Ontem,
recebi uma mensagem duma visitante (Rebeca) que me fazia perguntas
com base num podcast que acompanha, no qual os apresentadores
tratavam sobre o Movimento Progressista cristão e haviam citado
coisas que publiquei aqui. Após ouvir
a transmissão, respondo a algumas das provocações da visitante
sobre o que disseram no programa. Meus comentários não seguem a
mesma ordem seguida no podcast, que dura mais de uma hora.
Devo
começar dizendo que os apresentadores têm um programa
interessantíssimo, apesar de termos visões de mundo bem distintas
e/ou até conflitantes. Soam como pessoas relativamente bem
informadas e bem intencionadas, e eu respeito o seu ministério
online. Penso que seu esforço é louvável. Entretanto, tenho
críticas (negativas) a respeito de muitas de suas colocações nesse
podcast específico (#69).
Antes
de comentar sobre o que disseram, é bom enfatizar que o risco que
qualquer um corre quando não se informa suficientemente sobre um
tema antes de tratá-lo publicamente é que acaba criando o
deslocamento nocional que, em alguns momentos, criaram no programa.
Muitas das afirmações feitas pelos apresentadores do programa são
fruto duma falta de pesquisa cuidadosa sobre o tema. Os
apresentadores, por exemplo, iniciam o programa citando o trecho duma
antiga publicação
neste blog, e depois misturam os dados daqui com aqueles de um
texto escrito pelo Rev. Hal Taussig, e acabam construindo uma
informação equivocada sobre o “Cristianismo Progressista”. Para
eles, o movimento progressista parece ser, em alguns momentos, uma
denominação protestante e, em outros momentos, um movimento
teológico uniforme. Eles não poderiam estar mais equivocados.
Num
determinado trecho do podcast, um dos apresentadores se refere ao
movimento como se esse fosse uma denominação (ele não usa esse
termo), dizendo, inclusive, que a primeira “igreja progressista”
teria surgido apenas em 2005. Na verdade, esse título –
Cristianismo Progressista – é apenas o nome dado a um movimento
organizado, nos Estados Unidos, no TCPC (The Center for Progressive
Christianity), que foi fundado em 1996 (mil novecentos e
noventa e seis) pelo Rev. James Adams – um sacerdote episcopal. O
“progressivismo” já existia, no interior de denominações
protestantes; o que o nome e o TCPC fizeram foi apenas ajudar a todos
aqueles grupos se sentarem juntos e compartilharem sua mensagem. O
TCPC é uma rede não-denominacional de igrejas locais (congregações)
pertencentes a diferentes denominações cristãs – episcopais,
luteranos, congregacionais, unitaristas, universalistas, batistas,
metodistas, restauracionistas, presbiterianos, pentecostais,
católicos independentes etc. Ou seja, nunca existiu uma “primeira
igreja progressista” – se por “igreja” se estiver pensando
numa denominação ou numa forma de Cristianismo. Também não se
criou mensagem nova nenhuma: o movimento proclama crenças e práticas
que estão enraizadas nas diferentes tradições que se juntaram na
organização do TCPC e de outras associações semelhantes, que
foram organizadas para proclamar publicamente o “progressivismo
cristão” – que surgiu ainda no início do século XX. O que as
congregações que formam o TCPC fazem é, simplesmente, criar uma
rede de colaboração que nunca havia existido fora das denominações
específicas.
O
movimento não é o mesmo ao redor do mundo. E, na verdade, sequer
existe fora do mundo anglófono (os países de língua inglesa e as
igrejas de língua inglesa em países onde se falam outras línguas).
No Brasil, por exemplo, só quatro congregações colaboram
formalmente num movimento brasileiro semelhante – todas elas são
igrejas anglófonas (de língua inglesa), incluindo aquela da qual
sou Ministro (e essas estão envolvidas com o movimento
norte-americano). O movimento norte-americano (nos E.U.A. e Canadá)
tem características diferentes dos movimentos britânico,
australiano, neozelandês, sul-africano e das igrejas anglófonas da
Europa continental – e todos esses são diferentes entre si. As
alianças são diferentes, as tradições teológicas são
diferentes, as maneiras como se organizam são diferentes, suas
declarações são diferentes etc.
O
texto que um dos apresentadores cita como se fosse os supostos “cinco
pontos” do Movimento Progressista, na realidade, não é uma
declaração oficial de nenhuma organização do movimento, logo, não
pode ser utilizado como se o fosse. O texto refere-se apenas a uma
reflexão pessoal do professor e ministro Rev. Hal Taussig sobre o
tema, na qual ele aponta o que ele entende ser as cinco principais
características do progressivismo cristão – nem todos os cristãos
envolvidos com o movimento concordariam com sua visão.
Institucionalmente, o movimento americano, com o qual tenho me
envolvido nos últimos 15 anos, proclama oito pontos – que
estão traduzidas aqui
neste blog desde, pelo menos, 7 de outubro de 2007. Se quiser
falar sobre o que o Movimento, oficial e institucionalmente, afirma,
deve-se citar aquele documento.
Quando
levantam suposições sobre o sentido do termo “progressista”,
por exemplo, alguém afirma que “o progressista sugere que, como a
própria palavra diz, ela sugere um progresso, significa que você
avançou na interpretação da Bíblia, na interpretação das
Escrituras, e sobre aquilo que elas diziam…”. Essa é outra
afirmação descontextualizada, para alguém que não seja membro
duma igreja fundamentalista do Bible Belt dos Estados Unidos
(o que não é o caso deles!). E ela é descontextualizada teológica
e historicamente (dois fatores que se correlacionam aqui). Vejamos.
TEOLOGICAMENTE:
Para dizer o que ele disse, você teria de supor que a única fonte
teológica do Cristianismo seja a Bíblia. Ora, as denominações nas
quais há congregações ou indivíduos envolvidos com movimentos
como o Cristianismo Progressista não são tradições que preguem
ser a Bíblia a única fonte teológica cristã. Na verdade, apenas
uma ínfima minoria das tradições protestantes ensina isso
oficialmente. Por exemplo, para anglicanos/episcopais, luteranos,
presbiterianos, metodistas, congregacionais, unitaristas,
universalistas, restauracionistas, quakers, e mesmo batistas, a
Bíblia não é a única fonte para se entender o Cristianismo –
eu, a propósito, discuti isso aqui nos dois textos anteriores a
este. Os protestantes mais tradicionais utilizam como recurso para a
reflexão teológica a Bíblia, a Tradição, a Razão e,
especialmente os herdeiros do Metodismo, a Experiência pessoal.
Mesmo o antigo Movimento Fundamentalista fazia menção a essas
fontes teológicas. Só grupos minoritários afirmam que a Bíblia
seja a única fonte teológica cristã. E, se você atentar
cuidadosamente, observará que as congregações que se envolvem com
o Movimento Progressista são, geralmente (pode haver, talvez, uma ou
outra exceção), parte daquelas tradições que citei. Logo, a ideia
de que se refiram, com o adjetivo “progressista”, a um suposto
avanço na interpretação das Escrituras não faz absolutamente
nenhum sentido!
HISTORICAMENTE:
Pessoalmente, também não simpatizo com o termo “progressista”,
já que penso ser ele inapropriado em português; mas seu uso deve
ser contextualizado no ambiente cultural onde emergiu e é utilizado.
O termo, em nosso meio, não se iniciou – como se disse no programa
– por conta daqueles movimentos políticos de liberação da década
de 1960. Ele também não tem origem no “pós-modernismo”
filosófico. O problema com essa interpretação é que ela se baseia
unicamente no uso do adjetivo “progressista”, já que, comumente,
os movimentos de esquerda – especialmente herdeiros de tradições
socialistas – são chamados de “progressistas”. O Progressismo
cristão americano está enraizado na tradição do Evangelho
Social. Desde o início do século XX já se usava, em inglês, o
termo “progressista” para se falar sobre uma perspectiva na qual
o trabalho pelo estabelecimento do Reino de Deus na Terra hoje mesmo
é uma forma de proclamar o Evangelho e se preparar para a Segunda
Vinda. [A soteriologia universalista, que serviu de base ao
movimento do Evangelho Social, falava da “salvação” como um
“progresso” rumo à construção do Reino de Deus aqui na Terra,
antes que Cristo retornasse e completasse o processo de salvação.
Essa ideia, por sua vez, fundamentava-se numa compreensão
escatológica pós-milenarista, que fora dominante
nas igrejas reformadas americanas até o período entre a 1ª e a 2ª
Guerras Mundiais. Ou seja, não é olhando para as tradições
políticas marxistas que você entenderá o contexto do surgimento do
movimento; é, antes, olhando para as tradições teológicas
calvinistas!]
Ademais,
não foram os adeptos que criaram o termo – o termo foi dado por
quem estava de fora. Esses cristãos aceitaram o uso. Quando
aceitaram o uso do termo, não pretendiam então, como nossos
contemporâneos não pretendem hoje, ver-se como superiores aos
demais cristãos. Para entender isso, você tem de compreender o
termo em língua inglesa:
“Progressive”,
em inglês, não significa, no contexto do movimento, que você
“progrediu” mais que outros. O sentido é que você está em
movimento rumo a um dado destino. No meio teológico anglófono,
como já expliquei, o termo está tradicionalmente associado à
herança do Evangelho Social. Quando se fala em “progressista”,
uma pessoa teologicamente informada, nos E.U.A., conseguirá fazer a
ligação – assim como fará a ligação a uma perspectiva política
na história nacional. No Brasil, entretanto, não há essa conexão.
Assim, o termo se torna vazio ou até ofensivo. É bom lembrar,
contudo, que o mesmo termo é também utilizado por um movimento
dentro do Judaísmo desde o início do século XX, exatamente o mesmo
momento no qual as teologias do Evangelho Social (no Cristianismo
Protestante americano) e do Tikkun Olam (no Judaísmo
Reformista) estão se difundindo em igrejas protestantes
(unitaristas, universalistas, batistas, congregacionais,
presbiterianos, luteranos, anglicanos e metodistas foram os grupos
mais influenciados pelo Evangelho Social) e templos judaicos
reformistas.
[E
você, então, poderia me perguntar a razão de o endereço deste
blog ser “cristianismoprogressista”; a razão é simples: em
primeiro lugar, iniciei este blog ainda nos E.U.A., para um público
de estudantes que falavam português e que frequentava a igreja da
qual eu era ministro; em segundo lugar, não havia a disponibilidade
do nome que eu queria. Acabei utilizando um título que eu mesmo não
apreciava tanto.]
E aí
vem a próxima correção que os apresentadores teriam ouvido de mim,
se estivéssemos conversando: liberal e progressista não são a
mesma coisa! Um protestante evangelical poderia se identificar, sem
muito desconforto, como um progressista; mas, talvez, tivesse mais
problemas para abraçar uma perspectiva teológica liberal. Mas, sim,
é verdade que muitas das ideias abraçadas pelo Movimento
Progressista são comuns também aos “liberais” – a mais
importante delas, que eles aparentemente não entendem: a
soteriologia universalista (isto é, a antiquíssima crença
cristã de que Deus, de alguma forma, salvará a todos os seus filhos
– ideia defendida por alguns dos Padres da Igreja, como Orígenes e
Gregório de Nissa [e eu os cito aqui apenas para demonstrar quão
antiga é essa visão dentre alguns cristãos; não se trata de uma
invenção recente, de uma novidade!]).
Quando
condena o Universalismo, um dos apresentadores diz que isso – isto
é, a crença na soteriologia universalista (que ele, obviamente,
desconhece) – está expresso nos “cinco pontos” do movimento
(ele mais uma vez se equivoca: são oito pontos; os “cinco pontos”
sobre os quais fala são apenas as características apontadas pelo
Rev. Taussig, que já citei acima), e passa a ideia de que esta seja
uma ideia nova. Falando sobre os 8 Pontos (lembre-se que, para ele,
são 5), ele diz que “…o principal argumento deles: não tem
limite de gênero, não tem ideologia de gênero” [sic]. Ora, a
expressão “ideologia de gênero” não aparece no texto, e a
noção de “ideologia de gênero” abarca coisas que ultrapassam o
que diz o ponto 4, que é o que Taussig discute em seu texto, e que o
apresentador cita como se fosse um dos “pontos” defendidos pelo
movimento. Reproduzo o texto do “Ponto 4” abaixo:
4) Convidamos todas as
pessoas a participarem em nossa comunidade e em nossa vida de
adoração, sem insistir que elas se tornem como nós para serem
aceitas, incluindo, mas não se limitando a:
* crentes e agnósticos;
* cristãos convencionais e céticos;
* mulheres e homens;
* aqueles de todas as orientações sexuais e identidades de gênero;
* aqueles de todas as raças e culturas;
* aqueles de todas as classes e habilidades;
* aqueles que esperam um mundo melhor e aqueles que perderam a esperança;
* crentes e agnósticos;
* cristãos convencionais e céticos;
* mulheres e homens;
* aqueles de todas as orientações sexuais e identidades de gênero;
* aqueles de todas as raças e culturas;
* aqueles de todas as classes e habilidades;
* aqueles que esperam um mundo melhor e aqueles que perderam a esperança;
Teologicamente,
mais uma vez, o que alimenta essa compreensão é a soteriologia
universalista abraçada pelo movimento – o termo
“soteriologia”, a propósito, é um termo teológico que se
refere às doutrinas referentes à “salvação”. Assim, apesar de
parecer apenas uma afirmação de ideologias de gênero, trata-se da
afirmação duma compreensão teológica milenar entre alguns
cristãos. Mas, novamente, quando se fala publicamente de certos
temas sem se fazer uma pesquisa séria, é nisso que dá: afirma-se
enganos que poderiam ser evitados se conhecessem um pouco mais de
teologia e história protestantes.
A
questão da relativização. Na realidade, escrevi recentemente
sobre isso aqui, então tentarei ser breve. Um dos apresentadores diz
que o maior questionamento contra os cristãos progressistas –
questionamento que ele partilha – é “não interpretar a Bíblia
da forma correta”!… Bem, alguém poderia escrever uma tese a
respeito do que está por trás dessa frase. Você tem de perceber a
partir de qual perspectivas falam os apresentadores do programa:
aparentemente – o que é o caso também de minha leitora, a julgar
pelo que me escreveu –, eles acreditam que a Bíblia e o
Cristianismo sejam a mesma coisa, e acreditam nas teorias da
“infalibilidade” e “inerrância” do texto
bíblico. Eu – como a maioria dos protestantes herdeiros de
tradições mais antigas do Protestantismo – não partilho nem
nunca partilhei dessa ideia.
Essa
equalização entre Bíblia e Cristianismo, ou vice versa – o que
quer dizer, para quem acredita nisso, que só é cristão aquele que
supostamente acredita em/faz absolutamente tudo o que as Escrituras
ensinam (ou seja, trata-se da recusa em aplicar o pensamento crítico
à Bíblia, ao menos declaradamente) –, e as teorias da
“inerrância” e “infalibilidade” têm uma data de nascimento:
a segunda e a terceira gerações dos reformadores, que criaram a
teoria da inspiração plenária da Bíblia (isto é, que os
textos bíblicos foram diretamente inspirados – “ditados”
– por Deus).
Johann
Quenstedt, um luterano, é o principal nome na origem dessa
compreensão de inspiração plenária. Para ele, qualquer coisa
presente nas Escrituras deveria ser entendida como verdadeira e
inquestionável, fosse a respeito do que fosse. Não haveria espaço
para metáforas, por exemplo – algo que a Igreja sempre levou em
consideração. Também não haveria espaço para a compreensão
ensinada por Martinho Lutero de que a Bíblia se tornava revelação
de Deus no momento em que era pregada e ouvida; para Quenstedt, era o
que estava escrito que importava.
Assim,
essa visão de “inspiração plenária” ignora toda a diversidade
de tradições hermenêuticas e exegéticas da Igreja, especialmente
aquelas tradições antiquíssimas das escolas alexandrina e
antioquina de exegese bíblica – que, respectivamente, fazia uma
interpretação literal suplementada por um apelo à
metáfora/alegoria, enquanto a outra interpretava a Bíblia com base
no exame do contexto histórico das Escrituras. Não estou falando
aqui duma novidade “pós-moderna”; essas tradições estavam
ativas nos primeiros séculos da história cristã e, de certa forma,
continuam vivas ainda hoje nas diferentes tradições cristãs. Mas,
obviamente, quando alguém pensa que conhece a única resposta
válida, e ignora as histórias e as teologias cristãs, nada disso é
relevante!
Essa
ideia de “inspiração plenária” retorna com maior força a
partir da organização do Movimento Fundamentalista, no
século XX, e é essa ideia que adentra o Evangelicalismo brasileiro.
É por essa razão que, talvez, a maioria dos evangélicos
brasileiros acredite/pregue isso. Suas comunidades de fé herdaram a
teologia que emergiu no período de conflito entre liberais e
fundamentalistas há cerca de um século atrás. Eles nunca
conheceram outra visão. Para eles, isso é o Protestantismo.
Escrevo
isso para demonstrar o quão mal fundamentada está a argumentação
da “relativização”. Ela faz sentido apenas para quem sempre
acreditou que houvesse apenas uma compreensão válida. Se esse fosse
realmente o caso, então o próprio meio evangélico teria (ainda
mais) sérios problemas: se só há uma interpretação válida, o
que dizer sobre todos os outros evangélicos que compreendem as
coisas de outra forma? Todos seriam “hereges” (ou sei lá que
qualificativo utilizam)?… Pergunto isso porque batistas,
presbiterianos, metodistas e assembleianos, por exemplo, não
interpretam a Bíblia da mesma forma em todos os aspectos! Quem teria
razão, então?… Essa variação de interpretação entre esses
grupos, e no interior de cada um deles, é chamada de “relativização”
(=contextualização)!… Mas já expliquei muito sobre isso nas duas
últimas postagens neste blog, então penso não ser necessário
acrescentar mais nada.
Contextualizando
ou relativizando a posição dos apresentadores, eles dizem o que
disseram no programa porque sua compreensão teológica baseia-se
numa visão da Bíblia como sendo plenariamente inspirada e,
consequentemente, inerrante e infalível. Ora, apenas uma minoria dos
cristãos do mundo acredita nisso; e mesmo se formos nos referir
apenas aos grupos protestantes, só aqueles que descendem de igrejas
enraizadas na tradição teológica fundamentalista (o termo
não é pejorativo – trata-se da tradição que se opunha aos
liberais/modernistas/progressistas no início do século XX) ensina
isso hoje no mundo (apesar de serem, provavelmente, a maioria no
Brasil, por razões históricas específicas).
O
que eu quero dizer é: você não pode realmente pensar que alguém
que não acredite numa crença minoritária seja um herege! Cristãos
liberais e cristãos progressistas tendem a reconhecer sua limitação
humana, afirmando que “nós podemos estar errados, então é por
isso mesmo que não julgaremos aqueles que não pensam como nós”.
Mas os apresentadores do programa, aparentemente, não compartilham
desse reconhecimento de suas próprias limitações humanas. Para
eles, se você não acredita na inspiração plenária, na inerrância
e na infalibilidade da Bíblia, então você é qualquer coisa, menos
cristão!
Ah,
mas como uma resposta ao que um deles disse, já próximo ao fim do
programa: sim, ser tolerante é ser relativista!
[Ele dizia o oposto disso.] O problema com o uso que fazem do verbo
“relativizar” ou de termo “relativo” é que demonizam a noção
de relativização, sem perceber que a relativização faz parte de
absolutamente tudo o que fazemos na Igreja e na sociedade. Quando
você tem de tomar uma decisão que entre em conflito com o que é
habitual, por exemplo, você relativiza: tenho de estar na igreja na
manhã de domingo, mas meu vizinho quebra a perna e me pede para
levá-lo ao hospital – se eu for, ficarei lá até ele ser atendido
–, o que faço? Vou à igreja e não socorro ao meu vizinho? Bem, o
próprio Jesus, de acordo com as Escrituras, deu a resposta a isso:
Marcos 3:1-6. O que ele faz
ali, de acordo com o relato em Marcos, é relativizar um mandamento.
Um exemplo que parece tolamente óbvio, mas é um exemplo de
relativização nas próprias Escrituras. Quando somos tolerantes,
até um certo nível, colocamos o “outro” numa posição maior do
que o que pensamos sobre nossas próprias convicções; o que fazemos,
então, é relativizar nossas crenças para que possamos construir um
outro ambiente. Relativizar é criar uma relação com nossas
próprias crenças – assim, você só pode ser tolerante se a
tolerância tiver uma relação com sua visão de mundo; é isso que
torna possível a tolerância, e é por isso que a tolerância é uma
forma de relativização.
É
nesse ponto que reside a
importância da compreensão da relativização da verdade,
sobre a qual eles se debruçaram tanto sem compreender a visão que
temos. Quando eu, por exemplo, falo em “verdade relativa” não
estou afirmando que não haja uma verdade absoluta. Para mim, há. O
que eu não posso dizer, contudo, é que aquilo que entendo como
verdade seja a mesma à qual outra pessoa chegará. E seria
prepotência e orgulho dizer que eu conheço a verdade que todos
devem abraçar – e, em minha fé, o orgulho é um pecado. Por isso
falo sempre em “para mim”, “em minha opinião”, “em minha
visão” etc. Essa é uma forma de relativizar a verdade – ou
seja, afirmo que aquilo é verdade para mim, mas você é livre para
acreditar em outra coisa. Tenho uma visão de Deus e de Jesus Cristo
que são próprias de minha tradição unitarista. Os argumentos para
minha crença se baseiam, em parte, nas Escrituras. Aquela visão é
verdade para mim. Um católico romano que segue a doutrina oficial de
sua comunhão, contudo, tem uma outra compreensão teontológica e
cristológica. Ele é um cristão. Sua crença é majoritária. Não
posso esperar que ele deva acreditar no que acredito, ou não será
um cristão. O que acredito sobre Deus me faz pensar que Deus está
além de nossa compreensão humana finita. Os autores da Bíblia, por
exemplo, mesmo inspirados, utilizaram uma língua humana finita. Eu
sou um humano finito. Meu vizinho católico também. E aí, o que
faço para lidar com isso? Não se pode esperar que eu mude minha
crença para ser aceitável ao meu vizinho. Também não posso
esperar que ele mude para que eu o aceite… É aí que entra o papel
da relativização na convivência humana: a relativização e a
tolerância se entrelaçarão, e
ele e eu poderemos viver nossa fé em respeito um ao outro. O que eu
acredito ser a verdade ainda será, e vice versa. É isso que
significa “relativizar a verdade”, no que tange à nossa relação
com outras pessoas: não é abandonar nossa verdade, é apenas
lembrar que outras pessoas também têm o direito a entender a
verdade de sua fé da forma como acharem melhor.
A
questão da Filosofia. Num
certo momento, um dos apresentadores, falando sobre a suposta
influência do “liberalismo teológico” no Cristianismo
Progressista, diz que a teologia liberal “relativiza
a autoridade da Bíblia, né?, aquilo que a gente já sabe sobre o
liberalismo teológico, né?, que mescla filosofia, consciência e
religião...” –
fazendo seu comentário, obviamente, num tom pejorativo (expressando
o característico anti-intelectualismo do evangelicalismo dominante
no Brasil, que torna “filosofia” um palavrão),
e seguindo os estereótipos típicos construídos por alguns
apologistas do meio evangelical brasileiro.
A
“psicologia de fila de banco” [a expressão irônica, a propósito, é minha, não deles] – que
se relaciona ainda à questão da filosofia – utilizada para
explicar a razão porque cristãos abraçariam visões
“progressistas” é ridícula. Eu, por exemplo, não sou um
liberal e progressista porque me cansei de “legalismo” na Igreja
ou porque queira licença para pecar. Minha posição teológica não
é de reação. Eu estou enraizado numa tradição teológica que
ensina essa visão. Foi essa a visão que aprendi na Igreja, no
seminário, em casa e em minha vida cristã. O Cristianismo não é,
para mim (como afirmou um dos apresentadores a meu respeito, num
característico tom anti-intelectualista) apenas “uma
filosofia” – ele é, sim, uma “filosofia”, se com o termo nos
referirmos a uma “visão de mundo”: minha relação com o Divino,
minha visão religiosa de mundo, meu imaginário religioso, minha
linguagem religiosa se assentam no Cristianismo, logo, o Cristianismo
é minha “filosofia” de vida. O Cristianismo é minha fé.
Novamente, o problema parece ser que compreendemos a noção de “fé”
de formas bem distintas. A fé não é uma crença morta; é uma
esperança que produz frutos, como bem explicita Tiago 2:14-26. Mas
eles, como supostos conhecedores dos textos bíblicos, já devem
saber o que uma outra passagem bíblica diz sobre esses frutos,
Gálatas 5:22. [A propósito, é bom contextualizar o que escrevi, e
que ele cita de forma seletiva que pode desvirtuar o sentido de meu
texto; então, leia minha declaração completa, publicado aqui em 12
de maio de 2009 – ela é o trecho de um livro que publiquei em
2003, nos Estados Unidos: O
MEU CRISTIANISMO.]
O
que uma pessoa informada poderia perguntar a ele, contudo, é se ele
realmente pensa que ele mesmo não mescle “filosofia” (=uma visão
de mundo) e “consciência”(=razão) em suas visões
teológicas(?). Como tratei disso longamente nas duas últimas
publicações neste blog, não responderei a
esta questão aqui. Mas
posso encontrar a gênese do que ele disse em sua visão da natureza
e papel da Bíblia no Cristianismo, que já discuti brevemente
anteriormente.
Sexualidade.
O tema é enfatizado no podcast – novamente, uma característica do
Evangelicalismo majoritário brasileiro, isto é, a ênfase em
“moralidade sexual” –, mas eu, a não ser que seja uma
discussão inteligível sobre o tema, não discuto isso aqui. Logo,
não farei comentários sobre o que disseram, a não ser este: querer
comparar a aceitação do relacionamento entre duas pessoas do mesmo
sexo por um cristão à aceitação do aborto ou do incesto é, no
mínimo, de uma desonestidade intelectual incrível!… Por essa e
por outras, não perderei meu tempo comentando teologicamente os
argumentos que ouvi!
Jesus.
Não consigo levar à sério os comentários que fizeram sobre o que
os “cristãos progressistas” acreditariam acerca de Jesus. Isso
só mostra o quanto leram pouco antes de tratarem o tema em seu
programa. A raiz do que disseram encontra-se, como já disse antes,
em sua visão da natureza e papel da Bíblia, mas também em sua
compreensão de como a teologia protestante tem sido historicamente
construída. Falta em seus argumentos, ademais, uma familiarização
com a história tanto da teologia cristã quanto da Igreja – sem
falar, obviamente, no desconhecimento dos pensamentos teológicos
presentes no movimento que tratam em seu programa.
Cristianismo
light?... Pensar que
viver a fé que cristãos liberais e/ou progressistas comprometidos
vivem em suas vidas diárias é light
é tolice, já que não considera que nossas diferentes tradições
exigem um “processo de conversão contínuo”. No meu caso
específico, como um unitarista, mente,
coração e ações, metaforicamente falando, se unem no trabalho de
compreender a Deus e a lidar com o meu “próximo” aqui e agora.
Isso significa pautar minhas ações por uma convicção de que
aquilo que faço é – na melhor compreensão que posso ter do que
seja verdadeiro e de qual seja a vontade de Deus – certo (sim,
porque diferentemente do que se pode pensar, para nós há “certo”
e “errado”, nossa
fé não é um “vale tudo”).
Um dos apresentadores faz um comentário muito certo quando diz que
ser cristão é um processo que se estende ao longo da vida – isso
é, inclusive, algo que já escrevi aqui muitas vezes. Minha tradição
me ensina que “mudar de ideia” é aceitável e natural.
Autoridade.
Quando falam sobre autoridade, referem-se, primeiramente ao contexto
católico – citando Leonardo Boff –, para discutir o contexto
protestante, falando sobre o questionamento da autoridade de líderes
eclesiásticos. O que eles, aparentemente, ignoram é que nem todas
as tradições protestantes abraçam essa visão de autoridade que
eles abraçam. É só lembrarmo-nos dos quakers [ou quacres], por exemplo, para quem o indivíduo é o eixo da autoridade – o cristão se relaciona com Deus por meio da influência direta do Espírito ao seu coração/mente (sem precisar de intermediários, como pastores, sacerdotes etc). Ou, lembrarmo-nos,
como
exemplo,
do
movimento batista anglófono não ligado à tradição do sul dos
E.U.A. – sim, porque essa tradição tem uma compreensão de
autoridade diferente –, a autoridade se centra na
consciência do
indivíduo (a
razão),
enquanto recipiente do Espírito Santo
em sua leitura das Escrituras. Nas tradições anglicana/episcopal,
unitarista, universalista, metodista e congregacional, o indivíduo,
mais uma vez, é
o
eixo dessa autoridade – não seu líder eclesiástico. Então,
falar no questionamento da autoridade como se isso fosse uma violação
da Bíblia ou da fé cristã é desconhecer a multiplicidade no meio
protestante!
A
questão do “joio e do trigo”.
Isso tem a ver, mais uma vez, com a perspectiva teológica que se
abrace. Para os apresentadores do programa, a resposta está em sua
visão da Bíblia e seu não reconhecimento de que essa sua visão
emerge de uma série de outras “visões de mundo”, concernentes
tanto à própria teologia quanto ao dito mundo secular. Assim, eles
já sabem que é o “joio” e quem é o “trigo”: o “joio”
será sempre aquele que pensa de forma que conflitue com o que eles
mesmos acreditam ser a verdade – algo que, de certa forma e
infelizmente, é comum a todos nós.
O
belicismo ideológico. Sim, é
verdade que há muitas pessoas que falam em respeito e tolerância,
mas que, na vida real, esperam que todas as pessoas e grupos pensem
exatamente como eles. Nos meios ditos “progressistas” e
“liberais” protestantes isso acontece. Mas é importante notar
que isso não é o que se
prega. A generalização de que todos nós – e quando falo em “nós”
me refiro apenas àquelas igrejas locais ou indivíduos que estejam,
de alguma forma, relacionados ao TCPC, não me refiro a outras coisas
que aconteçam entre protestantes brasileiros e que desconheço –
sejamos militantes que desrespeitam a fé de outros cristãos é uma
acusação inverídica e soa muito mais à mentalidade da
vitimização.
Eu,
por exemplo, enquanto
a sociedade
atacava
o citado Silas Malafaia por suas posições contrárias à
homossexualidade, escrevi aqui mesmo em defesa de seu direito de
acreditar no que acreditava e de
pregar o que pregava. Deixei
claro que discordava de suas posições, mas que não podia acusá-lo
de “homofóbico” apenas porque discordava de minha posição. Não
fiz isso porque sou bonzinho e perfeito. Fiz porque é isso que minha
tradição de fé ensina e o que ensino àqueles a quem ministro –
como também o fiz porque a liberdade de opinião e expressão é o
cerne de minha tradição política. Aprendi,
desde criança, em casa e na Igreja, que não posso ter liberdade de
opinião e expressão se outras pessoas não o tiverem. Eu continuo a
defender isso, tanto publicamente quanto em minhas atitudes pessoais,
seja como cristão ou cidadão.
Então, a generalização
feita por um dos apresentadores, de que os
cristãos “progressistas”
ou “liberais”
não sejam tolerantes para
com os
cristãos “conservadores”, e de que haja uma perseguição de
nossa parte àqueles,
não corresponde à realidade – especialmente
porque na maioria das igrejas às quais estamos ligados, seja como
fiéis ou como Ministros, convivemos com os dois grupos.
Falta apenas mencionar a falta de compreensão que os apresentadores
têm sobre o que seja a tradição liberal protestante (estou
falando “liberal” agora, e não “progressista”) – que não
tem absolutamente nada a ver com as descrições que fizeram. Essa
antipatia para com a tradição liberal e a má vontade em
compreendê-la tem muito mais a ver com a história das igrejas
presbiterianas e batistas em meados do século XX, no Brasil, do que
com qualquer outra coisa (refletindo o conflito entre liberais e
fundamentalistas nos E.U.A.). E essa herança se estendeu a todo o
meio protestante brasileiro até hoje. Mas isso mereceria uma
discussão à parte.
Para finalizar, respeitosamente, posso usar as palavras de um dos
apresentadores, que podem servir como conselho para seus ouvintes no
que tange ao que eles próprios disseram em muitos pontos de seu
podcast:
“Toda
generalização é burra. Toda. Sem exceção!”
Paz
a todos!
+Rev.
Gibson da Costa