Caro
João Pedro,
Obrigado
pelo seu e-mail. Desde já desculpo-me por haver demorado em
respondê-lo. Você me fez muitas perguntas interessantes, e, aqui,
tentarei respondê-las de forma breve, considerando que você pode
encontrar – ao longo deste blog – respostas para todas essas suas
questões em postagens mais antigas.
Em
um trecho de sua mensagem, você escreveu:
- Bom, o unitarismo vê a
Bíblia de forma bem diferente da qual fui ensinado, eu queria saber
da visão que você tem sobre a Bíblia, das passagens que costuma-se
relacionar com assuntos que a tua opinião diverge como, por exemplo,
a conversa de Cristo na cruz com os outros dois condenados. Aproveito
para perguntar a tua opinião e a visão unitarista sobre demônios,
e se possível exemplificar a pergunta anterior sobre o uso da Bíblia
com esse assunto.
"Marcos, 5:12 - Rogaram-lhe, pois, os demônios, dizendo: Manda-nos para aqueles porcos, para que entremos neles.
Marcos, 5:13 - E ele lho permitiu. Saindo, então, os espíritos imundos, entraram nos porcos; e precipitou-se a manada, que era de uns dois mil, pelo despenhadeiro no mar, onde todos se afogaram."
"Marcos, 5:12 - Rogaram-lhe, pois, os demônios, dizendo: Manda-nos para aqueles porcos, para que entremos neles.
Marcos, 5:13 - E ele lho permitiu. Saindo, então, os espíritos imundos, entraram nos porcos; e precipitou-se a manada, que era de uns dois mil, pelo despenhadeiro no mar, onde todos se afogaram."
-
Quanto a crença de o encontro com Deus, após a morte, ser
universal, como o unitarismo lida com esta situação de "salvação"
como os evangélicos dizem?
-
Onde está a base no unitarismo levando em conta que, por exemplo, a
base do catolicismo está na Bíblia?
Para
respondê-lo, permita-me organizar minha resposta em tópicos
numerados, seguindo a ordem que você mesmo utilizou.
1)
BÍBLIA:
De
fato, o Cristianismo Unitarista – mas também as outras tradições
cristãs que me formaram conjuntamente, como a ala liberal do
Episcopalismo/Anglicanismo, por exemplo – compreende a Bíblia de
formas bem diversas daquelas associadas à tradição na qual você
cresceu (a tradição teológica da Assembleia de Deus). Para a
maioria de nós, a Bíblia é uma coleção de textos que se tornaram
sagrados a partir de um processo de canonização – essa
compreensão é também partilhada, por exemplo, pelas tradições
católicas, reformadas, luteranas, e anglicanas. Nos textos bíblicos
podemos encontrar a “Palavra de Deus” não porque, em sua origem,
eles sejam divinos, mas porque aqueles textos apontam para a
experiência que outros seres humanos como nós tiveram com o Divino.
Assim, talvez seja seguro afirmar que não buscamos 100% de
compatibilidade entre o que dizem os textos bíblicos e aquilo que
entendemos hoje sobre a realidade física ou espiritual – buscamos,
sim, “pistas” que nos apontem para aquele Mistério que chamamos
de “Deus”.
Pessoalmente,
não leio os textos bíblicos isolados uns dos outros, nem isolados
das tradições das quais emergiram (a israelita, a dos primeiros
seguidores de Jesus, e a da tradição da Igreja cristã). É por
isso que, para mim – mas também para a maioria daqueles que
compartilham comigo minha tradição de fé –, uma leitura
histórico-metafórica das Escrituras é indispensável. Assim, para
ler aqueles textos aos quais você se refere, não consigo
desassociá-los dos contextos nos quais estão inseridos – ou seja,
o que aquelas pessoas acreditavam sobre a relação existente entre o
mundo físico e uma suposta realidade espiritual, a dualidade ou
divisão do universo entre bem e mal, e, especialmente, os conceitos
de “satanás”, “diabo” e “demônio” que abraçavam.
Também não posso desassociar minha interpretação do conhecimento
contemporâneo no qual fui formado enquanto cristão: hoje, por
exemplo, tenho acesso a conhecimentos que os autores dos relatos dos
Evangelhos não tinham; eu sei de onde vêm muitos dos conceitos que
eles utilizaram em seus relatos, e sei que muitas vezes sua visão
entra em conflito com os relatos e conceitos bíblicos mais antigos;
eles, entretanto, não sabiam disso! Penso que os autores dos
Evangelhos, por exemplo, e eu partilhamos a influência do mesmo
Espírito divino guiando nossa fé, mas nem sempre isso significa que
partilharíamos a mesma compreensão intelectual se pudéssemos
conversar sobre o que eles escreveram. Levando isso em consideração,
é relativamente fácil conciliar as Escrituras com minhas
compreensões teológicas.
Ou
seja, respondendo à sua questão sobre aquelas passagens de forma
mais objetiva, posso dizer que não nos preocupamos em oferecer uma
interpretação única, válida para todas as pessoas em todos os
tempos, sobre o que elas significam. Diferentes pessoas podem
compreendê-las de forma diversa. Os unitaristas e outros cristãos
liberais respeitam o princípio de que diferentes cristãos, em
diferentes contextos, construirão diferentes interpretações sobre
um mesmo texto bíblico ou sobre um ponto teológico específico.
Entre nós não há uma lista impositiva de crenças ou doutrinas
que deva ser inteiramente aceita para que alguém se torne parte da
comunidade. Isso é parte do que entendemos ser nossa liberdade
de consciência – ou a liberdade do fiel –, o que está ligado à
nossa compreensão de que Deus continua a se revelar à mente e ao
coração humano – seja por meio do conhecimento “espiritual”,
seja por meio do conhecimento “secular”.
2)
SALVAÇÃO:
Já tratei, em outros textos destas páginas, muito sobre este tema.
Em minha tradição, Deus é amor, e esse amor, que criou a tudo e
todos, é capaz de salvar, de regenerar, de reconciliar, de sanar,
sem cobrar preço, sem disputar com forças paralelas. Assim,
teologicamente, Deus vence o mal e restaura sua criação à forma
original. A tradição unitarista, unindo-se à universalista neste
aspecto, proclama um Deus de salvação universal que redimirá toda
a humanidade e toda a criação. Essa crença está bem enraizada na
Tradição da Igreja cristã – Orígenes escreveu sobre isso, assim
como Karl Barth, John A. T. Robinson, para não citar autores
especificamente ligados às tradições unitarista e universalista –
e na Bíblia.
3)
O UNITARISMO SE BASEIA NA BÍBLIA?
Onde está a base no
unitarismo levando em conta que, por exemplo, a base do catolicismo
está na Bíblia?
Deixe-me
começar dizendo que
discordo da forma como você trata
a relação entre o Catolicismo (Romano) e as Escrituras. A
maneira como você formulou sua pergunta faz parecer que o
Catolicismo (Romano) ensine que a Bíblia seja sua única fonte
doutrinária, o que não é o caso. No Catolicismo, há uma explícita
relação entre Escritura e Tradição – o que também ocorre, em
menor grau, nas formas mais
tradicionais de Protestantismo (especialmente
o Anglicanismo/Episcopalismo e o Luteranismo).
Essa relação, na tradição
católica romana, implica que a fé é expressa por meio das
Escrituras como interpretada através da Tradição e da autoridade
da Igreja. Logo, não é exato dizer que o Catolicismo se baseie nas
Escrituras – a chamada “Tradição apostólica” é um
elemento-chave para a teologia católica –, assim
como também não é correto dizer que o Protestantismo se baseie nas
Escrituras (só algumas tradições evangelicais afirmariam isso).
Em todas as tradições
cristãs, a Bíblia é interpretada a partir dum contexto teológico
específico – absolutamente nenhuma tradição pode afirmar que sua
tradição leia a Bíblia plenamente de forma literal e que ela seja
sua única “regra de fé”.
O
Unitarismo, enquanto tradição cristã protestante – também
chamado
de Cristianismo Unitarista –, tem suas origens na tradição
protestante do “sola
scriptura”, ou
seja, para os primeiros unitaristas a Bíblia era essencial para a
forma como compreendiam questões doutrinárias. A grande diferença
entre unitaristas e alguns outros grupos protestantes,
neste ponto, é o fato de os unitaristas terem emergido,
explicitamente, da cultura iluminista, para a qual a “razão”
desempenhava uma função importantíssima. É importante
destacar, também, que os diferentes grupos unitaristas europeus se
desenvolveram em contextos muito diferentes – tendo emergido de
tradições distintas. E isso, obviamente, impactaria suas
compreensões teológicas. Assim, os unitaristas italianos, alemães,
húngaros, transilvanos, poloneses, neerlandeses (ou holandeses, se
preferir), ingleses, escoceses, irlandeses, e, posteriormente,
aqueles na América do Norte – entre os séculos XVI e XX –
desenvolveram compreensões teológicas e/ou práticas muitas vezes
distintas umas das outras, em muitos pontos (como ocorreu com todo e
qualquer grupo religioso que tenha adeptos em culturas diversas).
Agora,
no tocante às Escrituras, qualquer cristão
unitarista
entenderia que a Bíblia desempenha um papel primordial em sua
tradição. É da Bíblia – interpretada a partir de
nossa tradição teológica –
que emerge nossa compreensão de Deus, de Jesus, da humanidade ou de
qualquer outro ponto teológico. Para nós, as Escrituras, a Tradição
e a Razão se entrelaçam para dar forma à maneira como entendemos a
fé cristã. Em nossa tradição, a razão, obviamente, sempre
recebeu um foco especial, e é justamente por isso que o Unitarismo
tende a atrair pessoas menos pacientes com formas de “autoritarismo
dogmático” (por exemplo, com uma comunidade ou líder que imponha
certas crenças como exigência para ser cristão).
Para
os que desejam explicações bíblicas para o Unitarismo, a
tradição teológica do Cristianismo Unitarista se assenta sobre uma
variedade de interpretações da Bíblia que, para alguns de nós, justifica, biblicamente, as
razões
para
acreditarmos ou deixarmos de acreditar em certas coisas. Esse
tipo de discussão, entretanto, não é mais visto como necessário
entre nós – ou seja, muito raramente um unitarista discutiria com
outro cristão suas crenças, tentando “provar” com passagens
bíblicas que suas crenças estão certas (eu não faço isso aqui).
Já publiquei aqui, antes, textos que tratam especificamente sobre
isso. Se você tiver interesse em explorar mais a relação entre os
unitaristas e as Escrituras, leia os seguintes textos presentes aqui
neste blogue:
Cristianismo
Unitarista (1819) –
William Ellery Channing
Manual
de Crença Unitarista
(1884) – de James Freeman Clarke
___________
Bem,
espero ter conseguido tirar algumas de suas dúvidas. Grande abraço
e paz!
+Gibson
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