Gibson
da Costa
Fico
sempre muito irritado quando ouço ou leio alguns comentários acerca
da chamada “shari'a”. A maioria das pessoas, seguindo a retórica
dos agentes da imprensa, refere-se à “lei islâmica” como se ela
fosse uma “entidade” única e/ou como se fosse uma grande
aberração.
…Eles
não poderiam estar mais errados!
O
Islã, como o Judaísmo e o Cristianismo, tem um código legal
religioso. Enquanto o código legal judaico ortodoxo é chamado de
“halakhah”, e o cristão é chamado de “direito canônico”
(nas tradições católicas) ou “ordem eclesiástica / ordem da
Igreja” (em muitas tradições protestantes), o código religioso
da Ummah (a comunidade de fiéis muçulmanos) é chamado de “shari'a”
(o Direito Islâmico). Nenhum deles, contudo, é estático ou
uniforme. Como ocorre com as códigos civis, há espaço para muita
diversidade interpretativa no que concerne a esses códigos.
O
que importa, aqui, é que não há nada de absolutamente único ou
estranho com o fato de haver um código legal religioso no Islã –
com base no qual decisões são tomadas sobre a vida em comunidade, a
aceitação ou exclusão de “(in)fiéis”, o status de certas
pessoas, a aceitação ou não de certas crenças ou comportamentos
etc. Isso pode não condizer muito com a mentalidade moderna
ocidental, mas está presente em todas as comunidades de fé, em
maior ou menor grau. Se você é parte de alguma comunidade de fé
(igreja, centro, templo etc) que não possui um código legal
explícito, se ela possui o status de Pessoa Jurídica, terá pelo
menos um Estatuto Social (que mesmo sendo um documento civil, expõe
expectativas que se baseiam nas perspectivas teológicas/religiosas
daquela comunidade)!
Uma
diferença que influencia na percepção que muitos cristãos
ocidentais, especialmente não-católicos, têm da shari'a é o
simples fato de o Cristianismo ocidental, de forma geral, enfatizar a
“crença correta”, enquanto o Islã – assim como o Judaísmo –,
de forma geral, enfatiza as “ações corretas”, o “comportamento
correto” do fiel!
É
importante tentar entender o próprio sentido do termo. “Shari'a”,
em seu sentido não religioso, refere-se a um caminho que leva a um
poço de água. Para as populações do deserto, um poço de água
era/é a diferença entre a vida e a morte. Assim, aplicada à
religião muçulmana, a “shari'a” seria um caminho que leva à
vida – caminho esse divinamente revelado no texto sagrado (o
Corão/Alcorão) e nas tradições orais atribuídas à Muhammad (que
os muçulmanos acreditam ter sido Profeta). É nesse contexto que ela
é a “Lei de Deus” – não muito diferente das ideias de “Lei
de Deus” no Judaísmo ou no Cristianismo.
O
Direito Islâmico não se baseia exclusivamente no Corão – como
também ocorre com o Judaísmo/Cristianismo em relação à Bíblia.
Isto é, em sentido amplo (no que concerne à teoria e à prática),
há uma distinção entre a Lei de Deus (shari'a) – baseada naquilo
que os muçulmanos creem ser revelações divinas – e a atividade
humana de interpretar essa lei – chamada de “fiqh”. O Direito
Islâmico é a combinação desses. De acordo com o fundador do
Direito Islâmico, Muhammad ibn Idris al-Shafi'i (séc.
VIII-IX d.C.), haveria quatro bases fundamentais para o Direito
Islâmico: o Corão; a sunna de Muhammad; o consenso; e a
analogia. Além dessas bases, sobre as quais concordam todas as
escolas jurídicas islâmicas (madh'habs), há outras a depender da
escola (madh'hab) em questão.
O
termo “madh'hab” que citei acima, refere-se à cada uma das
escolas jurídicas do Direito Islâmico. Essas escolas são
tradições jurídicas que guiam a interpretação que um indivíduo
ou grupo aceita em questões legais no Islã. Todo muçulmano adere a
uma madh'hab específica, independentemente do
ramo islâmico do qual seja adepto.
No
Islã sunita há, hoje, quatro madh'habs principais: a Hanafi;
a Maliki; a Shafi'i (cujo nome vem de Muhammad ibn
Idris al-Shafi'i, que citei acima); e a Hanbali (a escola que
originou o ramo Salafi, que, por sua vez, influenciou a maioria dos
movimentos jihadistas conhecidos – como a Irmandade Muçulmana, o
Taliban, a al-Qa'ida, e o chamado Estado Islâmico). Todas elas
possuem algumas subdivisões. Ademais, historicamente, possuem
adeptos em regiões específicas do mundo – a depender de como o
Islã se propagou por aquela região. Há muitas outras madh'habs,
mas essas são seguidas por um número muito pequeno de adeptos que
se encontram em regiões geográficas muito limitadas.
No
Islã xiita, por sua vez, há um número ainda maior de madh'habs,
mas as duas principais delas – ou seja, aquelas seguidas por um
maior número de adeptos – são a Jaf'ari e a Batiniyyah,
ambas com suas subdivisões.
Ou
seja, se formos intelectualmente íntegros, nos recusaremos a comprar
a retórica ignorante, islamofóbica, e nem um pouco inocente dos que
atrelam a noção de “shari'a” ou “lei islâmica” ao
terrorismo ou assassínio de “jihadistas radicais” – o próprio
termo “jihadista” deve ser utilizado com cuidado, já que “jihad”
não significa necessariamente “guerra física”; e ser um
“jihadi” nem sempre se refere a fazer guerra física (o termo
pode ser usado como uma metáfora duma “batalha espiritual” –
noção muito comum a alguns cristãos hoje em dia, especialmente nas
tradições pentecostais ou carismáticas). É bom lembrar, ademais,
que no Islã não existe a expressão “guerra santa” - essa
expressão é uma invenção “cristã”!
+Gibson
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