A tradição cristã é,
para mim, uma multiplicidade de narrativas de nascimento, morte e
ressurreição. Isso fica muito claro quando pensamos naquelas duas
datas mais importantes do calendário cristão, o Natal e a Páscoa,
e como elas moldam o mover da fé cristã na coreografia da relação
entre o Divino e nós, e entre nós e o resto da criação. A entrega
à linguagem metafórica do nascimento, morte e ressurreição de
Cristo em celebrações como o Natal e a Páscoa é um exercício
espiritual importante para cristãos liberais como eu, geralmente
vistos apenas como questionadores das narrativas cristãs ditas
“ortodoxas”.
Em minha compreensão, a
jornada cristã é um caminho de nascimento, morte e ressurreição
que se repete continuamente na vida daquele que se compromete com o
Caminho. E as diferentes interpretações cristológicas, das mais
variadas tradições cristãs, incorporam essa metáfora do
nascimento, morte e ressurreição em sua linguagem teológica. Em
minha própria experiência, nossa jornada cristã pode ser deveras
enriquecida se dermos ouvidos a essas diferentes narrativas.
Assim, numa compreensão
mais “ortodoxa”, Deus toma sobre si nossa humanidade por meio da
Encarnação – na pessoa de Jesus Cristo –, sofre e dá sua vida
em favor da Criação, e, em seguida, ressuscita; e esse movimento
garante uma companhia salvadora, isto é, o sofrimento de Cristo não
elimina o nosso sofrimento, mas torna-se uma via por meio da qual
podemos caminhar em meio ao sofrimento, com ele como nosso
companheiro. Sua morte e ressurreição, nessa narrativa, torna-se
nossa libertação do temor, já que o amor é mais forte que o ódio,
e a vida mais poderosa que a morte. É por isso que, nessa narrativa,
é tão essencial a afirmação duma ressurreição física do Cristo
– ou seja, Jesus Cristo ressuscita dentre os mortos não apenas
espiritualmente, mas fisicamente.
Numa outra compreensão,
que alguns chamariam “herética”, mais associada à minha própria
tradição teológica liberal, a narrativa do nascimento, morte e
ressurreição de Cristo tem uma ligação com a própria relação
entre a humanidade e o Divino. A Encarnação divina sempre ocorre na
vida humana, e o encontro humano com o Divino exige um contínuo
ciclo de morte para aquilo que nos separa de Deus – isto é, “nossa
própria arrogância, egoísmo e ódio”, como rezamos em nossa
celebração eucarística –, e a ressurreição ocorre “quando
nossas almas despertam da morte espiritual para se unirem à
comunidade de amor, para entrar no reino divino aqui mesmo neste
mundo”.
Essas duas narrativas
apontam para dois aspectos do Caminho cristão. O próprio Deus
ensinou-nos a coreografia da existência, rendendo-se à sua própria
trajetória de vir, ir-se e levar-nos consigo. Nós, seguindo seu
caminho, adentramos o mundo, trazendo conosco a centelha divina;
somos chamados a sepultar aquelas coisas que impedem o movimento
divino em nossa própria vida (nossa “arrogância, egoísmo, e
ódio”); e somos revividos para uma vida na qual possamos trazer o
divino para o nosso relacionamento conosco mesmos, com outras pessoas
e com o todo da Criação. E o ciclo de repetições do calendário
cristão nos ajuda a lembrarmos que precisamos, metaforicamente,
morrer novamente para que um novo “eu” ressurja. E essa é uma
dança que não podemos dançar sozinhos. Precisamos da companhia de
Deus e de outras pessoas nessa coreografia.
Portanto, minha oração
nesta Páscoa é que possamos nos lembrar que não podemos dançar
com Deus solitariamente. A Trindade pascoal, para mim, consiste na
relação entre o Divino, nosso próximo e nós mesmos. A coreografia
pascoal é dançada em trio: Deus, a Criação e a humanidade.
As celebrações pascoais
na Igreja e em nossas casas é bela e doce, mas não está completa
se houver pessoas solitárias e famintas lá fora. Não estaremos
dançando a coreografia pascoal se conscientemente não convidarmos à
nossa dança outras pessoas; se não encarnarmos em nossas ações
aquela hospitalidade ensinada por Jesus de Nazaré. E hospitalidade
não significa esperar que outros se tornem como nós para que se
sentem à nossa mesa – ou seja, não significa que outras pessoas
devam se converter à minha
fé, ou falar minha
língua/sotaque, ter minha nacionalidade ou cor, professar minhas
crenças filosóficas ou políticas, ter as mesmas (des)vantagens
socioeconômicas que eu, etc; hospitalidade cristã significa,
simplesmente, estar com nossa mentes, mãos e corações abertos para
absolutamente todos.
Que possamos,
metaforicamente, morrer e ressuscitar nesta Páscoa, e que o novo
“eu” que ressurgir de nossas cinzas possa encarnar o espírito de
Jesus, com seu amor incondicional a todos, absolutamente todos, como
nos ensina a tradição.
+Gibson
Parabéns Gibson! Excelente texto e uma mensagem muito fortalecedora e profunda! Continue neste mesmo espírito!
ResponderExcluirAbraços!
Caro Gibson,
ResponderExcluirGostaria de o felicitar pelo texto "Páscoa 2014: Nascimento, Morte, Ressurreição e a Coreografia Pascoal.
No início do terceiro milénio, é da maior relevância valorizar a dimensão espiritual da ressurreição de Jesus, que constitui um pilar fundamental da fé cristã. Com a ressurreição de Jesus, inaugura-se para toda a Humanidade um tempo novo, onde podemos viver segundo o projeto de Deus, que aspira a uma Humanidade feliz e fraterna.
Passados dois mil anos, é importante realçar que Jesus de Nazaré nunca quis uma igreja institucional e hierarquizada. Jesus foi o inspirador de uma comunidade espiritual (ekklésia)de seres humanos que se reuniam no seu espírito para ter experiência de Deus. Nessa comunidade, os homens e as mulheres tinham de início papéis absolutamente equivalentes.
gostaria de poder partilhar uma troca de ideias que seria certamente de interesse mútuo.
Um abraço fraterno
Daniel Faria
Vila Nova de Famalicão
Portugal