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terça-feira, 15 de abril de 2014

Páscoa 2014: Nascimento, Morte, Ressurreição e a Coreografia Pascoal


A tradição cristã é, para mim, uma multiplicidade de narrativas de nascimento, morte e ressurreição. Isso fica muito claro quando pensamos naquelas duas datas mais importantes do calendário cristão, o Natal e a Páscoa, e como elas moldam o mover da fé cristã na coreografia da relação entre o Divino e nós, e entre nós e o resto da criação. A entrega à linguagem metafórica do nascimento, morte e ressurreição de Cristo em celebrações como o Natal e a Páscoa é um exercício espiritual importante para cristãos liberais como eu, geralmente vistos apenas como questionadores das narrativas cristãs ditas “ortodoxas”.

Em minha compreensão, a jornada cristã é um caminho de nascimento, morte e ressurreição que se repete continuamente na vida daquele que se compromete com o Caminho. E as diferentes interpretações cristológicas, das mais variadas tradições cristãs, incorporam essa metáfora do nascimento, morte e ressurreição em sua linguagem teológica. Em minha própria experiência, nossa jornada cristã pode ser deveras enriquecida se dermos ouvidos a essas diferentes narrativas.

Assim, numa compreensão mais “ortodoxa”, Deus toma sobre si nossa humanidade por meio da Encarnação – na pessoa de Jesus Cristo –, sofre e dá sua vida em favor da Criação, e, em seguida, ressuscita; e esse movimento garante uma companhia salvadora, isto é, o sofrimento de Cristo não elimina o nosso sofrimento, mas torna-se uma via por meio da qual podemos caminhar em meio ao sofrimento, com ele como nosso companheiro. Sua morte e ressurreição, nessa narrativa, torna-se nossa libertação do temor, já que o amor é mais forte que o ódio, e a vida mais poderosa que a morte. É por isso que, nessa narrativa, é tão essencial a afirmação duma ressurreição física do Cristo – ou seja, Jesus Cristo ressuscita dentre os mortos não apenas espiritualmente, mas fisicamente.

Numa outra compreensão, que alguns chamariam “herética”, mais associada à minha própria tradição teológica liberal, a narrativa do nascimento, morte e ressurreição de Cristo tem uma ligação com a própria relação entre a humanidade e o Divino. A Encarnação divina sempre ocorre na vida humana, e o encontro humano com o Divino exige um contínuo ciclo de morte para aquilo que nos separa de Deus – isto é, “nossa própria arrogância, egoísmo e ódio”, como rezamos em nossa celebração eucarística –, e a ressurreição ocorre “quando nossas almas despertam da morte espiritual para se unirem à comunidade de amor, para entrar no reino divino aqui mesmo neste mundo”.

Essas duas narrativas apontam para dois aspectos do Caminho cristão. O próprio Deus ensinou-nos a coreografia da existência, rendendo-se à sua própria trajetória de vir, ir-se e levar-nos consigo. Nós, seguindo seu caminho, adentramos o mundo, trazendo conosco a centelha divina; somos chamados a sepultar aquelas coisas que impedem o movimento divino em nossa própria vida (nossa “arrogância, egoísmo, e ódio”); e somos revividos para uma vida na qual possamos trazer o divino para o nosso relacionamento conosco mesmos, com outras pessoas e com o todo da Criação. E o ciclo de repetições do calendário cristão nos ajuda a lembrarmos que precisamos, metaforicamente, morrer novamente para que um novo “eu” ressurja. E essa é uma dança que não podemos dançar sozinhos. Precisamos da companhia de Deus e de outras pessoas nessa coreografia.

Portanto, minha oração nesta Páscoa é que possamos nos lembrar que não podemos dançar com Deus solitariamente. A Trindade pascoal, para mim, consiste na relação entre o Divino, nosso próximo e nós mesmos. A coreografia pascoal é dançada em trio: Deus, a Criação e a humanidade.

As celebrações pascoais na Igreja e em nossas casas é bela e doce, mas não está completa se houver pessoas solitárias e famintas lá fora. Não estaremos dançando a coreografia pascoal se conscientemente não convidarmos à nossa dança outras pessoas; se não encarnarmos em nossas ações aquela hospitalidade ensinada por Jesus de Nazaré. E hospitalidade não significa esperar que outros se tornem como nós para que se sentem à nossa mesa – ou seja, não significa que outras pessoas devam se converter à minha fé, ou falar minha língua/sotaque, ter minha nacionalidade ou cor, professar minhas crenças filosóficas ou políticas, ter as mesmas (des)vantagens socioeconômicas que eu, etc; hospitalidade cristã significa, simplesmente, estar com nossa mentes, mãos e corações abertos para absolutamente todos.

Que possamos, metaforicamente, morrer e ressuscitar nesta Páscoa, e que o novo “eu” que ressurgir de nossas cinzas possa encarnar o espírito de Jesus, com seu amor incondicional a todos, absolutamente todos, como nos ensina a tradição.

+Gibson

2 comentários:

  1. Parabéns Gibson! Excelente texto e uma mensagem muito fortalecedora e profunda! Continue neste mesmo espírito!
    Abraços!

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  2. Caro Gibson,

    Gostaria de o felicitar pelo texto "Páscoa 2014: Nascimento, Morte, Ressurreição e a Coreografia Pascoal.
    No início do terceiro milénio, é da maior relevância valorizar a dimensão espiritual da ressurreição de Jesus, que constitui um pilar fundamental da fé cristã. Com a ressurreição de Jesus, inaugura-se para toda a Humanidade um tempo novo, onde podemos viver segundo o projeto de Deus, que aspira a uma Humanidade feliz e fraterna.
    Passados dois mil anos, é importante realçar que Jesus de Nazaré nunca quis uma igreja institucional e hierarquizada. Jesus foi o inspirador de uma comunidade espiritual (ekklésia)de seres humanos que se reuniam no seu espírito para ter experiência de Deus. Nessa comunidade, os homens e as mulheres tinham de início papéis absolutamente equivalentes.

    gostaria de poder partilhar uma troca de ideias que seria certamente de interesse mútuo.

    Um abraço fraterno

    Daniel Faria
    Vila Nova de Famalicão
    Portugal

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