Caro Edgar,
Recebi sua mensagem esta manhã, e aqui tento responder, mais uma
vez, aos seus questionamentos – sem esquecer que ainda tenho outras
questões que não foram respondidas por falta de tempo.
Se pareço repetitivo, em alguns de meus comentários, é pelo
simples fato de minhas respostas serem públicas e por, supostamente,
muitos de meus leitores não estarem tão familiarizados assim com a
história ou o pensamento teológico unitarista.
Já expliquei, neste blog, a razão pela qual respondo a questões
teológicas de forma pública, mas vale repetir aqui. Como todos os
questionamentos que frequentemente recebo dos visitantes deste blog
se relacionam, majoritariamente, ao que leram aqui, então creio ser
razoável supor que outras pessoas poderiam ter questionamentos
semelhantes. Ademais, uma comunicação pública ajuda a evitar o
alastramento de compreensões errôneas sobre algo que tenha escrito
e publicado aqui: alguém poderá sempre se referir ao que escrevi
publicamente, e eu não poderei dizer que não escrevi aquilo!
Você me compreende equivocadamente se pensa que tenho uma “antipatia
pelo unitário-universalismo”. Não tenho uma “antipatia” pela
tradição do Universalismo Unitarista (é assim que traduzo a
expressão “Unitarian Universalism”) -, em termos de origens
históricas, sou parte dessa tradição. Tenho críticas à maneira
como a mesma é compreendida pelos, chamemos, “recém-conversos”
à tradição e à maneira como uma tradição de fé se tornou
apenas uma ideologia sociopolítica. Minha crítica é de
natureza teológica e, especificamente, eclesiológica. No que
concerne à fé e à teologia, vejo um grande problema quando se
desconstrói demais, e não se constrói nada relevante e duradouro
no lugar; quando se faz questão de abrir mão duma identidade
própria para fazer com que os “novos” se sintam bem-vindos em
nossa própria casa. Novamente, para que você compreenda isso, tem
de se dedicar a compreender a história de nossas tradições de fé
– assim compreenderia a natureza de minha crítica e de muitos
outros.
O termo “Universalismo Unitarista” (ou
“unitário-universalismo”, como queira), hoje, se refere a uma
tradição desassociada de suas raízes cristãs. O termo Unitarismo,
por outro lado, continua a ser – para nós cristãos unitaristas
liberais – uma afirmação de nossa lealdade à tradição
cristã liberal da qual nossa tradição emergiu. Isso não
significa, entretanto, ser adepto de posições teontológicas
(sobre Deus) ou cristológicas (sobre Cristo) específicas. O
que significa, para mim, é que Universalismo Unitarista é
diferente de Unitarismo, e diferente de Universalismo;
o fato de haver emergido duma mescla das tradições unitarista e
universalista não tornam a tradição “unitário-universalista”
sinônimo daquelas duas, que são tradições cristãs. Isso é o que
alguns chamariam de “fato” histórico!
Quanto a mim, como já discuti algumas vezes aqui, faço muita
pouca questão de me identificar estritamente como membro desta ou
daquela tradição cristã – isso em consequência de minhas
múltiplas heranças cristãs. Se o faço aqui é para afirmar minha
herança teológica. Prefiro reconhecer minha dívida para com todas
essas tradições cristãs que moldaram minha fé pessoal (a anglicana, a unitarista, a universalista, a
luterana); e, por isso mesmo, me
identificar como um cristão livre.
E mesmo essa atitude, que marca minha compreensão do Cristianismo,
advém da própria tradição unitarista. James
Martineau,
por exemplo, um teólogo e ministro unitarista inglês do século
XIX, usava o termo “cristão livre”
com o sentido de ser
livre duma imposição de ortodoxia religiosa
– ele sugeria que os unitaristas
deixassem de usar o adjetivo “unitarista” (que, lembre-se, fora
imposto por outros que, equivocadamente, imaginavam que todos os
unitaristas
fossem adeptos duma compreensão teontológica
e cristológica
específica) como identificador, em favor da expressão “cristão
livre”,
que ele acreditava ser mais inclusiva. Assim, as igrejas
“unitaristas” poderiam se tornar o lar de cristãos das mais
diversas teologias, onde todos seriam bem-vindos. Resta dizer que isso, até certo ponto, realmente aconteceu, mas
trouxe consigo um efeito indesejado para os cristãos unitaristas no
mundo anglófono: a “descristianização” de nossa tradição.
Nos Estados Unidos, especificamente, emergiriam outros movimentos nos
meios unitaristas: O Movimento
da Religião Livre,
e o Movimento
Humanista,
que influenciariam a união entre as igrejas universalistas e
unitaristas, e a formação daquilo que hoje é chamado de
Universalismo
Unitarista
(que não deve ser confundido, em absoluto, com os tradicionais
Unitarismo
e Universalismo,
enquanto tradições cristãs).
Logo,
se você perceber, há paralelos entre o que ocorreu com o Movimento
do Universalismo Unitarista ("UUismo") e o Unitarismo, um de seus
berços. O Unitarismo se esforçou para demolir os edifícios que o
separava de outras formas de Cristianismo liberal – assim, podemos
ler, por exemplo, um batista como Harry
Emerson Fosdick
defender, no início do século XX, uma teologia liberal defendida
pelos unitaristas há mais de um século, sem, no entanto, se
identificar como unitarista; assim, me atrevo a dizer que
unitaristas, universalistas, anglicanos, batistas, presbiterianos,
e metodistas, por exemplo, ensinavam, na prática, a mesma coisa até meados do
século XX (durante o auge da teologia liberal no meio protestante
nos Estados Unidos). O “Uuismo”, posteriormente, foi além e
derrubou o edifício teológico cristão para tornar-se uma tradição
multirreligiosa, na qual, paradoxalmente, a própria identidade
religiosa se tornaria sinônimo de quase nada – ou seja, na
prática, a tradição do Universalismo Unitarista se fundamenta em
negações a,
e não em afirmações de.
Algo semelhante ao universalismo multirreligioso
do (polêmico) Rev.
Kirby J. Hensley,
fundador da “Igreja
da Vida Universal”,
cujo dogma era “fazer apenas aquilo que é certo”.
Por isso, faço questão de enfatizar que Universalismo Unitarista
e Unitarismo (e Universalismo) não são idênticos. O
Cristianismo é a raiz da qual emergiu a tradição unitarista – e
também a universalista. Foi daí que emergiu nossa compreensão de
Deus, de Jesus, das Escrituras, da dignidade humana, da liberdade
espiritual e de consciência, etc. Nossa histórica compreensão de
Deus se baseia nos ensinamentos das Escrituras judaico-cristãs sobre
a unicidade de Deus. Nosso compromisso com a liberdade espiritual vem
da noção de que “onde se encontra o Espírito do Senhor, aí
está a liberdade” (2 Coríntios 3:17). Nossa crença na
dignidade humana e, consequentemente, nossa história de inclusão
radical se assenta sobre o espírito das Escrituras que dizem que
“não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo
e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em
Jesus Cristo” (Gálatas 3:28).
Ou seja, as afirmações unitaristas são afirmações cristãs.
Nossas compreensões teológicas específicas podem não ser
partilhadas por todos os cristãos, mas elas emergem das raízes
cristãs. Sua linguagem é cristã, sua narrativa é cristã, sua
identidade é cristã. E essa identidade é maior que nossas
filiações eclesiásticas particulares – assim, os unitaristas que
são membros de igrejas cristãs não-unitaristas não veem isso como
um desafio a suas convicções (ao menos no mundo anglófono, já que
no Brasil as filiações eclesiásticas tendem a estar atreladas à
aceitação de afirmações teológicas específicas, e tendem a não
permitir a duplicidade de membresia eclesiástica). Eu, como a
maioria dos outros cristãos unitaristas que conheço – sejam eles,
nos Estados Unidos, membros de congregações da UUA ou de outras
igrejas unitaristas, ou da Igreja Episcopal, da Igreja Unida de
Cristo; ou, no Brasil,
membros de congregações especificamente unitaristas –, identifico
um unitarista como um cristão liberal e livre, mas, mesmo assim,
fiel à sua tradição de quase cinco séculos. Não preciso
negar essa tradição para ser receptivo a outras pessoas. Prefiro
estar aberto e receptivo a todos, ao mesmo tempo em que me mantenho
fiel à minha identidade religiosa.
Estero ter conseguido responder à sua mensagem de hoje. Grande
abraço!
+Gibson
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