Cara
Rosilene,
Tento
oferecer, aqui, uma resposta à sua pergunta “qual é a doutrina
dos unitaristas?”; espero que possa ser útil à sua pesquisa. A
utilização de tópicos numéricos é só para organizar meu
pensamento, e facilitar sua leitura.
1.
Definindo os grupos:
Responder
a essa pergunta não é algo tão simples e direto quanto pode
parecer. Para respondê-la, preciso saber a que “unitaristas”
você se refere. Há, pelo menos, três grupos que fazem uso desse
adjetivo para se referirem a si próprios:
a)
os “Unitaristas” – minha tradição –, também
chamados de “Cristãos Unitaristas”,
que tiveram sua origem moderna na Reforma Protestante no século XVI,
e cuja história e teologia está entrelaçada às dos Socinianos
e Arminianos. No Unitarismo, por sua vez, temos algumas
tradições diferentes: a) os unitaristas húngaros e transilvanos,
cujas igrejas são episcopais e fazem uso de confissões e catecismos
doutrinalmente mais definidos; b) os unitaristas dos Países Baixos,
unidos à Igreja Remonstrante; c) os unitaristas britânicos, que
geralmente são congregacionais ou anglicanos que sempre foram menos
preocupados com definições doutrinárias; d) os unitaristas
americanos (dos quais descendem os brasileiros), também pouco
preocupados com definições doutrinárias; e) as Igrejas Batistas
Gerais da Inglaterra, que mesmo não usando o nome “unitarista”,
são parte de nossa tradição; f) a Igreja Presbiteriana
Não-Subscrevente da Irlanda, que também faz parte de nossa
tradição; g) os “metodistas unitaristas” da Inglaterra e
Escócia. No Brasil, há apenas três congregações desta tradição
e alguns pequenos grupos espalhados pelo país (aqui, nossas igrejas
são tradicionalmente igrejas de imigração);
b)
os “Unitário-universalistas”, um grupo que
descende dos Unitaristas e Universalistas
norte-americanos e tornou-se mais numeroso nas antigas igrejas
unitaristas dos Estados Unidos (no Brasil, há alguns simpatizantes
virtuais, mas nenhuma igreja unitário-universalista). Esses, de
forma geral, não se identificam mais como cristãos, assumindo uma
espiritualidade humanista – apesar de haver cristãos em suas
igrejas. São dominantes hoje no Movimento Unitarista dos EUA, mas
contam com grupos em outras partes do mundo;
c)
os “Unitaristas Bíblicos”, um movimento de diferentes
grupos cristãos evangelicais que pregam uma cristologia geralmente
sociniana (apesar de alguns grupos abraçarem uma visão cristológica
ariana), mas rejeitam o liberalismo teológico dos Unitaristas. Esses
têm uma origem mais recente e, geralmente, não se identificam como
parte do Movimento Unitarista – muitos desses grupos se identificam
como “judeus messiânicos”.
Tratarei,
aqui, dos Unitaristas (ou Cristãos Unitaristas), já que imagino ter
sido essa a razão pela qual você me escreveu.
2.
Doutrina – mais uma vez, a questão semântica:
Comecei o tópico anterior dizendo que precisaria saber a qual grupo
unitarista você se referia em sua pergunta, já que havia diferentes
grupos que se identificavam como “unitaristas”. O problema se
repete quando utilizamos o termo “doutrina”. O que, exatamente,
você quer dizer por “doutrina”?
a)
princípios gerais que
guiam
a compreensão de fé?
ou
b) dogmas, interpretações fundamentais inquestionáveis?
A maioria dos Unitaristas – e Unitário-universalistas –
provavelmente rejeitaria o sentido (b), da doutrina enquanto
dogmas inquestionáveis e imutáveis que todos os fiéis devem
professar para que sejam membros de nossas comunidades.
A tradição Unitarista tem, desde suas origens no século XVI,
desenvolvido uma compreensão da liberdade de consciência
individual e da autoridade do indivíduo que nos têm
feito rejeitar a imposição de fórmulas teológicas como
condição para a vida na Igreja. A maioria de nós compreende a
doutrina como sendo princípios gerais que se desenvolvem num
ambiente de abertura para diferentes compreensões, mesmo que
discordantes. Assim, entre nós, não há apenas uma forma de pensar sobre Deus, sobre Jesus Cristo, sobre a salvação, sobre o
que ocorre após a morte, sobre como as Escrituras devam ser
interpretadas etc. Por causa disso, os cristãos unitaristas sempre
rejeitaram a compreensão de que todos os cristãos devessem
acreditar exatamente nas mesmas coisas e fazer tudo do mesmo jeito
para serem aceitos como cristãos.
Por causa dessa liberdade e diversidade, não é possível dizer
qual seja a doutrina oficial dos unitaristas a respeito de
todos os temas possíveis. O que é possível é, como sempre foi
feito entre nós, falar sobre aquelas compreensões que a maioria de
nós abraça sobre determinados tópicos teológicos – ou, ao
menos, falar sobre as diferentes compreensões abraçadas por
diferentes grupos unitaristas. Historicamente, muitas declarações
de fé têm sido utilizadas por cristãos unitaristas para dar voz às
compreensões mais comuns entre nós, mas lembre-se que nenhuma delas
tem poder impositivo ou definitivo. Tradicionalmente, nós
unitaristas entendemos que ser cristão é seguir Jesus, que nossa fé
é “a religião de Jesus, e não sobre Jesus”.
Nossa tradição cristã livre sempre desejou que a Igreja cristã
estivesse além do dogma e que nela fossem bem-vindos todos aqueles
que desejassem, sem impor-lhes um controle intelectual.
Para exemplificar, porém, a forma como diferentes grupos unitaristas
expressam sua fé, observe as seguintes declarações professadas por
diferentes grupos unitaristas, incluindo o Credo Apostólico –
lembrando-se que nem todos os unitaristas que as professam entendem
suas palavras da mesma forma:
Credo
Apostólico
Creio em Deus,
Pai todo-poderoso,
Criador do céu e da terra.
Criador do céu e da terra.
E em Jesus
Cristo, seu Filho unigênito, nosso Senhor,
o qual foi concebido pelo Espírito Santo,
nasceu da virgem Maria,
padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos,
foi crucificado, morto e sepultado,
desceu ao mundo dos mortos,
ressuscitou no terceiro dia,
subiu ao céu, e está sentado à direita de Deus Pai, todo-poderoso,
de onde virá para julgar os vivos e os mortos.
o qual foi concebido pelo Espírito Santo,
nasceu da virgem Maria,
padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos,
foi crucificado, morto e sepultado,
desceu ao mundo dos mortos,
ressuscitou no terceiro dia,
subiu ao céu, e está sentado à direita de Deus Pai, todo-poderoso,
de onde virá para julgar os vivos e os mortos.
Creio no Espírito
Santo,
na santa Igreja católica, na comunhão dos santos,
na remissão dos pecados,
na ressurreição do corpo e na vida eterna. Amém.
na santa Igreja católica, na comunhão dos santos,
na remissão dos pecados,
na ressurreição do corpo e na vida eterna. Amém.
Confissão
da Igreja Unitarista da Hungria
Creio em um Deus, o criador da vida, nosso Pai providencial.
Creio em Jesus, o melhor entre os filhos de Deus, nosso verdadeiro
Mestre.
Creio no Espírito Santo.
Creio na missão da Igreja Unitarista.
Creio no arrependimento e na vida eterna.
Declaração
de Fé Unitarista
Cremos em um Deus, o criador do céu e da terra, o Pai dos
espíritos, o justo Governador e Juiz do mundo;
Cremos em Jesus Cristo, o eterno Filho de Deus, a imagem expressa
do Pai, em quem estava toda a plenitude da divindade, e que para nós
é o Caminho e a Verdade e a Vida;
Cremos no Espírito Santo, procedente do Pai e do Filho, o mestre,
renovador, e guia da humanidade;
Cremos na Santa Igreja Católica como o corpo e forma do Espírito
Santo, e a presença de Cristo em todas as eras;
Cremos na Regeneração do coração humano, que, sendo criado
reto, mas corrompido pelo pecado, é renovado e restaurado pelo poder
da verdade cristã;
Cremos na constante Expiação por meio da qual Deus, em Cristo,
está reconciliando o mundo a Si;
Cremos na Ressurreição da morte à imortalidade, num futuro
julgamento e na Vida Eterna;
Cremos no vindouro Reino de Deus, e no triunfo final da verdade
cristã.
As
Bases da Fé Cristã para os Unitaristas
A paternidade de Deus;
a irmandade da humanidade;
a liderança de Jesus;
a vitória do Bem;
o Reino de Deus;
a Vida Eterna.
A
Confissão de Fé
que não encontramos a nossa paz na certeza do que confessamos,
mas na maravilha do que nos acontece e naquilo que nos é dado;
que não encontramos nosso destino na indiferença e na ganância,
mas na vigilância e na ligação com tudo o que vive;
que a nossa existência não é realizada por quem somos e por aquilo que possuímos,
mas pelo que é infinitamente maior do que podemos conter.
Guiados por esta consciência, acreditamos no Espírito de Deus,
que transcende tudo o que divide as pessoas
e as inspira para o que é santo e bom,
que no cantar e no silêncio,
na oração e no trabalho,
elas adoram e servem a Deus.
Acreditamos em Jesus, um ser humano cheio do Espírito Santo,
o rosto de Deus, vendo-nos e perturbando-nos.
Ele amou a humanidade e foi crucificado
mas ele vive, além de sua própria morte e da nossa.
Ele é o nosso santo exemplo de sabedoria e coragem
e ele traz o amor eterno de Deus para perto de nós.
Cremos em Deus, o Eterno,
que é amor insondável, o fundamento do ser,
que nos mostra o caminho da liberdade e da justiça
e nos conclama a um futuro de paz.
Acreditamos que
fracos e falíveis como somos,
somos chamados a ser a Igreja,
ligados a Cristo e a todos os que creem,
no sinal da esperança.
Pois acreditamos no futuro de Deus e do mundo,
em uma paciência divina que dá tempo
para viver e para morrer e ressuscitar,
no reino que é e virá,
onde Deus será para a eternidade: tudo em todos.
A Deus seja a glória e honra
no tempo e na eternidade.
Amém
__________________________________
Nos próximos tópicos tentarei esclarecer a compreensões da maioria
dos unitaristas sobre certos pontos – mas, desde já, esclareço
que isso não significa que todos os unitaristas concordariam com
isso, ou que professar isso seja exigido dos unitaristas.
3.
Deus:
Como você pode ver acima, a tradição unitarista professa fé em
Deus. Entretanto, não há a imposição dum dogma teontológico
– isto é, a maneira como articulamos nossa fé em Deus não é
necessariamente a mesma para todos nós. Não tentamos esgotar
definições teológicas de Deus, como se a Divindade fosse um objeto
que pudesse ser posto sob as lentes dum microscópio, ou como se
pudéssemos plenamente compreender aquilo que está além de
nosso mundo físico.
A maioria dos cristãos unitaristas – não, necessariamente, todos
– é “antitrinitarista”, ou seja, rejeita o dogma da Trindade
da forma como professado pela maioria dos demais cristãos
(isto é, Deus em três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo), sendo
essa a razão pela qual foram chamados de “unitaristas” durante
os primórdios de sua história na Europa. Historicamente, nossa
tradição tem professado fé na unicidade de Deus, apesar de não
definirmos Deus – assim, muitos de nós podem entender Deus de
maneiras diversas.
No que concerne à doutrina enquanto princípios gerais que guiam
nossa compreensão de fé, nós unitaristas temos muito em comum com
outros cristãos. Apesar de a maioria de nós não aceitar imposições
teológicas, de forma geral compartilhamos a fé expressa pelos
outros cristãos. Deus, para a maioria de nós, é aquele “em quem
vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17:28). Um de nossos
catecismos afirma: “Quando dizemos 'Creio em um Deus',
expressamos nossa convicção de que Deus existe, e que Deus, tanto
em essência quanto em pessoa, é apenas Um”; e,
“...Compreendemos Deus como Espírito e como Amor”.
4.
Jesus Cristo:
Já esclareci que o fato de os primeiros unitaristas serem
antitrinitaristas (rejeitarem o dogma atanasiano da Trindade) foi o
que lhes rendeu o adjetivo “unitaristas”. Rejeitar esse dogma é
afirmar algo importante sobre a compreensão cristológica da maioria
dos unitaristas: para a maioria de nós, Jesus não é
“consubstancial” (da mesma substância, igual) a Deus.
Para a maioria de nós, Jesus é nosso Mestre e Salvador. Mestre
porque olhamos para seu exemplo como modelo que devemos seguir;
Salvador, porque seus ensinamentos e exemplos são o caminho que nos
levam a Deus.
Para a maioria de nós, Jesus foi plenamente humano, símbolo duma
vida plena do Divino, sem preexistência (noção chamada de
“socinianismo”). Para outros, Jesus, apesar de humano, foi o
primeiro a ser criado por Deus, preexistindo antes de encarnar como
Jesus de Nazaré, sendo, contudo, distinto de Deus (noção comumente
chamada de “arianismo”). Outros poucos professam a mesma fé
ortodoxa da Trindade.
Muitos de nós consideram Jesus como divino sem acreditar que ele
fosse Deus ou sem negar sua humanidade. A divindade, nesse sentido,
representa a humanidade em seu sentido mais pleno. Assim, ele é
filho de Deus no mesmo sentido em que todos nós somos filhos e
filhas de Deus; Deus estava encarnado nele no mesmo sentido em que
Deus está encarnado em toda a humanidade.
Independentemente das explicações teológicas que diferentes
unitaristas abracem para expressar sua fé em Jesus, todos
compartilham a visão de que viver os princípios de amor e boa
vontade ensinados e vividos por Jesus são necessários para ser um
discípulo dele. Ser cristão, assim, é seguir seus ensinamentos e
exemplos em nossa adoração a Deus e serviço à humanidade.
Em nosso catecismo mais tradicional, por exemplo, podemos encontrar
uma declaração com a qual talvez a maioria de nós concorde:
“Quando dizemos 'Creio em Jesus', expressamos nossa convicção
de que Jesus é o maior filho e profeta de Deus, e que seus
ensinamentos são o caminho mais certo através do qual podemos
chegar a um real conhecimento de Deus”.
5.
O Espírito Santo:
A maioria dos unitaristas compreende o Espírito Santo como sendo a
presença ou o poder de Deus, que ilumina o intelecto, limpa o
coração, fortalece a vontade, acalma, encoraja e traz alegria.
Assim, a maioria de nós não o compreende como sendo uma pessoa.
6.
A humanidade:
Os unitaristas têm proclamado, ao longo de seus quase cinco séculos
de história, uma fé no valor e dignidade de cada indivíduo. Apesar
de o foco que outros cristãos dão à nossa tradição sempre se
centrar em nossas cristologias antitrinitaristas, a maior diferença
doutrinária entre unitaristas e a maioria dos outros cristãos
ocidentais está, em minha opinião, na forma como compreendemos a
humanidade.
Nós unitaristas rejeitamos a doutrina do pecado original. Não
acreditamos que por meio do pecado dos primeiros humanos tenhamos
todos nos tornado corruptos. Para nós, acreditar nisso contradiria
nossa crença no amor e justiça de Deus, já que significaria que
pessoas receberiam a culpa pelos pecados (erros cometidos
conscientemente) de outras. Os humanos, para nós, não nascem em
pecado – eles se corrompem pelo pecado ao longo da vida.
7.
A vida eterna:
Como com todos os outros pontos que discuti antes, a compreensão do
que acontece além desta vida é muito variada entre nós. A maioria
de nós, talvez, acredita que temos um espírito que vive além do corpo. Não
se pregam entre nós doutrinas como a reencarnação, por exemplo,
mas muitos de nós, talvez a maioria, acreditam que haverá uma
ressurreição dos mortos. Entretanto, a grande maioria de nós
rejeita a crença num lugar de tormento infinito pós-mortal, já
que, para nós, a bondade e misericórdia Divina será sempre
vitoriosa.
Seja como for, é muito incomum a discussão de temas como este em nosso meio.
Seja como for, é muito incomum a discussão de temas como este em nosso meio.
8.
A Bíblia:
Como
cristãos, os unitaristas aceitam e honram a Bíblia como Escrituras
Sagradas. É nela onde encontramos a base de nossa compreensão de
fé. Como outros cristãos liberais, contudo, a
maioria de nós compreende a
Bíblia como um conjunto de livros escritos por humanos, e que,
posteriormente, passou
por um processo de canonização. Logo, a
maioria de nós não
compreende a Bíblia como um livro perfeito, sem
erros; a maioria de nós não compreende
seus registros como
registros factuais, mas como um testemunho humano de Deus, e da fé
que herdamos.
9.
Sacrifício expiatório:
A
grande maioria dos unitaristas rejeita a noção de que a morte de
Jesus na cruz fosse uma exigência divina para que pudéssemos ser
perdoados por Deus. Para a maioria de nós, essa é uma ideia
ofensiva à compreensão que temos da Deidade. Assim, Jesus nos
salvaria mostrando-nos o caminho a seguir, e não sendo sacrificado
em favor da humanidade. É nesse sentido que a maioria de nós
utilizaria o termo “salvador” para se referir a Jesus.
10.
Concluindo temporariamente...
Discussões teológicas sobre pormenores doutrinários é
praticamente inexistente em nossas igrejas, ao menos em sermões, por
exemplo. Porque nossas igrejas tendem a estar comprometidas com o
respeito à diversidade teológica, e não utilizamos credos ou
confissões como condições para ser membro, cada unitarista é
incentivado a construir sua própria compreensão teológica. Como
você notou nas declarações que incluí aqui, há doutrinas
específicas em nosso meio, mas essas representam apenas aquilo que a
maioria de nós aceita, e não algo que seja exigido que os
unitaristas aceitem.
Bem, espero que o que escrevi aqui seja útil à sua pesquisa. Se
precisar de algo mais, ficarei feliz em ajudá-la.
Grande abraço!
+Gibson
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