Resolvi responder, hoje, às questões levantadas por três leitores
que, de alguma forma, se referem à relação entre ciência e
religião em minha experiência pessoal. Tentarei ser o mais direto e
breve possível para que não fiquem com a impressão – como
afirmou um daqueles leitores – de que esteja “tentando escapar
das perguntas”.
Para
começar, poderia afirmar o óbvio: a ciência e a religião lidam
com aspectos distintos da realidade humana. Para mim, isso vai um
pouco além: a religião não me serve como resposta para “os
mistérios do Universo”, nem, muito menos, como “conforto” para
alguma coisa. Entretanto, porque minha religião está profundamente
entrelaçada à minha imaginação filosófica, ela se associa ao
conhecimento científico que adquiro para moldar minha visão de
mundo.
Como
um unitarista, a religião, para mim, tem um sentido muito mais
materialista do que para pessoas de outras tradições
religiosas. Isto é, em minha vida pessoal, a religião tem muito
mais a ver com práticas no mundo – com base numa ética
religiosa – do que especificamente com crenças sobre um suposto
porvir metafísico. Tem a ver com fazer e não com
acreditar – especialmente se esse “acreditar” se referir
a abraçar ideias inquestionáveis.
Já
discuti, aqui, muito a questão de se acredito na existência de
Deus. Para responder de forma direta: penso que a própria
questão é/foi formulada de forma equivocada. Não acredito na
existência de Deus porque existência
implica materialidade, fisicalidade; e não acredito numa
divindade material, física, nem pessoal. Acredito, sim, na
Realidade de Deus – que se refere mais à relação
humana com a ideia de Deus do que com Deus propriamente.
Deus,
para mim, é uma metáfora. Ser uma metáfora implica na
multiplicidade de interpretações, já que metáforas apontam para
realidades/aspectos diferentes para pessoas diferentes. Obviamente, a
divindade foi retratada pelos hebreus e cristãos do passado como um
ser, uma entidade, com características de um soberano que habita um
reino em algum lugar no espaço e criou e controla o mundo habitado
pelos humanos. Esse é o deus produto da cultura de onde surgiram as
tradições jordânicas (judaísmos, cristianismos, islãs, babismos
etc). É o deus que criou tudo do nada, que causava os terremotos e
as chuvas, que destruía cidades com incêndios etc. É o mesmo deus
que se comportava como um humano amoroso e ciumento, perdoador e
vingativo.
Eu
nasci, cresci, fui educado (inclusive em minha fé religiosa)
e vivo num mundo urbano onde existe uma ciência
desenvolvida – se comparado ao mundo rural palestino de dois
milênios atrás. Naquele mundo, pessoas que nascessem com
diabetes, como eu, morreriam. No meu mundo, a insulina foi isolada e
passou a ser fabricada em massa na década de 1920. Naquele mundo
antigo, as nuvens eram o limite do Universo. No meu mundo, humanos –
graças ao conhecimento científico – já começam a explorar
outros planetas.
Ou
seja, uma pessoa educada na mesma cultura que eu não poderia
realmente esperar que eu fosse obrigado a abraçar a visão de mundo
– o que inclui a noção de Deus – que as pessoas daquela época
abraçavam. Não faria o mínimo sentido.
Assim,
a Bíblia – que em minha tradição não é sinônimo de
Cristianismo, já que os Cristianismos se baseiam em muito mais do
que apenas na Bíblia – não constitui as lentes através das
quais enxergo o mundo. Os textos bíblicos, contraditórios e
incoerentes como são em sua historicidade, são apenas testemunhos
das experiências que os primeiros hebreus e os primeiros cristãos
tiveram em sua busca pelo Sagrado. A Bíblia não é um livro de
ciência, nem é um oráculo de onde se possa tirar respostas para
todas as questões possíveis. É, sim, para mim, um registro da
busca pela compreensão daquela metáfora chamada “Deus”,
construídos e moldados – tanto o registro quanto a
compreensão – pelas culturas nas quais emergiram.
Como
não é na Bíblia onde encontro respostas para minhas questões
sobre a origem do Universo e da humanidade, essas questões são
respondidas pela ciência. Meus estudos nos campos da Física e da
Geografia me ajudam a construir questões e a alcançar respostas
sobre a realidade objetiva. Meus estudos nos campos das Ciências
Sociais, da História e da Filosofia me ajudam a fazer o mesmo quanto
à vida social. A Bíblia, lida a partir de minha tradição, me
ajuda a construir uma compreensão ética sobre a humanidade e sobre
como me relacionar com outros seres humanos e com os demais seres
n/deste mundo – além de me ajudar a construir minha compreensão
sobre a Divindade (novamente, quando lida a partir de minha tradição
e de minhas fontes para a compreensão do mundo). Dela saem os
princípios que, lidos a partir de meu lugar sociocultural, moldam
minha consciência religiosa.
Sobre
a ciência, penso que Marcelo Gleiser consegue explicá-la
muito bem quando escreve que “Ciência não é um sistema de
crenças, mas um sistema de conhecimento desenvolvido com o objetivo
de organizar a realidade à nossa volta” (2006, p. 336).
Assim, crença, num sentido dogmático de não poder
ser questionada, não tem muito a ver com ciência. Na verdade,
sequer tem necessariamente a ver com religião – já que nem todas
as tradições religiosas, incluindo o Unitarismo, mantêm-se em
torno de dogmas inquestionáveis, sendo até teologicamente muito
fluidas (os Judaísmos Reformista e Reconstrucionista, o Quakerismo,
além da própria tradição Unitarista, são exemplos dessa fluidez
teológica).
Tendo
escrito tudo isso, já deve ficar óbvio que aceito as descobertas
científicas. Assim, a evolução é a maneira como compreendo
a origem humana – enquanto entidade física. Essa compreensão
científica em nada contradiz minha fé, já que não abraço uma
crença religiosa que se baseie no teísmo sobrenaturalista de
algumas formas “ortodoxas” de Judaísmo ou Cristianismo.
Grande
abraço a todos!
+Gibson
REFERÊNCIA
GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo: dos Mitos de Criação ao Big-Bang. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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