Sempre
evito, o quanto posso, entrar nas discussões idiotas sobre
homossexualidade que viraram uma “darling” nos meios cristãos
brasileiros nos últimos anos. E isso por inúmeras razões. A
primeira delas, claro, é que sou um homem gay, e tenho uma ética
teológica que dirige meu ministério. Em segundo lugar, sou um
Unitarista, e, assim, minhas prioridades e compreensões religiosas,
assim como minha compreensão de “moralidade”, entram em
contradição sonora com aquelas da maioria dos cristãos brasileiros
que têm espaço nos meios de comunicação e no palco político.
Ademais, minhas crenças políticas e minha cultura pessoal
geralmente são muito distintas daquelas abraçadas pela maioria
daqueles nos dois lados do embate político quanto ao tema no país.
Logo, a não ser que o tema seja trazido à minha atenção, por
alguma razão, nunca trato disso em meus escritos públicos – a não
ser pelo fato de que pesquiso a história do pensamento teológico
sobre sexualidade na tradição cristã, o que me faz lidar
continuamente com o questões sobre homossexualidade [o que é
muitíssimo natural em meu trabalho como teólogo].
Religiosamente,
sou um protestante liberal – um Unitarista também ligado à Igreja
Episcopal e à Igreja Unida de Cristo [para os que desconhecem, esses
são bastiões da tradição teológica liberal nos EUA]. É
importante afirmar isso para que compreendam de onde vem minha
formação teológica, de onde vem minha compreensão sobre ética
cristã. Cristãos como eu não abraçam injunções absolutas sobre
certos comportamentos – por exemplo, beber, fumar, dançar não são
comportamentos proibidos em nosso meio, como ocorre com certos grupos
majoritários no meio protestante brasileiro. Acreditamos que a
obsessão com esses costumes sociais é produto daquilo que nos EUA é
chamado de “igreja da fronteira”i
e que tal obsessão prescritiva não possua base nem nas Escrituras
nem na tradição cristã em geral. Acreditamos que todas as coisas
venham de Deus e que, assim, são boas – mas que devam ser usadas
com responsabilidade e sabedoria: ou seja, devam ser consistentes com
nosso chamado a fazer o bem ao próximo, à criação e a nós
mesmos. Qualquer coisa boa, quando abusada [quando usada sem cuidado
e sem sabedoria], pode tornar-se algo mau, e é por essa razão que o
mandamento de amar [a Deus, ao próximo e a nós mesmos] é o
princípio que deve guiar nossas relações com o todo da criação –
talvez isso seja uma boa forma de resumir nossa compreensão sobre
moralidade.
Como isso
se relaciona com a questão da homossexualidade? Ou melhor, como já
me foi perguntado antes por um amigo: “Como cristãos de diferentes
grupos, que afirmam honrar as mesmas Escrituras, podem chegar a
conclusões tão diferentes sobre questões de moralidade sexual?”
[A questão tratada entre meu amigo e eu era a celebração do
casamento – religioso – entre duas pessoas do mesmo sexo em minha
comunidade de fé, no qual um dos pares era um ex-membro de sua
comunidade de fé.]
Falando
sobre minha compreensão teológica particular, talvez partilhada
pela maioria de outros membros de minha comunidade de fé, esta está
fundamentada sobre a tradição bíblica, apesar de eu utilizar
diferentes princípios hermenêuticos daqueles utilizados por outras
tradições cristãs. Há uma clara diferença interpretativa entre a
forma como um cristão liberal como eu e um “evangélico”, por
exemplo, interpretamos as Escrituras. Em minha tradição, damos à
experiência [individual e comunitária] uma importante função no
processo exegético e hermenêutico – o que permite que desafiemos,
reinterpretemos e abandonemos certas passagens bíblicas como
produtos culturalmente condicionados ou mesmo irrelevantes.
Comumente, refletimos teologicamente sobre certas questões,
começando pela experiência da situação sobre a qual refletimos
[por exemplo, a questão de casamentos de pessoas do mesmo sexo na
igreja], depois discutindo as Escrituras [i.e., a Bíblia] mais em
termos de sua totalidade do que de trechos isolados – as tradições
“evangélicas” majoritárias no Brasil, entretanto, começam seu
processo interpretativo pelas Escrituras, rejeitando [no caso
específico da presença de pessoas gays na igreja] o papel da
experiência nesse processo.
A posição
teológica em minha tradição é, em parte, moldada pela presença
de pessoas de orientação emociono-sexual gay no processo de
discernimento da Escritura, enquanto que no caso das chamadas
“igrejas evangélicas” essa presença está, na maioria das
vezes, plenamente ausente. Entre os membros de minha igreja local,
por exemplo, há indivíduos gays e lésbicas – inclusive no
Ministério, no meu caso –, e suas famílias, o que faz com que
nossa experiência como indivíduos e como fiéis, e a experiência
de nossa comunidade conosco, seja parte integrante do processo de
discernimento teológico. Aqueles de nós que têm relacionamentos
românticos, por exemplo, encontram nos demais membros da comunidade
testemunhas para sua vida – ou seja, em nossa comunidade de fé, um
casal homossexual encontrará amigos que os tratarão com o mesmo
respeito devido a um casal heterossexual. A vivência entre pessoas
de diferentes experiências faz, consequentemente, com que elas se
vejam de forma mais respeitosa, compreensiva e apreciativa. Como me
disse um membro de minha comunidade de fé, após a celebração do
casamento que citei anteriormente: “Como poderia ser contra a união
de duas pessoas que conheço há tanto tempo e cujo amor vi crescer”.
A experiência faz toda a diferença: a experiência dos indivíduos
e a experiência de sua comunidade – é uma via de mão dupla!
A questão
das relações entre pessoas do mesmo sexo não envolve apenas a
questão de relações sexuais. O problema da incompreensão, em
minha visão, vem em parte da desumanização da questão. Quando se
fala em pessoas gays, por exemplo, utilizamos o infeliz termo
“homossexual”, que em si parece trazer a miopia para o fato de
que o lado sexual não é o único aspecto numa relação entre
pessoas do mesmo sexo – há um lado emocional nessa questão, da
mesma forma como quando falamos de pessoas utilizando o também
infeliz termo “heterossexual”. Somos todos seres sexuais, mas
esse não é o nosso único aspecto como pessoas – também somos
pessoas que amamos, tememos, sofremos, nos alegramos, cremos,
descremos, trabalhamos, aprendemos, desaprendemos, sorrimos, choramos
etc [todos nós, “heterossexuais” ou “homossexuais”]. Em
nossa experiência religiosa, por exemplo, todas as pessoas podem
experienciar o mesmo Mistério Divino, e são chamadas ao serviço da
mesma forma – independentemente de como se identificam, de quem
amam e de por quem são amadas. Esse lado humano pleno – de ver
“homossexuais” como pessoas que tem vidas familiares,
profissionais (professores, médicos, pesquisadores, políticos,
engenheiros, policiais etc, e não apenas como aquelas figuras
estereotípicas as quais culturalmente somos acostumados), religiosas
etc – entretanto, parece ser ignorado tanto pela mídia quanto pelo
próprio chamado “movimento gay”, quando sexualizam o sentido de
ser gay [é só ver a maneira como gays são comumente exibidos na
mídia, ou pior, como “vendem sua imagem” nas chamadas “paradas”
da diversidade] para a visão pública, o que consiste num infeliz
equívoco constantemente repetido em nossa sociedade.
Em minha
experiência, já está mais do que na hora de mudarem o foco quando
abordarem teológica, política e culturalmente a realidade dos
indivíduos gays e de suas famílias. Em nome do bom senso, olhem
pare seus filhos e filhas, amigos e amigas, vizinhos e vizinhas.
Somos muito mais do que insinuam as novelas televisivas, os discursos
políticos ou certas pregações religiosas. Assim como a teologia
cristã é muito mais ampla do que o discurso biblicista pode
sugerir. É tudo uma questão de boa vontade para percebermos a
variedade. Então, quando quiserem ter um diálogo teológico que
inclua as vozes de pessoas como eu, quem sabe não estarei disposto a
participar?!
+Gibson
iAs
comunidades de fé que se formaram nas áreas de fronteira
interiorana norte-americanas desenvolveram uma visão estrita sobre
moralidade na qual certos hábitos sociais aceitos nos meios
cristãos urbanos – a exemplo da bebida, do fumo, da dança, do
jogo de cartas etc – foram vistos como pecaminosos. Essa visão
foi trazida por missionários “evangélicos” advindos dessas
tradições protestantes norte-americanas que, apesar de lá sempre
terem sido minoritárias, aqui no Brasil sempre terem sido
majoritárias – logo, a associação automática de
Protestantismo, no Brasil, com essas injunções “morais”.
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