Frequentemente,
utilizo as palavras “metáfora” e “mito” para me referir às
narrativas bíblicas. Por conta disso, já me acostumei às reações
que muitas pessoas têm a esse uso. Muitos, por exemplo, podem não
se sentir desconfortáveis com o termo “metáfora”, mas reagem
negativamente ao termo “mito” por compreendê-lo erroneamente:
entendem “mito” como sinônimo de “mentira”; assim como
entendem “verdade” erroneamente como sinônimo, apenas, de
“factualidade”. Eu, obviamente, continuarei a utilizar esses
termos para tratar de três grandes “mitos” cristãos – as
narrativas sobre o nascimento, a morte e a ressurreição de Jesus de
Nazaré – e hoje, especificamente, gostaria de tratar acerca do
mito do Natal de Jesus.
No
estudo da religião e da teologia, um “mito” não é uma
“mentira”. Mitos sagrados, como aqueles que encontramos na
Bíblia, por exemplo, são narrativas simbólicas
sobre a relação entre a dimensão sagrada e aquela de nossa
experiência comum. Esses mitos são verdadeiros, mesmo que
não sejam relatos factuais do que aconteceu na realidade humana. Sua
verdade encontra-se além de sua (não) factualidade. Mesmo que a
linguagem utilizada na Bíblia cristã para falar sobre o nascimento
de Jesus – uma mãe virgem, três reis do Oriente, uma nova
estrela, etc – não represente factualidades históricas, isto é,
coisas que factualmente aconteceram no mundo físico, ela aponta para
o significado que Jesus tem para a narrativa cristã. É nesse
sentido que – acompanhando autores como Rudolf Otto, Mircea
Eliade, William James e Marcus J. Borg – chamo
esses relatos de “mitos”.
Obviamente,
talvez a maioria dos cristãos abrace uma interpretação apresentada
como “literal” (ou seja, o que “está escrito” deve
ser compreendido exatamente como está expresso no texto) – apesar
de que, se formos intelectualmente íntegros, deveremos reconhecer
que absolutamente ninguém razoável interpreta o todo das Escrituras
Sagradas de forma literal, já que toda interpretação é sempre
seletiva (mesmo as mais aparentemente “literais”). Assim, muitos
cristãos insistirão que não é possível “ser cristão” sem
acreditar na literalidade das narrativas
bíblicas sobre o nascimento de Jesus, por exemplo. Essa visão
factualista das Escrituras tem uma origem moderna, mas foi
naturalizada de tal forma, por tantos cristãos, que nossa cultura a
vê como a norma, ignorando as diferentes tradições interpretativas
da Igreja cristã.
A
necessidade de certezas absolutas, para aqueles que compreendem a
história como um conflito entre a “verdade” e a “mentira”,
faz com que só possa haver duas possibilidades: ou o nascimento de
Jesus se deu como dizem os diferentes relatos do Novo Testamento
cristão ou esses relatos são mentirosos – o que muitas dessas
pessoas não se dão conta é que todos os relatos nos Evangelhos
canônicos são diferentes, por mais que mantenham elementos em
comum. Assim, o que se perde – com essa ênfase factualista – é
o poder da linguagem metafórica que enriquece os elementos factuais
da narrativa natalina. A arte linguística da metáfora,
presente naquelas narrativas bíblicas não exige nossa “crença”:
exige, sim, nossa “visão”; ou como já escreveu o falecido
professor Marcus J. Borg: “O ponto não é acreditar em uma
metáfora, mas ver à luz dela” (2001: 41).
“Ver
à luz” da metáfora natalina é, em minha experiência espiritual,
ser circundado por uma melodia que me convida à dança divina –
uma dança que honra minha própria humanidade ao despertar em mim um
senso de dependência e de compaixão. Esse senso não significa que
eu tenha, de alguma forma, me “aperfeiçoado”; significa, sim,
que sou ajudado a reconhecer a necessidade de me aproximar do
“divino” através da aproximação a outras pessoas e ao resto da
Criação.
Assim,
pensar na narrativa dum “príncipe da paz” que nasceu em
condições de exclusão (Lucas 2:7) e sob a ameaça da violência e
que, por isso, teve de se refugiar em terra estrangeira (Mateus
2:13-15) – independentemente da (não) factualidade do relato –
me faz pensar naqueles seres humanos que, hoje, realmente passarão o
Natal se refugiando da violência humana. Esses seres humanos, para
mim, são também “Deus conosco”, já que são a
presença divina testemunhando contra nosso pecado de violência e
indiferença ao sofrimento humano. O relato mais que factual sobre o
nascimento do menino chamado de o “príncipe da paz”, no meu “ver
à luz” da metáfora, é um lembrete de que eu – enquanto
discípulo professo daquele personagem – não posso aceitar que
outros seres humanos sejam tratados indignamente. Afinal, como diriam
as palavras atribuídas àquele mesmo menino, já como adulto, “todas
as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos,
foi a mim que o fizeram” (Mateus 25:40).
Assim,
ser envolto pela melodia narrativa do Natal é ser relembrado da
visão de “shalom”/”salam” presente nas Escrituras. A visão
de um menino que vem à terra como o “Deus conosco” e mostra que
todos os seus “irmãos” são também “Deus conosco”, e que
devemos tratá-los como trataríamos aquele que chamamos de nosso
“Salvador”.
As
celebrações desta noite são, para mim, um lembrete desta tarefa
sagrada que nos foi imposta por nosso Profeta, Mestre, Messias,
Senhor – sim, Jesus de Nazaré, chamado de Cristo. Esse é um dos
mais importantes sentidos que encontro na narrativa natalina: um
convite à “divinização” de toda a vida, de toda a humanidade,
de toda a Criação – um lembrete de que Deus se faz presente em
minha vida por meio de outras pessoas, de que suas faces são um
reflexo da Presença divina e daquele que seria chamado de “Filho
do homem”.
Minha
sincera oração é que todos nós que professamos ser discípulos de
Jesus Cristo tenhamos a ousadia de fazer ao nosso próximo o que
faríamos a ele próprio. Que nos levantemos contra a violência, o
descaso, a indiferença, o egoísmo e entremos naquela dança divina
à qual somos convidados pelos cânticos natalinos. Como dizem as
palavras daquela Oração de Despedida:
“Cristo
nasce em nós quando abrimos nossos corações à inocência e ao
amor. Cristo vive em nós quando caminhamos a senda do perdão,
reconciliação e compaixão. Cristo morre em nós quando nos
rendemos à nossa própria arrogância, egoísmo e ódio. Cristo
ressuscita em nós quando nossas almas se despertam da morte
espiritual para se unirem à comunidade de amor, para entrar no reino
divino aqui mesmo neste mundo. […]”
Feliz
Natal a todos. Que a metáfora da narrativa natalina possa ajudar-nos
a abrirmos nossos corações e a caminharmos a senda de Jesus.
+Gibson
Referência:
BORG,
Marcus J. Reading the Bible again for the first time. Nova
York: HarperCollins, 2001.
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