Caro Edgar,
Continuo aqui, depois de mais de um mês, minha tentativa de
responder algumas daquelas várias questões levantadas por você. Em
minha mensagem anterior, havia tratado sobre algumas informações
históricas que julgo importantes para sua compreensão do
Unitarismo, enquanto tradição cristã. Aqui, continuarei a
tratar algumas das questões subsequentemente levantadas por você.
A maneira mais fácil de descrever nossa tradição é, simples e
imperfeitamente, afirmar que há uma grande diversidade entre nós.
Isso, basicamente, significa que os unitaristas, individualmente,
abraçam uma ampla gama de perspectivas teológicas e estão ligados
a diferentes tipos de igrejas.
Eclesiasticamente, também somos muito diversos. Há igrejas
unitaristas de governo episcopal, isto é, igrejas com bispos
(como nas igrejas unitaristas da Transilvânia e Hungria); há
igrejas unitaristas congregacionais (como a maioria das
igrejas unitaristas do mundo anglófono, e no Brasil); e há igrejas
unitaristas presbiterianas (como algumas nas Ilhas
Britânicas). Contudo, é sempre bom lembrar-se que nem todos os
unitaristas são membros duma igreja especificamente unitarista. E há
muitos auto-declarados unitaristas, especificamente no mundo
anglófono (especialmente nos Estados Unidos), que são membros de
outras igrejas cristãs – especialmente a Igreja Unida de Cristo, a
Igreja Cristã (Discípulos de Cristo), outras igrejas
congregacionais ou a Igreja Episcopal – ou, simultaneamente,
membros duma igreja unitarista e de alguma outra igreja cristã (essa
é minha experiência pessoal, à propósito), por razões muito
específicas à realidade local.
Apesar de nossa diversidade, entretanto, acredito poder apontar
convicções que são comuns à maioria dos unitaristas, ao menos da
tradição anglófona – o que é o meu caso. Lembre-se, contudo,
que entre nós não há a obrigação de se aderir a definições
teológicas pormenorizadas, então, os indivíduos são sempre livres
para compreenderem a fé de sua maneira. Assim, tradicionalmente,
vemos nossa união como sendo mantida por um espírito de simpatia e
cooperação, e não pela imposição de fórmulas, de declarações
de fé, de credos – nós, entretanto, não rejeitamos essas
declarações ou credos necessariamente, rejeitamos apenas sua
imposição aos indivíduos como requisito para que sejam parte da
mesma comunidade de fé. Essa é a tradição de liberdade de
consciência, tão apreciada em nossa tradição.
A tradição unitarista, tradicionalmente, identifica como cristão
toda pessoa que se [auto]identifique como um seguidor de Jesus
Cristo. Assim, não acreditamos ou ensinamos que alguém tenha de
ser um unitarista para ser um cristão “verdadeiro”. Assim como
não excluímos ou julgamos pessoas de outras tradições religiosas
não cristãs por não serem cristãs ou não serem unitaristas. Não
equacionamos o Divino com uma compreensão particular de Deus. Foi
dessa compreensão, compartilhada por cristãos unitaristas e
universalistas – a seu próprio modo –, aliás, que adveio o
espírito de respeito ou “abertura” para com outras tradições
de fé que marca a tradição “unitário-universalista”
(descendente duma mescla daquelas duas, especialmente do movimento da
“Religião Livre” e, posteriormente, do movimento
humanista dos unitaristas). Logo, você se equivoca quando afirma que
essa atitude seja uma característica originalmente
“unitário-universalista” enquanto movimento não cristão, como
se diferentes tradições cristãs devessem corresponder a um
estereótipo de “fanatismo” ou “fundamentalismo” nascidos de
sua própria experiência com o(s) Cristianismo(s) brasileiro(s).
Como cristãos, damos grande ênfase à Bíblia em nossa tradição,
mas a maneira como a compreendemos pode soar muito diferente da forma
como outras tradições cristãs brasileiras a veem. Nós
unitaristas não acreditamos na infalibilidade
da Bíblia. Entendemos a Bíblia como um testemunho da relação
de certos grupos humanos (a antiga Israel e a “Igreja primitiva”)
com Deus; ou seja, a Bíblia é um conjunto de escritos humanos que
passou por um processo de canonização até tornar-se
Escritura Sagrada. Ou seja, os escritos do apóstolo Paulo, por
exemplo, não eram Escritura, não eram textos canônicos,
quando ele os escreveu; essa canonização, transformação do texto
em Escritura, ocorreu ao longo do tempo e depois de debates e
disputas teológicas na Igreja cristã. Nós unitaristas,
tradicionalmente, abraçamos essa compreensão histórica em nossa
apreciação da Bíblia, que, entretanto, não deixa de ser Escritura
sagrada, apesar de sua humanidade!
Para compreender nossa relação de dependência teológica para com
a Bíblia, você precisa compreender que, como escrevi na primeira
parte desta resposta, as tradições cristãs unitarista e
universalista emergiram atreladas ao princípio de “sola
scriptura”; ou seja, as compreensões teológicas
cristãs, na visão de nossos fundadores, deveriam encontrar sua
raison d'être nas Escrituras (Bíblia). O
que diferenciava especialmente os primeiros unitaristas de outros
protestantes era sua valorização do conhecimento humano e da
consciência individual para a leitura das Escrituras – o que,
necessariamente, implicaria uma maior diversidade de perspectivas
teológicas. Mas o que importa, aqui, é saber que todos os
argumentos levantados para as perspectivas teológicas defendidas por
unitaristas, e universalistas, advinham de sua leitura professa das
Escrituras – obviamente, imersa em certas compreensões filosóficas
que marcaram seu próprio tempo, desde o século XVI até hoje.
Logo, apesar de haver princípios comuns aos autores unitaristas ao
longo desses séculos, seus argumentos e compreensões mudavam/mudam
a depender dos contextos culturais nos quais viviam/vivem. Fausto
Sozzini, Joseph Priestley, Thomas Belsham, William
Ellery Channing, James Freeman Clarke, Charles Gordon
Ames, James Luther Adams, e tantos outros autores de nossa
tradição, defendiam visões não plenamente idênticas, mas
entrelaçadas na fé cristã que partilhavam. Assim, por exemplo, um
cristão liberal unitarista como eu pode não se sentir plenamente
confortável com as compreensões esposadas no Catecismo Racoviano
(tão influenciado pelas ideias teológicas de Sozzini), ou mesmo
abraçar as cristologias de Priestley, Channing ou Clarke, mas
reconhecerá que essa diversidade é uma parte essencial de nossa
tradição. Apesar da partilha de muitas ideias, os unitaristas
poloneses e transilvanos, por exemplo, diferiam em muito de seus
correligionários ingleses, que poderiam ser vistos como mais
“liberais”. E os unitaristas ingleses, por sua vez, diferiam dos
unitaristas americanos em termos teológicos. E, nos Estados Unidos,
os unitaristas da Nova Inglaterra diferiam dos unitaristas do Oeste.
Todos, entretanto, se viam como coparticipantes da mesma tradição!
À propósito, a diversidade é uma marca necessária das tradições
cristãs liberais, sejam elas a unitarista, a
universalista, a quaker, a batista geral, a
presbiteriana não-subscrevente ou a remonstrante, por
exemplo. Como encontrar concordância plena em termos de teologia
dogmática é complicado em nosso meio, posso apontar alguns
pontos comuns entre nós – e entre nós e outros cristãos (como
aqueles grupos citados acima):
1) Para nossas tradições, a união comunitária na Igreja não
exige a uniformidade de crenças. Há uma grande valorização do
indivíduo, mas o indivíduo transcende seu isolamento por meio do
mover do Espírito Santo na comunidade. As posições minoritárias
na igreja, em nossas tradições, devem ser protegidas em nome dessa
ação do Espírito Santo (que, obviamente, compreendemos de maneiras
bem diversas em nossas diferentes tradições). A manutenção da
liberdade de consciência individual – talvez a principal
bandeira de nossas tradições – era e é vista como uma aliança
entre a igreja e Deus, e entre os membros da igreja. Dessa ideia duma
aliança particular entre os membros duma igreja, e entre
esses e Deus, e o alto grau de autonomia local que dela
deriva, vem a essência do que é chamado de “congregacionalismo”
– o tipo de eclesiologia mais comum entre nós.
É bom esclarecer, ademais, que a própria democracia política
moderna emergiu dessas ideias congregacionalistas, e outras
semelhantes. O teólogo unitarista James Luther Adams, por exemplo,
chamava esse princípio de “coarquia”, que ele
contrapunha à “hierarquia”. Os defensores da
autonomia da igreja local consideravam que sua visão de “igreja
livre” deveria tornar-se um modelo para um estado democrático.
Seus conceitos políticos derivavam, por analogia, de seus conceitos
eclesiásticos. O que constituíra, originalmente, elementos duma
“eclesiologia” (isto é, duma doutrina sobre a
natureza e organização da igreja), era usado agora como
ingredientes duma teoria política: o consentimento dos governados, a
exigência do sufrágio universal, um executivo sujeito à lei, o
princípio da oposição leal. O conceito básico de sociedade
democrática, assim, descende do conceito de “igreja livre”
defendida pelos nossos ancestrais unitaristas, e de outras tradições
cristãs liberais.
2) Uma crença na e afirmação da dignidade humana, e uma
confiança na capacidade humana. Isso como uma resposta às
noções de natureza humana depravada ou caída características de
certos grupos protestantes. Na verdade, essa pode ser apontada como a
principal diferença entre os unitaristas e outros cristãos. Apesar
de outros cristãos (incluindo os universalistas) terem sempre
enfatizado nossas noções mais antigas sobre Deus ou Cristo como
sendo nosso principal distintivo, nós unitaristas costumamos apontar
nossa visão do ser humano. O Unitarismo rejeita a doutrina do
pecado original – e isso, obviamente, tem um enorme impacto
sobre como nossa tradição compreende o ser humano. O que isso
significa hoje, para nós, é que vemos o ser humano como capaz de
fazer tanto o bem quanto o mal, e daí a importância que damos à
educação, tanto em nosso meio quanto na sociedade como um todo.
3) Uma valorização e paixão pela racionalidade. A história
de nossa tradição é marcada pelo esforço contrário ao
tradicionalismo rígido e arbitrário, e contra aquilo que nossos
antepassados chamavam de “obscurantismo”. Um
encorajamento, apropriação e ênfase de valores da cultura letrada
e da ciência, como formas de compreender nossa fé e enriquecê-la
em nossas vidas sociais. Assim, a leitura das Escrituras na tradição
unitarista foi moldada por essa herança de diálogo entre a fé e a
“alta cultura” produzida pelos meios intelectuais, especialmente
nos países de língua inglesa.
Esses são apenas alguns dos princípios unitaristas, compartilhados
com outros grupos cristãos liberais, que eu poderia apontar. Ainda
devo-lhe uma resposta sobre alguns conceitos sobre Deus e Cristo. Mas
essa fica para uma próxima mensagem.
Grande abraço e bençãos!
+Gibson
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