Poucas
coisas ainda conseguem me chocar quando acompanho as notícias
políticas do Brasil e o fanatismo “partidarista” de grande
parcela da sociedade brasileira. Um dos exemplos mais recentes
refere-se ao chamado “Estatuto da Família” e a seu apoio por
parte de supostos defensores do “Estado mínimo”. A insensatez,
incoerência e ignorância teórica desses supostos adeptos das
tradições minimalistas (conservadora, liberal ou liberal
conservadora no Brasil) é um reflexo do vazio “crítico” – e
utilizo “crítico” aqui num senso kantista – do discurso
político brasileiro. Assim, aqueles que normalmente reclamam da
interferência estatal na vida do cidadão, quando lhes convém,
defendem um “Estatuto”, que define o que é uma família, que
estabelece “conselhos da família” etc – ou seja, que entrega
ao Estado ainda mais poderes no que concerne à vida privada... E o
que realmente fazem é atolar-se num lamaçal de incoerências
filosóficas!
Não
tenho muito tempo para escrever hoje, mas permitam-me esclarecer
brevemente porque penso o que penso sobre o tema.
O
artigo 2º do PL-6583/2013 (o tal Estatuto da Família),
de autoria do Deputado Federal Anderson Ferreira, de Pernambuco,
define “entidade familiar como o núcleo social formado a partir
da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união
estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e
seus descendentes.”
Para
o autor do projeto, “a família vem sofrendo com as rápidas
mudanças ocorridas em sociedade, cabendo ao Poder Público enfrentar
essa realidade, diante dos novos desafios vivenciados pelas famílias
brasileiras.”
Em
sua justificativa para o projeto, Anderson Ferreira só não cita o
óbvio: a verdadeira razão para uma definição do que seja uma
entidade familiar é simplesmente excluir as famílias formadas por
casais do mesmo sexo. Em sua “cruzada” em favor duma definição
“heterossexualizante” da constituição familiar (já que, em sua
definição, uma família pode ser formada por apenas um dos
genitores e seus filhos – uma constituição, per se,
já não mais “tradicional”), o autor acaba por não reconhecer
que famílias “tradicionais” podem também ser formadas apenas
por irmãos e/ou irmãs (casos já reconhecidos, no Ocidente, desde,
pelo menos, o Direito Romano).
A
própria definição e o caminho político desse projeto refletem uma
ausência de bom senso, tanto por parte dos que o defendem com
suposta base em argumentos políticos, quanto por aqueles que o fazem
com suposta base em argumentos teológicos (sobre
os quais tratarei posteriormente).
Pensemos,
por exemplo, naquilo que Adam Smith chamou de sistema de “liberdade
natural”. Quando o
Estado funciona da forma certa, deve facilitar as interações entre
pessoas livres, respeitando e protegendo os direitos de cada
indivíduo, independentemente de suas características individuais.
Nossas
sociedades passaram, ao longo dos séculos, por transformações
concernentes à forma como encaramos certos comportamentos sociais.
As leis, como reflexos dessas transformações, também sofreram
alterações. Assim, enquanto, há algum tempo, o casamento era visto
como indissolúvel – e casais que já não mantinham um
relacionamento propriamente conjugal eram forçados a desempenharem o
papel social do “casal”, da “boa família” –, hoje há a
possibilidade de casais desfazerem seus laços legais e se engajarem
em outros relacionamentos. O Estado tem protegido o direito de o
indivíduo desfazer suas ligações conjugais com outra parte, mesmo
que isso acarrete um custo financeiro a uma das/ambas as partes.
O
Estado também reconhece configurações familiares de
facto (isto é, aquelas não
formalmente jurídicas). De fato, a própria definição de família
dada pelo Estatuto em questão o faz, quando diz: “[...] união
entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união
estável[...]”. Ou
seja, o projeto de lei defendido por supostos “tradicionalistas”
reconhece outras formas de organização familiar – como uma
família constituída por uma mãe solteira, por exemplo. Mas não o
faz com um casal formado especialmente por dois homens, porque isso
implicaria, para seu autor e defensores, uma “autorização” para
a adoção por parte de indivíduos ou casais gays.
O
cerne da questão não seria, então, os interesses da sociedade
enquanto aglomerado político – que incluiriam, por exemplo, a
proteção à propriedade, às liberdades individuais e ao direito de
cidadãos livres se engajarem em contratos sociais –, mas, sim, os
interesses duma mentalidade moral
incoerente.
Que
coerência pode haver em pessoas que, em sua visão teológica, são
contrários à liderança eclesiástica feminina, mas, em sua vida
política, apoiam para a Presidência da República uma mulher? Você
consegue acreditar na seriedade/sinceridade deles? Que coerência
pode haver quando um grupo é contrário à intervenção estatal na
vida econômica, por exemplo, mas é favorável à intervenção
estatal na definição das relações humanas para fins de proteção
jurídica?...
Esses
são apenas alguns dos problemas relacionados a esse tal “Estatuto
da Família”. Infelizmente, não tenho tempo para escrever sobre
todos os aspectos nos quais tenho pensado. Basta-me enfatizar que sou
contrário a essa lei que, maquiando-se de protetora das famílias,
presta-se apenas à subtração de proteção legal a famílias
específicas!
VOCÊ
QUER PROTEGER AS FAMÍLIAS BRASILEIRAS? ENTÃO, DIGA NÃO AO
PL-6583/2013!!!
+Gibson
Nenhum comentário:
Postar um comentário