Enquanto
conversava com um grupo de amigos ontem, alguém fez um comentário
um tanto inesperado, no contexto do que discutíamos, mas, até certo
ponto, verdadeiro. Fui chamado de “conservador” numa discussão
teológica! Todos se entreolharam, alguns riram, alguém chegou a
perguntar ao colega o sentido da palavra “conservador” para ele,
e, em seguida, ele respondeu “Não falo teologicamente; acho que
você seja um conservador socialmente!”. “Ufa! Que susto!” -
brinquei.
Brincadeiras
à parte, é engraçado o limite que enfrentamos quando tentamos
classificar ideias e atitudes. Como alguém que se ocupa de pensar
sobre minha tradição religiosa – leia-se o “Cristianismo
protestante” –, sou geralmente visto como qualquer coisa, menos
ortodoxo. E essa é uma visão não apenas alheia, como a minha
própria autoclassificação. Gosto de enfatizar que sou,
teologicamente, um herege, já que enfatizá-lo é afirmar a herança
teológica na qual emergi como homo religiosus. [Essa
auto-classificação per se
já é problemática, pois quase ninguém entende o que significa o
adjetivo “herege” quando este é usado no contexto da fé. Isso
inclui pessoas supostamente bem informadas em se tratando da Teologia
e de outras “ciências humanas”, por exemplo.]
Afirmar
minha herança herética, entretanto, não é negar que a fé e a
tradição religiosas exerçam um grande papel em minha vida. E não
poderia ser diferente. Essa é a razão pela qual sou um Ministro
religioso. Essa é a razão pela qual me engajo no estudo e discussão
de minha tradição de fé. Nesse sentido, sou um conservador: alguém
que busca manter viva a tradição de fé [herética] que me
alimenta; alguém que se esforça para caminhar nos limites de minha
própria tradição teológica, mesmo explorando caminhos paralelos
que me ajudem a ampliar a dimensão do entendimento de minha própria
tradição de fé.
Conheço
as objeções que muitos fazem a essa ideia, mas partilho, até certo
ponto, das perspectivas clássicas de Christopher Dawson da religião
– ou da “dinâmica espiritual” – como modeladora da cultura
duma sociedade. Para ele, claro, essa “religião” não precisaria
ser algo explicitamente religioso, poderia ser uma “religião
disfarçada”. Marcelo Gleiser, inclusive, fala desse mesmo disfarce
quando sugere que mesmo ateus podem transformar sua busca por um
ideal de perfeição – nos esportes, na ciência etc – em um
ritual sacro. Então, quando meus amigos ateus zombam de minha
“religiosidade”, não posso fazer nada mais além de zombar da
sua também! Alguns deles se ocupam tanto em desacreditar a fé, por
exemplo, que chegam a soar ainda mais visceralmente dogmáticos do
que aqueles que tentam desacreditar! Nesse sentido, sua suposta
descrença é sua religião!
Aqueles
de fora de minha herança de fé têm um grande problema em
compreender a relação entre minha fé e minha orientação
emociono-sexual, por exemplo. Para eles, especialmente os que não
são religiosos (por mais inacreditável que isso possa parecer!),
ser um Protestante (claro que eles não compreendem absolutamente
nada sobre o Unitarismo, o Anglicanismo, ou o Luteranismo – minhas
tradições pessoais) é irreconciliável com uma identificação
“gay”. Para os religiosos, especialmente os protestantes
evangelicais – que enfatizam uma visão do papel das Escrituras
aparentemente irreconciliável com a minha –, simplesmente não sou
cristão! Para aqueles que tornaram a homossexualidade (como odeio
esta palavra!) sua religião – sim, porque não conseguem se
enxergar como nada mais além de gays; tudo o que supostamente sofrem
resume-se ao “fato”(?) de serem homossexuais! –, minha fé é
uma ofensa descabida, já que sou parte da “instituição” (i.e.,
a religião) que os oprime!... E a ladainha se repete
ininterruptamente em minhas interações sociais!
Além
disso, há ainda o fator político! Geralmente, só se consegue
pensar em termos das posições diametralmente opostas do espectro
político – as antigas “direita” e “esquerda” que,
desculpe-me Norberto Bobbio, não sei se fazem tanto sentido no
Brasil de hoje –, ignorando-se quaisquer perspectivas que não se
encaixem perfeitamente a esse molde prefabricado. E essa monotonia
ideológica que paira sobre nossos diálogos intermináveis é
irritante! Esses supostos diálogos são, na verdade, um monólogo
disfarçado – um monólogo de velhas ideias que temem ser
desafiadas por novas fusões de ideias – que tenta acorrentar
mentes jovens. Um verdadeiro enfado; um verdadeiro enfado que tenta
acorrentar o próprio Deus!
Por
isso sou um autoproclamado herege. Se a heresia é, etimologicamente,
uma questão de escolha, então sou um herege! Um cristão herege. Um
judeu herege. Um ortodoxo herege. Um liberal herege. Um conservador
herege. Um herege herético. Um ser humano fundamentalmente à beira
duma fé permanentemente herética!
+Gibson
DAWSON,
Christopher. Progresso e
Religião: uma
investigação histórica. Tradução Fábio Faria. São Paulo: É
Realizações, 2012.
GLEISER,
Marcelo. O fim da Terra e
do céu: o Apocalipse na
Ciência e na Religião. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.
31.