Nunca escondi que o Natal, mais do que qualquer outra data do
calendário cristão, me fascina. E isso porque, para mim, o Natal
carrega em si elementos que ecoam em minha memória elementos de
minha própria história pessoal, e porque, nesta celebração,
cristãos podem encontrar um aspecto em comum com pessoas das mais
diferentes tradições de fé, especialmente com seus irmãos judeus
e muçulmanos: a relação entre a narrativa natalina e a memória da
diáspora/migração.
A
tradicional narrativa natalina, independentemente de sua possível
não factualidade, fala sobre uma família que foge de sua terra de
origem para um país estrangeiro – o Egito – em busca de
proteção. Seu filho, o recém-nascido Jesus, tem sua vida ameaçada
e seus pais buscam abrigo numa terra onde esta ameaça específica
não esteja presente. Assim, a família de Jesus, como tantas outras
famílias de todos os tempos e culturas, passa pelo desafio do
desenraizamento – de, metaforicamente, “arrancar suas
raízes” de sua terra de origem –, migrando em busca duma
situação mais favorável.
Esse
elemento da narrativa cristã do Natal envolve toda a compreensão
que os seguidores posteriores de Jesus construirão a seu respeito.
Enquanto criança, Jesus – como Noé, Ló, Abraão, Jacó, José,
Moisés – é moldado pela experiência migratória. Quando adulto,
experienciará outra migração, saindo de sua Galileia de origem
para desempenhar sua missão profética na Judeia, passando pela
Samaria. Mais tarde, a maioria de seus seguidores não hebreus lhe
atribuirão uma identidade migratória mais “divina”, quando
começam a ensinar que ele era o filho de Deus que descera dos céus
para se encarnar entre os homens. Assim, Jesus experiencia, na
narrativa cristã, uma dupla migração: [I] uma migração
divina, descendo do domínio celestial para o terrestre; e [II]
uma migração terrena, buscando refúgio no Egito e,
posteriormente, saindo da Galileia rumo à Judeia.
É
uma grande pena que muitos cristãos tenham ignorado esse aspecto
humano da narrativa sobre Jesus. Num mundo cada vez mais marcado
pelas experiências de emigrantes/imigrantes e refugiados, aqueles
que se dizem seguidores do refugiado nazareno deveriam enxergá-lo
nas faces dos desenraizados de hoje.
A
conexão entre a experiência migratória e a narrativa religiosa não
é exclusiva dos cristãos. Os patriarcas e profetas doa antigos
israelitas também foram moldados pelo exílio e pelo retorno.
Igualmente o foram o profeta do Islã e os primeiros muçulmanos. Nas
três grandes tradições, a própria existência humana na Terra e a
busca pelo divino têm uma relação com a experiência migratória:
por exemplo, nas ideias de que a vida humana na Terra seja um momento
transitório de preparação para uma futura eternidade num reino
divino, podemos encontrar traços dessa influência. Assim, migração,
exílio, desenraizamento e a busca pelo “lar” pavimentam, de
certa forma, o ethos das
tradições jordânicas (judaísmos, cristianismos, islãs, babismos
etc).
O
que é importante, para mim, é celebrar na narrativa natalina esse
lembrete de que aquele de quem me declaro ser discípulo – Jesus de
Nazaré – compartilhou
comigo e com
tantos outros a experiência
da migração, da
diáspora (independentemente de eu estar mais interessado na
experiência humana do que em mitos celestiais, e de eu estar ciente
de que muito do que os evangelistas relataram provavelmente não ser
factual). Assim, para seguir
seu caminho, me torno
obrigado a atentar para aquelas e aqueles que, como ele, foram
desenraizados e que buscam um lar numa “terra estrangeira” (que
pode, também, ter um sentido metafórico).
Minha
oração é que possamos enxergar nas faces dos imigrantes,
refugiados, estrangeiros, forasteiros – literal ou metaforicamente
–, a face do menino e do homem nazareno, e – por que não? – a
face do profeta ou do filho de Deus que vem morar entre os humanos.
Essa, para mim, é a missão da celebração natalina.
Feliz
Natal a todas e todos!
+Gibson
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