Permita-me
iniciar dizendo que é necessário, muitas vezes, fazer um exercício
de mudança de perspectiva para que possamos construir uma
compreensão das crenças de outras pessoas – isto é, quando
saímos de nossa própria posição e nos esforçamos para observar
algo a partir da posição de outra pessoa, podemos compreender
melhor sua visão. Quando, por exemplo, disse o que disse sobre o
tema em discussão, estava apenas demonstrando minha compreensão de
que minha própria perspectiva não é a única possível – afinal,
não posso esperar que todas as pessoas pensem da mesma forma que eu,
seja sobre religião, seja sobre qualquer outro assunto.
Interpretar
as Escrituras de forma metafórica não é “equivalente a se
afastar da Tradição cristã”. A visão de que as Escrituras devam
ser interpretadas literalmente por terem sido factualmente ditadas
por Deus e por serem sinônimo de “história factual” é uma
compreensão moderna tanto de “inspiração” quanto de
“história”; uma compreensão que emergiu como resposta ao
chamado “Iluminismo”. Assim, é essa visão que se afasta da
Tradição, quando abandona a possibilidade de interpretações
metafóricas dos textos sagrados, engessando, assim, o sentido do
texto a uma interpretação rígida – e não o contrário.
Mas
já tratei tanto disso tanto na igreja quanto aqui, que seria
repetitivo se abordasse a mesma questão mais uma vez. Contudo, posso
explicitar mais diretamente minha visão teológica pessoal sobre
“Escrituras”, no contexto da discussão sobre canonicidade que
abordei naquele sermão.
Como
já deve ser bem conhecido, não compreendo a
sacralidade/canonicidade das Escrituras como decorrente duma origem
divina, mas, sim, como decorrente dum processo humano de legitimidade
da Tradição – visão essa, a propósito, que é dominante em
nossa comunidade de fé. Assim, a “Bíblia” não é texto sagrado
porque suas palavras foram ditadas por Deus a profetas, mas, antes,
porque aqueles conjuntos de textos passaram por um processo de
“canonização”/”sacralização por parte das comunidades que
os aceitaram como texto sagrado.
Esse
mesmo processo esteve presente não apenas nas comunidades
[proto-]ortodoxas judaicas e cristãs que proclamaram a Bíblia
como Escritura. Processos semelhantes também marcaram a origem de
textos sagrados de outras tradições de fé, como o [Al]Corão,
o Livro de Mórmon, e Doutrina e Convênios – que
foram os textos sobre os quais discuti em meu sermão –, assim como
os textos sagrados de outras tradições que não abordei. Assim,
esses textos são, sim, sagrados; são, sim, Escrituras. Podem não
ser Escrituras sagradas para você ou para mim, mas o são para os
adeptos das tradições que os consideram sagrados – e isso é
suficiente para que eu me refira a eles como “sagrados”.
A
Bíblia é, para minha própria compreensão e experiência de fé,
um conjunto de textos sagrados. Apesar de não compreendê-la,
necessariamente, como relato factual nem da história humana nem
divina, ela é a base de minha compreensão de fé. E isso ocorre
porque minha fé – uma expressão do(s) Cristianismo(s) – é uma
fé “do Livro” (como, a propósito, a ela se refere a tradição
islâmica). Isto é, o(s) Cristianismo(s), assim como o(s)
Judaísmo(s) e o(s) Islã(s), é uma tradição construído ao redor
de textos religiosos que foram sacralizados pela comunidade de fé.
Assim,
aqueles textos que abordei em meu sermão – o Livro de Mórmon,
Doutrina e Convênios (ambos, como editados pela Comunidade
de Cristo); e o [Al]Corão – são Escritura Sagrada,
apesar de eu não acreditar que tenham uma origem factualmente
divina, se por isso quiser dizer que foram ditados por Deus a seres
humanos ou que tenham caído miraculosamente do céu, ou que anjos os
tenham depositado em mãos humanas. Também não acredito nisso no
que concerne à Bíblia!... Isso, porém, não muda em nada seu
status canônico para aqueles que os aceitam como Escritura –
não muda, pelo menos, minha aceitação da Bíblia como Escritura
Sagrada. Para entender minha posição, você só precisa se lembrar
de onde emerge a “sacralidade”, em minha compreensão: da
Tradição construída, vivida e transmitida pelo corpo de fiéis –
isto é, para mim, a fé religiosa tem uma história; ela é a
resposta humana ao seu encontro com o Divino. As Escrituras são a
resposta dada por diferentes autores, em diferentes lugares, em
diferentes línguas, a partir de diferentes experiências culturais e
espirituais ao Mistério que eu chamo de Deus.
Reconhecer
e considerar como legítimas as experiências e perspectivas de
outras tradições não diminui minha crença em minha própria fé.
O que faz é ampliar minha compreensão tanto da humanidade quanto da
Divindade. Obviamente, ainda discordo das compreensões de fé que
colidem com as minhas próprias – e continuarei a criticá-las, se
necessário –, mas isso não significa que me recusarei a
reconhecer a “verdade” quando ouvi-la a partir da voz de outra
tradição. É uma questão tanto de maturidade quanto de integridade
intelectual.
Grande
abraço!
+Gibson
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