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sábado, 1 de setembro de 2012

Palavras verdadeiras ou falsificadas?


(Leitura: João 6:56-69)


Para aqueles de vocês que têm participado da classe de adultos da Escola Dominical, onde agora estamos explorando um livro de Jack Miles, “Deus: uma biografia”, ou que tenham participado de outras discussões que tivemos anteriormente, isso não será novidade; para aqueles que não têm participado de nosso fórum de discussão, talvez esse seja um fato despercebido: a Bíblia é um clássico literário traduzido, conhecido em suas línguas originais apenas por um número limitadíssimo de pessoas. [1]

Todos os que já foram meus alunos no seminário costumam brincar com a primeira pergunta que os faço quando começam a estudar comigo: “Alguém aqui já leu a Bíblia?”. Todos levantam as mãos. Alguns retrucam que não a leram completamente. Outros dizem que já a leram muitas vezes. Costumo, então, demonstrar minha alegria e perplexidade em saber que somos um grupo de estudantes tão linguisticamente capacitados, e que isso facilitará em muito nosso trabalho durante o semestre – já que todos conhecem hebraico e grego tão bem! Os rostos mudam de expressão. “Mas além do hebraico e grego, também conseguem ler latim sem problemas?”... E o gelo é quebrado!

A brincadeira que sempre faço com meus alunos tem a ver com o fato de a maioria das pessoas lerem traduções das Escrituras, e não os textos nas línguas originais das mesmas. Sei que aqui entre nós há outros tradutores além de mim. A Sílvia, por exemplo, é tradutora de alemão, e tem trabalhado conosco, no IRWEC, traduzindo textos teológicos importantes. Semana passada, numa conversa, falávamos sobre a dificuldade em manter a inteligibilidade dum texto, ao mesmo tempo em que nos esforçamos para mantermo-nos fiéis à linguagem própria do autor do texto que estejamos traduzindo. Entretanto, independentemente do excelente trabalho de tradução efetuado por um tradutor ou um grupo de tradutores, quando lemos uma tradução, não estamos lendo o texto original – estamos lendo a interpretação daquele feita por um terceiro.

Recentemente, ensinei um minicurso a um grupo de universitários não acostumado a questões como essas, e percebi o quão difícil foi, para alguns deles, entenderem que a “Bíblia” que discutíamos era uma construção histórica. Era uma construção, em primeiro lugar, por não ter “caído do céu” pronta – seus textos, independentemente da natureza que lhes atribuamos (i.e., se inspirados pelo Divino ou não), foram compostos e editados por humanos como nós durante um longo período de tempo; em segundo lugar, todos aqueles textos foram vertidos duma língua a outra, e (por muito tempo) dessa outra a uma terceira – e imaginem a dificuldade que se teria, antes de se ter acesso a tecnologias linguísticas tão sofisticadas (e, mesmo assim, limitadas) como as que temos hoje, para traduzir um texto do hebraico para o grego, e depois traduzir essa tradução para o latim: quantos “equívocos” linguísticos, e consequentemente, teológicos, não poderiam ter resultado disso?; em terceiro lugar, aquilo que chamamos de “Bíblia” não é um livro, mas, como indica seu próprio nome, que deriva do grego, é uma pluralidade, uma coleção de escritos – que não surgiram todos ao mesmo tempo e no mesmo lugar, nem foram compostos pelo mesmo autor, nem na mesma língua original! Imaginem o quão confuso e traumático isso pode ser para alguém que está acostumado a ler uma tradução que é tratada como uma obra única e original!

A reação de muitas pessoas – seja um público mais geral, quando falo em ambientes fora de nossa comunidade de fé, ou seja em meio a um grupo de estudantes – tem sido a de surpresa e ofensa, quando falo de um tema tão natural como este: o fato de nossa Escritura Sagrada, em inglês e/ou português, no caso de nossa comunidade, ser a tradução de uma construção histórica imperfeita. Como ouso tomar este tempo tão sagrado em nossa comunidade, no qual outros pregadores em outras comunidades cristãs estariam exaltando palavras extraídas de suas traduções da Bíblia, para chamá-la de construção histórica imperfeita, de criação humana, ou de uma simples tradução? Isso, em si, já seria evidência mais que suficiente de nossa heresia e não-cristandade, na visão de algumas pessoas.

Mas, para aqueles que costumam se preocupar tanto em afirmar a biblicidade de sua fé, faço uma pergunta: onde, em sua tradução da Bíblia – ou em seu texto em hebraico e grego – está explícita e inequivocamente declarado que este volume que alguns costumam carregar em suas mãos com orgulho seja sinônimo de Evangelho? Onde está escrito que o centro da fé cristã é um volume de textos escritos e traduzidos por outros homens – e onde está listado que textos sejam esses, exatamente –, e não a vida, obra e ensinamentos daquele que todos os cristãos dizem seguir?

Sempre penso que a questão por trás da insegurança que acompanha o enfrentamento da historicidade das bases teológicas de nossa fé seja, de fato, a questão da verdade. Pois se desafiarmos uma compreensão literal restritiva das narrativas bíblicas, por exemplo, estaríamos negando “a verdade”. O problema é que esse tipo de argumento só faz sentido se entendermos “verdade” como sinônimo necessário de “factualidade” – um equívoco interpretativo cometido não apenas por cristãos fundamentalistas, mas também muito defendido por ateus militantes (quando se trata de suas críticas ao Cristianismo, em particular).

A hermenêutica cristã fundamentalista – ou seja, a teoria que baseia sua interpretação dos textos sagrados – enxerga (quando lhe é conveniente, isto é) as narrativas bíblicas como relatos factuais. Assim, Jesus, de fato, caminhou sobre as águas; Moisés, de fato, abriu o Mar Vermelho; de fato houve um primeiro casal num Jardim do Éden etc. A leitura dessas tradições bíblicas não pode ser feita de maneira metafórica, pois a factualidade das narrativas é essencial para a veracidade da Escritura. A não-factualidade narrativa invalidaria a veracidade das palavras. Imaginem o efeito duma operação interpretativa como essa, se a mesma fosse aplicada à famosa pintura de John Trumbull representando a assinatura da Declaração de Independência dos Estados Unidos e à pintura de Pedro Américo que representa a declaração de Independência do Brasil por D. Pedro I: os eventos que representam não seriam verdadeiros, se os cenários não tivessem sido como representados naquelas obras de arte!

Alguns poderiam argumentar que a narrativa cristã só é verdadeira se aquele suposto discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum, que acabamos de ouvir na leitura do Evangelho de hoje, de fato aconteceu, ou aconteceu literalmente como relatado. Não preciso reforçar que não compartilho dessa compreensão de “verdade”. Para mim, não importa se a tradição oral que deu origem àquela narrativa escrita tenha surgido apenas como resposta ao sentimento dos seguidores do rabino nazareno após o que veio a ser chamado posteriormente de “Ressurreição”, e que não tenha factualmente ocorrido como relatada ou que não tenha ocorrido de forma alguma. Para o espírito da tradição cristã, independentemente das peculiaridades de cada uma de nossas correntes teológicas, aquelas palavras são verdadeiras. Nós unitaristas, e outros cristãos e judeus liberais, diríamos que a “verdade” não se encontra nas palavras per se daquela narrativa, mas nos efeitos que as mesmas têm em transformar nossas mentes e ações; se elas ajudam-nos em nosso processo de Imitatio Dei (Imitação de Deus) e Imitatio Christi (Imitação de Cristo), elas nos levam à Verdade Eterna, então são verdadeiras – mesmo que sejam metafóricas.

Na introdução de “Verdade e Método” (sim, estou usando uma tradução), o filósofo Hans-Georg Gadamer, sugere algo interessante: em se tratando da investigação filosófica, seria uma fraqueza que alguém hoje não reconhecesse a verdade presente nos textos dos grandes filósofos do passado, como Platão, Aristóteles, Leibniz, Kant ou Hegel, achando que poderia construir sua própria filosofia sem beber da fonte desses pensadores [2]. Para mim, seu raciocínio pode ser aplicado ao universo teológico: como cristãos ou judeus, não podemos rejeitar a sabedoria e a verdade do passado, simplesmente por a linguagem dessa verdade ferir nossa sensibilidade moderna. O que podemos fazer é encarar as dificuldades interpretativas e buscar, por exemplo, na linguagem metafórica e simbólica a verdade que nos moverá para mais próximos à Verdade Eterna, o Divino que devemos imitar em nossas ações para com nossos vizinhos.

O espírito das palavras das Escrituras, o espírito presente na tradição bíblica, e que molda a tradição cristã, é o que nos dá vida. O amor que Jesus exigiu daqueles que ousarem seguir-lhe para com Deus e o próximo é a verdade. Esse é o sentido misterioso e eterno que se esconde por baixo daquelas palavras antigas traduzidas e retraduzidas de nossos livros sagrados. Esse é o Evangelho!

[1] MILES, Jack. Deus: uma biografia. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. p. 124.
[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 32-33.

+Gibson

(Sermão – 26 de agosto de 2012)

4 comentários:

  1. "Não prometemos acreditar, prometemos buscar. Não valorizamos a igreja por ela oferecer respostas; a valorizamos por ela ser um lugar onde podemos (questionar) juntos." Trecho retirado do texto da pag inicial do site da Congregação Unitarista de PE.
    Quais seriam estes questionamentos?Giram em torno de quê? da Bíblia? Além de discursos e rituais litúrgicos, como acontecem as reuniões dos cristãos unitaristas liberais? Estudam e pesquisam o que poderia ter sido factual ou não, dentro dos textos bíblicos, ou algo desse tipo?
    Em tempo, obrigada pela atenção a última postagem e principalmente pelas orações.

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  2. Olá Sarah!

    Interessantes suas perguntas. Veremos se posso responder: Nossa Congregação é uma igreja não muito diferente de outras, em muitos aspectos. Ou seja, sim, nos reunimos para discutir a Bíblia – se um grupo de estudos quiser fazer isso (geralmente, há diferentes grupos de estudo que se reúnem para discutir temas de seus interesses) –, assim como nos reunimos para discutir quaisquer outros temas de nosso interesse coletivo. Um de nossos grupos com membros adultos, por exemplo (o grupo que facilito), sempre gira em torno da discussão de livros ou filmes: lemos um livro em casa (capítulo tal e tal esta semana) ou assistimos a um filme, e discutimos a leitura/filme em nossos encontros, tentando extrair daí lições que sejam úteis para responder alguns de nossos questionamentos pessoais (que nem sempre são especificamente espirituais/religiosos) – a partir disso podem surgir questões qualquer tema, e vamos tentando entrelaçar a discussão com textos relevantes para a nossa fé (como a Bíblia, os escritos dos Padres da Igreja, escritos filosóficos ou até mesmo os escritos de alguma outra tradição como o Corão ou uma sutra budista, por exemplo). Em nossa comunidade não há discussões do tipo: a Bíblia diz isso e acabou! Isso e isso é verdade e ponto final. A experiência é a de que quanto mais aprendermos sobre tudo, mais fácil se torna lidar com as questões da vida – e isso, em si, é uma atividade religiosa.

    Agora, neste grupo de adultos, por exemplo, estamos lendo um livro que trata a Bíblia como literatura e Deus como seu principal personagem (“Deus: uma biografia”). O livro antes desse, foi um livro de filosofia. E o anterior a ele foi “Comer, Rezar e Amar” (pois é, um livro tão popular como esse entrou na roda de discussões da Escola Dominical de uma igreja, dá pra acreditar?!). Entre a discussão de um livro e outro, fazemos sessões de discussão de algum filme (que geralmente assistimos juntos na semana anterior, ou alguém que não pode estar com o grupo para assistir, assistiu sozinho). Discutimos coisas como amor, vida, morte, sofrimento, sexo, relacionamentos, Deus, espiritualidade, política, artes, enfim, qualquer coisa que possa ser discutida num ambiente apropriado ao público que está lá. Por essa razão, como em todas as igrejas cristãs, os grupos são separados de acordo com a idade, e, às vezes, pode haver grupos separados por interesses: mulheres, homens, rapazes, moças etc. Nunca há nada que não possa ser discutido ou questionado, ou coisas com as quais não se possa discordar. Quando se é parte de um grupo com tanta diversidade como a que há entre nós, só a abertura e hospitalidade, mesmo que para o questionamento, podem nos manter unidos como comunidade.

    Espero ter conseguido responder. Grande abraço!

    +Gibson

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  3. Olá, Gibson. Tudo bom?

    Estou num momento em que procuro verificar como o cristianismo pode ser importante para minha vida mesmo eu me aproximando dele com uma atitude o mais crítica possível.
    Você poderia me indicar alguns estudos(pode ser em inglês e francês) básicos que procuram trazer a Bíblia (e outras coisas relacionadas a ela) o máximo possível para o terreno dos dados verificáveis? Desde já, agradeço a atenção, Daniel.

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  4. Ei Daniel!

    Sei o que você talvez queira dizer quando fala nessa sua busca: é um movimento de redescoberta de nossa própria tradição de fé. Penso que, independentemente dos resultados de tal busca, ela é muito vantajosa para a redescoberta do próprio eu daquele que embarca nessa busca – já que estará enfrentando seus próprios questionamentos, e, oxalá, conseguindo construir suas próprias respostas.

    Bem, quanto ao que você me pergunta, não sei se posso indicar algo que possa trazer a Bíblia “para o terreno dos dados verificáveis” (se, com isso, você se refira a algo que objetive historicamente os “dados” oferecidos pela Bíblia), já que, como teólogo, me afasto do tipo de discussão que tente provar que tal ou tal coisa seja factual na Bíblia. Posso indicar-lhe livros que oferecem leituras que se mostram relevantes para minhas próprias perspectivas. Então os que indico abaixo são alguns livros que introduzem a Bíblia com uma visão crítica, buscando uma leitura mais comprometida com uma contextualização não devocional. Espero que a leitura possa ajudá-lo de alguma forma.

    Grande abraço, e boa jornada de redescoberta!

    +Gibson

    ARMSTRONG, Karen. A Bíblia: uma biografia. Tradução Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

    _______. Jerusalém: uma cidade, três religiões. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

    _______. Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. Tradução Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

    EHRMAN, Bart D. Evangelhos Perdidos: as batalhas pela Escritura e os Cristianismos que não chegamos a conhecer. Tradução Eliziane Andrade Paiva. Rio de Janeiro: Record, 2008.

    _______. O que Jesus disse? O que Jesus não disse?: quem mudou a Bíblia e por quê. Tradução Marcos Marcionilo. Rio de Janeiro: Prestígio, 2006.

    _______. Quem foi Jesus? Quem Jesus não foi?: mais revelações inéditas sobre as contradições da Bíblia. Tradução Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010.

    MILES, Jack. Deus: uma biografia. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

    ROGERSON, J. W. O Livro de Ouro da Bíblia: Origens e Mistérios do Livro Sagrado. Tradução Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010.

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