Incontáveis
vezes ouço aquelas mesmas provocações de ambos os lados do
espectro: dos não religiosos, a provocação do como posso ser tão
“estúpido” para acreditar em Deus e seguir uma religião – uma
das razões para esse seu pensamento é que essas pessoas só
conseguem enxergar a busca espiritual e religiosa como uma
“necessidade de conforto” –; do outro lado, aqueles religiosos
mais “tradicionais” (esse é um termo inapropriado para a ideia
aqui, já que me considero muito tradicional, mas deixarei essa
discussão semântica para depois!), que me provocam dizendo que não
sou cristão por não entender a fé cristã da mesma forma que eles.
Ambos os tipos de provocações já se tornaram uma rotina em minha
vida ministerial e intelectual, a ponto de me cansarem de tédio!
Honestamente,
preferiria que alguém – fora de minha comunidade de fé, isto é –
quisesse gastar seu tempo e o meu com uma discussão mais útil sobre
fé, vida, e serviço cristãos. Um cristão como eu, que possui um
background múltiplo – mergulhado nas tradições unitarista,
anglicana, e luterana, além da tradição liberal judaica – está
inserido demais num mundo teologicamente diverso para abraçar
versões exclusivistas do Cristianismo. Estou muito satisfeito com
minha fé elástica, moldada por minha experiência do Divino e do
mundo, com a qual minha compreensão daquele Mistério Eterno é
moldada a cada novo instante.
Minha fé
não é uma fé de certezas e conforto. É, antes, uma jornada de
descoberta, ao longo da qual abraço a plenitude do desconhecido e
tento ouvir a voz daquele Mistério Tremendo, que chamo pelo nome de
“Deus”. Minha fé não me garante que alcançarei um destino
certeiro, pois a jornada é o que mais me importa. Quero a presença
de Deus – paz, perdão, reconciliação, compaixão, amor, etc –
aqui e agora, e não numa suposta glória pós-mortal. Acredito que o
Divino se revela a cada momento da caminhada: quando nos acordamos e
quando dormimos; quando choramos e quando sorrimos; quando sozinhos
ou quando acompanhados; quando nos amamos e quando aborrecemos uns
aos outros; quando nos abraçamos e mesmo quando nos ofendemos –
em cada um desses momentos, podemos descobrir um aspecto novo da
manifestação do Divino.
Mais do
que estar preocupado com a crença correta a ser abraçada pelo
cristão (não que esta não seja importante, até certo ponto),
preocupo-me com a ação correta daquele que se diz discípulo de
Jesus. Para mim, é a prática correta – a ortopráxis
– que define o verdadeiro cristão; e quando falo nesta “prática
correta”, não me refiro à liturgia, mas à eticidade de nossas
ações como cristãos para com todas as outras pessoas e para com o
todo da Criação.
Todos
que discordam de minhas ideias teológicas estão sempre muito
dispostos a citar versos e mais versos das Escrituras para provarem
que o que acredito é errado e não-cristão. É interessante como
nossa prática cristã (especialmente no meio Protestante) tem sido a
de tornar a Bíblia cúmplice de nossas concepções dogmáticas
(religiosas ou políticas), com todos os lados fazendo uso da mesma
coleção de escritos sagrados para legitimarem seus discursos. Não
consigo deixar de pensar que a mesma Bíblia que era utilizada para
legitimar a escravidão, até o século XIX, era também utilizada
para denunciar essa prática como uma abominação diante de Deus;
que a mesma Bíblia que era utilizada, por alguns, para legitimar a
guerra, era também utilizada, por outros, para advocar o pacifismo;
que a mesma Bíblia utilizada para justificar a submissão da mulher
ao homem e de pessoas não-brancas a pessoas brancas, era (e ainda é)
utilizada por outros para ensinar que o Evangelho proclama o fim
dessas distinções diante de Deus.
Apesar
de não querer reforçar aqui a ideia de que Bíblia e Cristianismo
sejam sinônimos – para mim, não são, pois ambos se complementam:
a Escritura surge a partir da Igreja e a Igreja forma seu pensamento
a partir do testemunho bíblico –, quero mostrar, nas Escrituras,
exemplos (equivocadamente deixados de lado por alguns cristãos) de
uma fé que sobrepuja nossa preocupação com dogma, verdade,
certeza, exclusivismo; exemplos duma fé extravagantemente graciosa,
radicalmente inclusiva, e inflexivelmente compassiva. Exemplos bem
diferentes daqueles tão frequente e convenientemente enfatizados
pelos dois grupos de pessoas que costumam ter problemas com o
pensamento de cristãos liberais como eu. Eis algumas dessas passagens
das Escrituras que moldam minha fé cristã:
“Não
explore o imigrante nem o oprima […]” (Êxodo 22:20)
“Quando
um imigrante habitar com vocês no país, não o oprimam. O imigrante
será para vocês um concidadão: você o amará como a si mesmo […]”
(Levítico 19:33-34)
“O
jejum que quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as
correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar
qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua
casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não
se fechar à sua própria gente. Se você fizer isso, a sua luz
brilhará como a aurora, suas feridas vão sarar rapidamente, a
justiça que você pratica irá à sua frente e a glória do Senhor
virá acompanhando você. Então você clamará, e o Senhor
responderá: “Estou aqui!” Isso se você tirar do seu meio o
jugo, o gesto que ameaça e a linguagem injuriosa; se você der o seu
pão ao faminto e matar a fome do oprimido. Então a sua luz brilhará
nas trevas e a escuridão será para você como a claridade do
meio-dia […]” (Isaías 58:6-10)
“Ó
homem, já foi explicado o que é bom e o que o Senhor exige de você:
praticar a justiça, amar a misericórdia, caminhar humildemente com
o seu Deus.” (Miqueias 6:8)
“Venham
para mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu
fardo, e eu lhes darei descanso. Carreguem a minha carga e aprendam
de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão
descanso para suas vidas. Porque a minha carga é suave e o meu fardo
é leve.” (Mateus 11:28-30)
“Não
há distinção entre judeu e grego, pois ele é o Senhor de todos,
rico para com todos aqueles que o invocam. Porque todo aquele que
invoca o nome do Senhor, será salvo.” (Romanos 10:12-13)
“Que
o amor de vocês seja sem hipocrisia: detestem o mal e apeguem-se ao
bem; no amor fraterno, sejam carinhosos uns com os outros,
rivalizando-se na mútua estima. […] Abençoem os que perseguem
vocês; abençoem e não amaldiçoem. Alegrem-se com os que se
alegram, e chorem com os que choram. Vivam em harmonia uns com os
outros. Não se deixem levar pela mania de grandeza, mas se afeiçoem
às coisas modestas. Não se considerem sábios. Não paguem a
ninguém o mal com o mal; a preocupação de vocês seja fazer o bem
a todos os homens. Se for possível, no que depende de vocês, vivam
em paz com todos. […] Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de
comer; se tiver sede, dê-lhe de beber; […] Não se deixe vencer
pelo mal, mas vença o mal com o bem.” (Romanos 12:9-21)
“Não
fiquem devendo nada a ninguém, a não ser o amor mútuo. Pois quem
ama o próximo cumpriu plenamente a Lei. De fato, os mandamentos: não
cometa adultério, não mate, não roube, não cobice, e todos os
outros se resumem nesta sentença: “Ame o próximo como a si
mesmo.” O amor não pratica o mal contra o próximo, pois o amor é
o pleno cumprimento da Lei.” (Romanos 13:8-10)
“Paremos,
portanto, de julgar uns aos outros. Ao contrário, preocupem-se em
não ser causa de tropeço ou escândalo para o irmão.” (Romanos
14:13)
“Se
alguém pensa que é religioso e não sabe controlar a língua, está
enganando a si mesmo, e sua religião não vale nada. Religião pura
e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos
e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do
mundo.” (Tiago 1:26-27)
“Assim
também é a fé: sem as obras, ela está completamente morta.”
(Tiago 2:17)
“Amados,
amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus. E todo aquele que
ama, nasceu de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a
Deus, porque Deus é amor.” (1 João 4:7-8)
Essas
passagens falam por si mesmas. Àqueles que costumam me acusar de
politizar minha fé em excesso, só me resta usar esses poucos
exemplos bíblicos como minha defesa e evidência de que as raízes
bíblicas da tradição cristã é que tornam a fé uma questão
“política” (isto é, uma questão de nossa inter-relação com o
todo da Criação de Deus). E é justamente por isso que a fé cristã
tem relevância em minha própria experiência – porque Jesus e,
consequentemente, o Cristianismo me chamam à ação, me convidam a
participar na obra de reconciliação de Deus. Por isso posso
acreditar em Jesus e ser seu seguidor!
+Gibson
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