Nossa
época evidencia o quanto nossas tradições de fé têm sido
sequestradas pela retórica do medo, da desconfiança, da
intolerância, do fanatismo e do ódio. Outro dia, por exemplo, ouvi
um pregador falar tão entusiasticamente da “ira de deus” que
suas palavras me causaram náusea. Ele proclamava um suposto ódio de
seu “deus” a todos aqueles que não abraçavam sua visão
teológica – e o mais assustador é que se tratava de um pregador
duma tradicional igreja cristã.
A
retórica daquele cristão, infelizmente, é compartilhada por muitos
outros cristãos, judeus e muçulmanos – além de irmãs e irmãos
de outras tradições de fé. O Deus que nossas tradições proclamam
como “amor” é substituído por um deus faccioso de ódio,
violência e vingança. Abandonamos o Deus do Universo e nos apegamos
ao deus nacional; trocamos o Deus do amor e da paz pelo deus das
metralhadoras e da guerra.
Como
sempre repito, rejeito a ligação entre Igreja/Religião e Estado –
justamente porque essa ligação subentende uma deidade e uma fé
nacionais, tribalistas. Isso, contudo, não equivale a dizer que
minha fé não seja política. Tudo o que se estabelece na
convivência entre seres humanos é político – e isso inclui,
necessariamente, tanto nossas comunidades de fé quanto as convicções
e práticas que os membros dessas comunidades partilham entre si.
Já
imaginaram o quão político é o mandamento judaico, cristão e
muçulmano de amar e cuidar dos demais humanos? E ele é “político”
principalmente porque só pode ser cumprido através de nossa relação
com outras pessoas. É convivendo com elas e nos portando de certa
maneira para com elas que podemos cumprir o espírito de nossa fé.
Essa é uma exigência das tradições de fé judaicas, cristãs e
muçulmanas.
Nas
Escrituras dessas três tradições, encontramos exemplos claros
desses mandamentos. Quando nos voltamos à Bíblia Hebraica,
por exemplo, encontramos:
Não
explore o imigrante nem o oprima… Não maltrate a viúva nem o
órfão… Se você emprestar dinheiro a alguém do meu povo, a um
pobre que vive ao seu lado, você não se comportará como agiota:
vocês não devem cobrar juros. (Êxodo 22:20-24)
Não
faça declarações falsas e não entre em acordo com o culpado para
testemunhar em favor de uma injustiça. Não tome o partido dos
poderosos para fazer o mal. E, num processo, não preste depoimento
inclinando-se em favor dos poderosos, a fim de torcer o direito; nem
favoreça o poderoso em seu processo. Se você encontrar,
extraviados, o boi ou jumento de seu adversário, leve-os ao dono. …
(Êxodo 23:1-4)
No
Novo Testamento cristão, encontramos:
Vocês
ouviram o que foi dito aos antigos: 'Olho por olho e dente por
dente!' Eu porém lhes digo: não se vinguem de quem faz mal a vocês.
Pelo contrário: se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça
também a esquerda! Se alguém faz um processo para tomar de você a
túnica, deixe também o manto! Se alguém obriga você a andar um
quilômetro, caminhe dois quilômetros com ele! Dê a quem lhe pedir,
e não vire as costas a quem lhe pedir emprestado. (Mateus 5:38-42)
Não
paguem a ninguém o mal com o mal; a preocupação de vocês seja
fazer o bem a todos. Se for possível, no que depende de vocês,
vivam em paz com todos. … se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de
comer; se tiver sede, dê-lhe de beber… Não se deixe vencer pelo
mal, mas vença o mal com o bem. (Romanos 12:17-21)
Se
alguém pensa que é religioso e não sabe controlar a língua, está
enganando a si mesmo, e sua religião não vale nada. Religião pura
e sem mancha diante de Deus, nosso pai, é esta: socorrer os órfãos
e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo.
(Tiago 1:26-27)
E
se formos até o texto do Alcorão, lemos:
Em
nome de Deus, o Compassivo, o Misericordioso. (1:1)
… Piedoso
é aquele … que dá dos seus pertences... aos parentes, aos órfãos,
aos necessitados, aos viajantes, aos mendigos; é aquele que resgata
os cativos, que faz suas orações e que paga a contribuição
destinada aos pobres, que cumpre com suas obrigações e é
resistente nas dificuldades, no infortúnio e no perigo. Esses é que
são os crentes e os piedosos. (2:177)
E
Deus ordena a justiça, o fazer o bem aos outros e a generosidade
para com os parentes; e proíbe a indecência, o ilícito e a
opressão. E Ele ordena que vocês se lembrem disso! (16:90)
Deus
está com os piedosos e com os que fazem o bem. (16:128)
É
hora de nos voltarmos àquela fé proclamada em nossos textos
sagrados. A fé do serviço, do amor, da reconciliação, da paz, da
compaixão. Essa fé é incompatível com a retórica de ódio e
violência que tem se tornado a linguagem política e religiosa mais
ouvida nos meios de comunicação. É uma questão de sobrevivência
para nossa dignidade comunal.
Se
nos calarmos diante do que acontece, nos tornamos cúmplices da
insanidade e da imoralidade política deste mundo. Voltar as costas a
quem sofre, fechar as portas aos desabrigados e famintos, se aliar
aos poderosos, clamar por armas, apoiar guerras e cultuar o poder do
dinheiro e das corporações é rejeitar tudo o que nossas tradições
nos ensinam sobre o Divino e sobre a compaixão.
É
hora de escolhermos que caminho seguiremos: o caminho da paz ou das
armas? Do perdão ou da vingança? Da compaixão ou do ódio?
+Gibson
Nenhum comentário:
Postar um comentário