Como
todos devem saber, as ditas religiões “abraâmicas” –
pessoalmente, prefiro chamá-las de “jordânicas” (i.e., os
judaísmos, os cristianismos e os islamismos) – têm sido
tradicionalmente chamadas de religiões “do Livro”. E isso ocorre
por uma óbvia razão: nossas compreensões teológicas emergem, em
parte, de textos escritos que consideramos sagrados.
É
importante enfatizar um trecho do que escrevi acima: em
parte. A parcialidade de nossa dependência teológica de
nossas Escrituras Sagradas é relevante aqui. Nenhuma de nossas
tradições depende unicamente de seus livros sagrados para a
compreensão de sua fé (seja a Bíblia Hebraica, a Bíblia Cristã
ou o Corão). Assim, por exemplo, mesmo que alguém lhe fale sobre o
Cristianismo, dizendo que a Bíblia é sua única “verdade” ou
sua única fonte de “conhecimento sobre Deus” –
independentemente de quão sincera seja essa pessoa –, sua
afirmação não representa uma “factualidade”.
O
Cristianismo ocidental, em suas formas mais tradicionais e mais
numerosas – seja nas tradições católica ou protestante, por
exemplo –, baseia sua fé em pelo menos três pilares: Escritura,
Tradição e Razão – ou, no caso daquelas tradições
protestantes que seguem o chamado “Quadrilátero Wesleyano”,
Escritura, Tradição, Experiência e Razão.
[Permitam-me apenas uma nota sobre o uso da expressão “Quadrilátero
Wesleyano”: trata-se duma adjetivação um tanto problemática,
já que John Wesley, o fundador do Movimento Metodista, nunca
escreveu explicitamente sobre um “quadrilátero” – o
nome surgiu como uma tentativa de reconstrução de sua reflexão
teológica, por parte do teólogo metodista americano Albert
Outler, apenas no século XX.]
Assim,
por exemplo, se um protestante evangélico (são duas coisas
distintas) – supostamente adepto duma compreensão um tanto
equivocada do princípio reformado do sola Scriptura
– lhe diz que tudo o que ele acredita vem da Bíblia, sua
afirmação, na melhor das hipóteses, provém duma incompreensão do
processo de leitura.
Ler
é interpretar. Interpretar é
selecionar. Selecionar é criticar…
E isso é ainda mais verdadeiro quando se trata de textos religiosos.
Para ler-interpretar-selecionar-criticar
fazemos uma série de conexões entre o que conhecemos (ou
o que pensamos conhecer)
do/sobre o mundo e o texto que temos
diante de nós; nos
lançamos sobre o texto, isto é, lançamos
(pre)conceitos sobre ele;
enfim, lemos através da janela de nossa própria mente. Logo, o que
lemos não é o texto baixo
– o que está representado
graficamente sobre o papel –,
mas aquele que foi formatado em
nossa mente por nosso
contexto.
Mesmo
se alguém fizesse referência à chamada “influência do Espírito
Santo”, dizendo que sua leitura da Bíblia é guiada divinamente,
teríamos um problema. Esse seria um reconhecimento explícito de que
sua interpretação não se basearia unicamente no texto em si, mas
(também) em algo que está além do texto, numa fonte externa –
mesmo se essa fonte fosse divina. Ou seja, no final das contas,
estaria reconhecendo que sua compreensão não se baseia unicamente
na leitura do texto sobre o papel.
É
justamente por isso que diferentes comunidades de fé leem o “mesmo
texto” (ou melhor, as mesmas representações gráficas) de formas
tão distintas. É justamente por isso que diferentes tradições
ouvem a voz de Deus de formas diferentes – como se Deus os tivesse
dizendo coisas completamente conflitantes. O problema não está nas
Escrituras Sagradas – a Bíblia, no caso cristão. O problema não
está em Deus. O problema está na leitura que fazemos, e mesmo na
compreensão que temos do que e como estamos lendo.
Alguém
afirma – inconscientemente
baseado numa série de outros fatores – que lê
em Êxodo apenas leis
severas, vinganças divinas etc?… Eu – moldado por
outras leituras prévias das Escrituras, pela
tradição teológica que herdei,
por minha história pessoal
e pela forma como minha razão
lida com tudo isso – leio:
“Não explore o imigrante
nem o oprima, porque vocês foram imigrantes no Egito. Não maltrate
a viúva nem o órfão…” (Êxodo 22:20-21a)
Alguém,
supostamente baseado apenas numa leitura do Novo Testamento, impõe
uma ortodoxia teológica como requisito para ser cristão? Eu,
moldado por outras partes das Escrituras, pela
tradição teológica que herdei, por
minha experiência e pela razão, leio que “religião pura e sem
mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as
viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo”
(Tiago 1:27).
Assim
se processa a leitura
das Escrituras em minha vida. Assim sempre se processou a leitura
das Escrituras pela Igreja cristã. E é também assim que se
processa a leitura de textos sagrados por qualquer das outras
tradições jordânicas – ou “abraâmicas”, se preferir. Todos
nós lemos a partir do lugar onde estamos; isso faz com que sempre
ganhemos ou percamos algo, mas ignorar que o façamos é, no mínimo,
“ingenuidade”.
Isso
significa, contudo, negar a sacralidade das Escrituras? Não… Mas
sacralidade é uma qualidade atribuída, ela não é natural. Os
textos que fazem parte da Bíblia passaram por um longo processo de
canonização – eles não caíram do “céu”. Foram humanos que
os escreveram – e mesmo que afirmemos que o tenham feito sob
“inspiração do Espírito Santo”, ainda assim foram eles que os
escreveram! Para que fossem canonizadas e sacralizados tiveram
de adentrar um longo processo bem humano.
Pense
em questões como escravidão ou mesmo o apartheid sul-africano, por
exemplo. Por um tempo, esses eram justificados com base numa
“leitura” supostamente bíblica. Mas o que se escondia por trás
daquela leitura supostamente literal era uma série de elementos
culturais: história, filosofia, justificativas econômicas e
políticas etc.
Mais
recentemente, quando alguém condena relações homossexuais
baseando-se supostamente em leituras bíblicas – e não percebe que
os mesmos livros que usa como apoio condenam algumas de suas próprias
práticas culturais –, essa pessoa talvez ignore que sua leitura
baseia-se também numa série de elementos socioculturais. Assim, ele
lê seu próprio mundo num texto de milênios atrás – como, a
propósito, você e eu fazemos.
+Gibson
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