Já escrevi muito que minha fé/espiritualidade se centra neste mundo e, por isso, chamo-a de “materialista”. Com isso quero dizer que a vida – e sua razão de ser – encontra-se neste mundo; ou seja, ter “fé”, em minha compreensão, significa ver-me como parte integrante deste mundo físico, material, concreto: assim, meu viver e agir é no físico/material/concreto, através do físico/material/concreto, pelo físico/material/concreto.
Sei o quanto dizer isso pode soar controverso para religiosos em geral, das mais diferentes tradições. Para muitos, afinal, religião, fé e espiritualidade referem-se ao sobrenatural, àquilo que está fora do mundo: e isso é bem demonstrado naquelas figuras discursivas que criam um conflito entre o que chamam de “material” e o que chamam de “espiritual” – identificando o espiritual como oposto do material.
Para muitos, das mais diferentes tradições religiosas, haveria um domínio invisível, habitado por entidades espirituais. Para essas tradições, apenas o corpo morre, as pessoas possuiriam um espírito – independentemente de ser esse o termo que utilizem ou outro qualquer – que continuaria vivo naquele domínio invisível. E é dessa crença num domínio espiritual invisível que advém a preocupação cristã, por exemplo, com o tema da “salvação”. “Céu” e “inferno” seriam como que duas localidades distintas nessa geografia da dimensão espiritual, e a chegada a um dos dois seria o resultado das coordenadas seguidas pelo andarilho humano – a recompensa ou punição dada pela rota percorrida na vida.
Uma outra versão dessa preocupação com uma existência pós-mortal compreende que o espírito humano passe por um processo de purificação, de aprendizagem ou de expiação através de múltiplas reencarnações, voltando ao mundo material com um outro corpo – ou em alguma variação dessa ideia.
Eu, como já deveriam saber a partir de tudo que falo e escrevo, penso nisso tudo como uma narrativa metafórica. A linguagem metafórica dum domínio invisível, de céu e inferno, de recompensas e punições pós-mortais, entretanto, não faz nada relevante por mim. A metáfora, a lenda, a promessa, que para muitos parece reconfortante, não me torna uma pessoa melhor, não me ensina a viver, nem torna o mundo melhor ou pior para mim – em outras palavras, é indiferente.
Não se trata de acreditar ou desacreditar no mito dum mundo invisível e na continuidade duma vida consciente noutra dimensão. Trata-se, sim, de uma absoluta não preocupação com esse tema, duma completa irrelevância do mesmo para minha fé e práticas espirituais/religiosas. (Espiritualidade, para mim, a propósito, refere-se à maneira como escolho ver, compreender e experienciar a existência, e não a alguma ligação com uma suposta realidade imaterial.)
A verdade é que não sei o que acontece com as pessoas após a morte. Não sei se, além do corpo e suas funções e fenômenos, possuímos uma parte invisível que permanecerá viva após a morte. E não me importo com isso.
A experiência no/do/pelo mundo concreto, aqui e agora, que é o que chamo de experiência espiritual (fé/religião), é graciosa – isto é, é vivificante no sentido mais amplo, porque é o que posso conhecer da existência, a breve e terminal existência concreta. É nesse mundo concreto, aqui e agora, que posso experienciar o todo de tudo, que posso conhecer o Divino e o humano, o sacro e o profano, o eterno e passageiro. É aqui e agora que posso amar alguém. É para o aqui e agora que posso e devo fazer o que deve ser feito. Não num suposto mundo pós-mortal.
Minha fé, assim, toma a brevidade da vida humana – na verdade, a brevidade da vida de todo o Universo, de acordo com cosmologia científica moderna – como elemento indispensável à minha espiritualidade. Como a vida é breve, e como não espero recompensas pós-mortais para como a vivo, vivê-la plenamente se torna o ponto central. Assim, divinizar a vida – trazer o Divino à experiência da vida – torna-se um exercício espiritual. Esse “divinizar” se expressa, na linguagem cristã, por exemplo, na busca pela justiça, pela misericórdia, pela paz, pelo cuidado com o estrangeiro e o mais pobre, pela defesa do mais fraco etc. É isso que quero dizer com uma espiritualidade “materialista”.
Quando penso naquelas pessoas que amava e que morreram, penso em como elas, de alguma forma, impactaram minha vida e de outras pessoas. Não sinto nenhuma necessidade de pensar que estejam numa outra dimensão. Meu conforto está em saber que [1] elas marcaram as vidas de outras pessoas e criaturas, e [2] seus corpos continuarão a ser fonte para a origem de mais vida neste mundo e continuarão a ser parte do ciclo de criação do Universo do qual somos parte. Essa é minha compreensão do que seja uma “vida pós-mortal”.
Essa não é uma compreensão que funciona para todos, mas funciona para mim. É uma compreensão coerente com minha teologia e com minha forma de compreender o mundo. Admiti-la é ser intelectualmente íntegro, e essa integridade intelectual comigo mesmo encontra suas raízes em minha formação religiosa.
+Gibson
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