Hoje,
juntamente com um amigo, tive uma conversa interessante com um
desconhecido num café que sempre frequentamos. O desconhecido falava
sobre todos os “protestantes” que tentam “arrancar
dinheiro dos idiotas” que vão às suas igrejas, e da forma como
“essa gente” quer dominar o país com sua bancada no Congresso.
Ele referiu-se aos “protestantes” como “um grupinho de gente
retrógrada e preconceituosa” que desrespeita as crenças e valores
de outras pessoas, e citou vários exemplos para construir seus
argumentos.
Ouvi
seus comentários respeitosamente. Quando terminou, me apresentei e
apresentei meu amigo, um ministro presbiteriano, como (ministros)
protestantes. Tentei explicar-lhe sobre a diversidade existente entre
nós protestantes, utilizando meu amigo e eu como exemplos. Meu amigo
lhe explicou sobre sua própria tradição Reformada,
e eu falei-lhe sobre o Unitarismo e o Anglicanismo,
minhas tradições pessoais, para tentar mostrar ao nosso novo amigo
que não se deve pensar numa comunidade tão diversa como um grupo
único. Nossa conversa foi muito agradável a partir dali e espero
que tenha contribuído, de alguma forma, para sua compreensão dos
riscos das generalizações desinformadas.
Obviamente,
não lhe disse que mantenho ligações históricas, emocionais,
teológicas e eclesiásticas com diferentes tradições cristãs. Não
citei que fui ordenado formalmente, após treinamento teológico num
seminário luterano (e em
outro judaico),
ao sacerdócio de uma igreja episcopal (anglicana),
ao sacerdócio duma congregação luterana e ao
ministério de uma igreja congregacional unitarista, nos
Estados Unidos. Não falei que tenho uma história de ligação a
cinco diferentes denominações protestantes norte-americanas – a
Igreja Episcopal, a Igreja Unida de Cristo, a Igreja Cristã
(Discípulos de Cristo), a Igreja Evangélica Luterana na América, e
a Conferência de Igrejas Cristãs Unitaristas e Universalistas –,
e, com essa história pessoal, não poderia deixar de tentar
explicar-lhe um pouco sobre a diversidade protestante (por mais que a
minha experiência não seja comum à maioria dos protestantes
brasileiros).
Qualquer
pessoa atenciosa já deve ter percebido que o Protestantismo
brasileiro é extremamente cismático e dividido –
obviamente, não apenas o brasileiro, mas nos detenhamos ao cenário
nacional por agora. Obviamente, essa característica resulta, em
parte, do tipo de Protestantismo majoritário no Brasil e não do ser
protestante em si, como alguns poderiam sugerir. A maioria dos
protestantes brasileiros, com exceção daqueles descendentes de
famílias historicamente protestantes (como no caso das colônias de
imigrantes ou das famílias “conversas” há pelo menos umas três
gerações), são consequência de missões proselitistas de
diferentes grupos “protestantes”, especialmente os de tradições
evangelicais (os comumente chamados de “evangélicos”).
Essa
origem nas missões proselitistas evangelicais – adicionando a isso
o fato de os “evangélicos” brasileiros, em sua aparente maioria,
estranhamente mesclarem uma mensagem “carismática” (i.e.,
“pentecostal”) com uma teologia “fundamentalista”
– parece ter contribuído, em grande parte, para o espírito de
disputa que há entre muitos desses grupos que, particularmente,
chamo de “neoprotestantes”.
Como
o uso do termo “fundamentalismo” é problemático, devo explicar
minha utilização dele aqui. Apesar de ser um cristão liberal, nunca
utilizo o termo “fundamentalismo”, e seus adjetivos, como um
termo pejorativo – da forma como alguns na imprensa ou na
política o utilizam. “Fundamentalismo” aqui refere-se
especificamente ao movimento teológico
conservador protestante, iniciado pelo
teólogo e ministro presbiteriano Charles Hodge
no Seminário Teológico de
Princeton (nos EUA), na segunda metade do século XIX,
como resposta ao modernismo/liberalismo teológico
(minha própria tradição
teológica) então dominante nas principais denominações
protestantes norte-americanas. O movimento recebeu contribuições na
obra de John Nelson Darby, e sua
doutrina dispensacionalista, e, entre 1910 e
1915, centrou-se em torno da série de panfletos chamados “The
Fundamentals” (Os Fundamentos), que – além de
originarem o nome do movimento – ajudariam a estabelecer as cinco
doutrinas sobre as quais o movimento se firmaria: [1] a
inerrância das Escrituras;
[2] o nascimento virginal de
Cristo; [3] a morte expiatória
de Cristo como única
forma de salvação; [4] a
ressurreição física e
corporal de Cristo; e [5] a
realidade dos milagres de
Cristo e de seu
retorno físico.
Diferentemente
do que se poderia imaginar, ao se ouvir o termo sendo utilizado na
imprensa hoje em dia, o “fundamentalismo” não era um movimento
de ignorantes desinformados. Era justamente o contrário disso. Esse
movimento teológico emergiu entre teólogos e ministros protestantes
conservadores altamente instruídos, como uma resposta a teólogos e
ministros liberais também altamente instruídos. A “teologia
modernista (ou liberal)”
era vista pela “teologia fundamentalista” como uma negação
dos “fundamentos” do Cristianismo. O problema é que ambos
os grupos entendiam que esses “fundamentos” se constituíam de
diferentes coisas. Os liberais pregavam uma mensagem que se
preocupava mais com as ações do que com os dogmas – o que nós
liberais de hoje chamamos de “ortopraxia” –, isso fez com que,
por exemplo, o “Evangelho Social” predominasse em seu meio. Os
fundamentalistas, por sua vez, acreditavam que os liberais
contribuíam para a dessacralização da fé cristã e, por isso,
pregavam o que consideravam um “retorno à fé verdadeira”, ou
seja, um retorno àquilo que entendiam como os dogmas essenciais do
Cristianismo (aquelas cinco doutrinas que citei acima). Olhando
para aqueles grupos com a distância de um século, vejo que ambos
estavam certos e ambos estavam errados em alguns de seus princípios
e conclusões!
A
disputa entre esses dois grupos, que se iniciou na maior denominação
Presbiteriana nos Estados Unidos durante as décadas de 1920 e 1930,
mais tarde se alastrou para a maioria das denominações protestantes
nos Estados Unidos e no Canadá. E como a maioria dos protestantes
brasileiros estavam ligados, durante parte do século XX, às
denominações em conflito nos Estados Unidos, a disputa foi copiada
aqui. Pernambuco foi um importante centro nesse conflito, já que foi
aqui que o movimento fundamentalista se organizou, sob
a liderança do ministro
Jerônimo Gueiros, a
partir da década de 1940, no seio da Igreja Presbiteriana
do Brasil. Posteriormente, a partir de 1956, o sobrinho do Rev.
Gueiros, o também ministro Israel Gueiros (pastor da 1ª
Igreja Presbiteriana do Recife) lideraria o movimento, que levou
à fundação da Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil.
As consequências, obviamente, seriam sentidas nas diferentes
denominações Presbiterianas no país. O impacto da teologia
fundamentalista alcançou grande parte das igrejas protestantes
brasileiras além dos Presbiterianos (como alguns batistas,
congregacionais, metodistas e muitos anglicanos evangelicais),
especialmente no Nordeste.
Apesar
das, inicialmente, claras distinções teológicas entre pentecostais
e fundamentalistas, o “evangelicalismo neopentecostal”
brasileiro conseguiu criar uma combinação das duas visões
teológicas. E essa parece ter se tornado o consenso entre grande
parte dos “evangélicos” brasileiros, ao menos a julgar por suas
publicações e programas de rádio e televisão. Esse “consenso”
derruba a distinção de tradições teológicas como a calvinista e
a arminiana para os neoprotestantes. E para esses e os protestantes
mais tradicionais, sem mencionar os não-protestantes (como o novo
amigo que citei no início), esse “consenso” apaga qualquer
rastro da existência de protestantes liberais como eu.
O
que é mais perturbador, para mim, na maneira como os neoprotestantes
são nutridos teologicamente por seus líderes é que se tornam
inimigos da diversidade cristã (para não citar da diversidade
humana), já que apenas sua forma de interpretar a fé é válida.
Isso, obviamente, poderia ser apontado como a grande herança
negativa do Fundamentalismo – todos os outros estão errados, menos
“nós”, é seu refrão. Uma outra consequência negativa, ao menos para alguns grupos neoprotestantes, é o assalto à autonomia individual, especialmente no que tange à integridade intelectual do indivíduo. O controle do comportamento e crenças pessoais por líderes eclasiásticos entra em contradição com grande parte da herança da qual descendem alguns desses grupos - e poderia citar, mais especificamente, o exemplo dos batistas.
Por
outro lado, esses neoprotestantes, apesar de sua não familiaridade
com a teologia histórica e com a história da Igreja, praticam em
sua vida um misto da ideia do “ethos protestante” de Weber
(aparentemente tão presente na tradição fundamentalista) com o
Evangelho Social pregado por Walter Rauschenbusch (tão presente na
tradição liberal). Isso resulta num compromisso com a Bíblia e com
publicações religiosas, mesmo que de maneira para mim equivocada, e
consequentemente com o letramento do fiel – o que é
importantíssimo para muitos desses grupos. Trata-se duma recriação
teológica que tenho curiosidade de saber no que resultará em alguns
anos.
Isso
só para falar sobre uma família dos protestantes brasileiros. O
Protestantismo brasileiro, como expliquei ao meu novo amigo no café
esta manhã, tem muitas vozes e muitas faces – algumas mais
numerosas, outras nem tanto. Batistas, assembleianos, presbiterianos,
luteranos, anglicanos, metodistas, unitaristas, congregacionais,
restauracionistas, etc, etc, etc. Nem todos são fundamentalistas,
nem todos são pentecostais, nem todos são neopentecostais.
Particularmente, não sou parte de nenhuma das três famílias, mas considero a todos eles como meus “irmãos na fé”, da mesma forma como os católicos, os ortodoxos, e outros grupos cristãos (como considero a absolutamente todos os humanos como meus irmãos). Considerá-los como meus irmãos na fé, contudo, não apaga nossas diferenças, apenas incentiva-me a tentar construir pontes entres nós por meio daquilo que nos une.
Para concluir, devo afirmar que rejeito qualquer crença religiosa, qualquer fé, qualquer comunidade que seja um obstáculo à liberdade de minha própria consciência. Acredito que religião, especialmente aquilo que chamo de "Protestantismos" (no plural), não seja sinônimo necessário de prisão intelectual e de falta de autonomia individual. Logo, não tenho nenhuma tolerância para com o abuso à integridade individual como praticado em algumas comunidades ditas "evangélicas" ou "protestantes" no Brasil. Torna-se necessário redescobrir a diversidade protestante, a multiplicidade de vozes no seio protestante!
Particularmente, não sou parte de nenhuma das três famílias, mas considero a todos eles como meus “irmãos na fé”, da mesma forma como os católicos, os ortodoxos, e outros grupos cristãos (como considero a absolutamente todos os humanos como meus irmãos). Considerá-los como meus irmãos na fé, contudo, não apaga nossas diferenças, apenas incentiva-me a tentar construir pontes entres nós por meio daquilo que nos une.
Para concluir, devo afirmar que rejeito qualquer crença religiosa, qualquer fé, qualquer comunidade que seja um obstáculo à liberdade de minha própria consciência. Acredito que religião, especialmente aquilo que chamo de "Protestantismos" (no plural), não seja sinônimo necessário de prisão intelectual e de falta de autonomia individual. Logo, não tenho nenhuma tolerância para com o abuso à integridade individual como praticado em algumas comunidades ditas "evangélicas" ou "protestantes" no Brasil. Torna-se necessário redescobrir a diversidade protestante, a multiplicidade de vozes no seio protestante!
+Gibson