cultura da qual são parte. Sempre há uma mescla das duas,
mesmo para aqueles que acreditam estar à parte do chamado “mundo secular”. Isso
é semelhante ao que pode ocorrer num lar onde há mais de uma tradição cultural
(o que inclui a religião). Se todos cederem um pouco, criando um espaço de
diálogo e apreciação pela diferença, a família é fortalecida. No caso duma
família judaico-cristã, por exemplo, pode haver o cuidado para não se criar
ofensas por meio de símbolos religiosos, pode-se alterar expressões utilizadas
em orações judaicas e cristãs para haver uma inclusão e não exclusão, etc – mas
essas sugestões você pode encontrar no livro. É tudo uma questão atitudinal.
Minha experiência é que, de qualquer jeito, uma família religiosamente mista já
não é “ortodoxa” (nem para a perspectiva judaica nem cristã), então não estará
fazendo mal nenhum se ajustar certas tradições para manter-se unida. O fato é
que isso não é nem um pouco fácil e exige um grande esforço não só por parte
dos pais, como também de seus familiares – que afetarão a maneira como os
filhos compreenderão sua identidade familiar.
Seja como for, se eu puder ajudar
com algo mais específico, conte comigo – só não esqueça de deixar um e-mail
para contato, ou, melhor, escreva-me por meio de meu e-mail (que você pode
encontrar no meu perfil ao lado). Há comunidades judaicas em São Paulo que
podem ajudá-los com questões referentes à educação judaica de seus filhos, e
onde o fato de serem uma família religiosamente mista não será um empecilho
para encontrarem apoio pastoral. Mas, se tiver interesse nos contatos, me
escreva em privado.
Um grande abraço, e saiba que
manterei você e sua família em minhas orações e pensamentos.
+Gibson
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