[continuação]
Seria
essa projeção de nós mesmos sobre o texto que lemos algo negativo
em si?… Não necessariamente; e isso porque, de certa forma, é
inevitável. Mesmo quando lemos um texto com um imenso cuidado
analítico, tentando fazer uma leitura que contextualize-o histórica
e linguisticamente – ou seja, mobilizando amplos conhecimentos
hermenêuticos em nossa atividade exegética –, estaremos “nos
projetando” sobre o texto.
Dizer
isso pode soar como um ataque às crenças de alguns, mas essa
compreensão é importante para que possamos reconhecer nossa
limitação e para que sejamos capazes de fazer autocríticas.
Ademais, também é importante para que possamos conviver com a
diferença.
Isso
me faz pensar no crescente discurso/comportamento chamado de
“islamofobia” em certos meios cristãos. Esse
discurso/comportamento se faz presente nas redes sociais, por
exemplo, quando pessoas partilham – de forma pouco informada –
mensagens que pedem o fim da suposta “islamização” do Ocidente. [Enveredando
por um caminho que lembra o discurso antissemita anterior ao período
nazista na Europa.]
O
que essas pessoas não levam em consideração é que sua percepção
do Islã baseia-se numa série de fatores que não dizem respeito ao
Islã propriamente – até porque muitas delas pouco sabem sobre a
religião.
Quando,
por exemplo, veem alguém que se vista da forma como pensam que
muçulmanos se vestiriam, especialmente quando se trata de mulheres,
o que algumas dessas pessoas podem enxergar é uma ameaça ao seu
“modo de vida”. Para elas, ser muçulmano tornou-se,
equivocadamente, sinônimo de violência, terrorismo, opressão,
intolerância etc.
A
informação que recebem, quase todos os dias, da televisão, dos
jornais, dos filmes, da internet – e que acaba sendo também
refletida, muitas vezes, nos sermões de líderes eclesiásticos –
é que o Islã é uma ameaça a todos. E essa informação –
juntamente com toda a visão de mundo que essas pessoas já abraçam
– será projetada em sua leitura do Islã e dos muçulmanos e, se
ela for uma daquelas raras pessoas que já leram uma tradução do
Corão, em sua leitura do texto mais sagrado para os muçulmanos
(sim, porque a Bíblia também é sagrada no Islã).
Elas
encontram passagens violentas no Corão e, prontamente, apontam-nas
como evidência de que o Islã seja uma religião violenta. Contudo,
não leem as centenas e centenas de outras passagens que falam em
amor, tolerância e cuidado. Não percebem as passagens violentas de
sua própria Bíblia. Da mesma forma, não se dão ao trabalho de
perceber a diversidade de expressões do Islã – isto é, não
percebem que há muitas tradições islâmicas, não apenas uma; da
mesma forma como há muitos cristianismos, e não apenas um.
Citei
acima o exemplo do Islã, mas poderia ter usado qualquer outra
comunidade de fé como exemplo. A ideia de projeção de nossos
(pre)conceitos sobre nossa leitura daqueles que nos cercam é
semelhante àquela que se processa quando lemos nossos textos
sagrados.
Duma
certa forma, por mais que isso soe perturbador para alguns, quando
lemos as Escrituras nos engajamos numa atividade de construção do
Divino à nossa imagem e semelhança. Deus é, sim, uma Realidade;
mas quando racionalizamos essa Realidade – isto é, quando “lemos”
essa Realidade em nossos textos sagrados –, a moldamos de acordo
com nossa própria visão de mundo, através da visão de terceiros
que escreveram aquelas palavras e de outros que decidiram que aquelas
palavras deveriam ser tomadas como sagradas, através de outros que
ensinam sobre aquelas palavras, etc…
Ou
seja, a leitura é sempre um entrelaçamento que evidencia que não
estamos sozinhos. Para mim, como cristão, estão lá o texto
sagrado, fonte primária da doutrina cristã (a Escritura); a forma
como aquele texto tem sido compreendido na história da Igreja (a
Tradição); a minha compreensão de fé por meio de minha própria
vida, meu próprio lugar no mundo (a Experiência); e a maneira como
minha consciência discernirá essa experiência de leitura (Razão).
A
leitura, assim, é sempre um engajamento com o passado e o presente,
com o sentido e o vivido, com o profano e o sagrado, com o humano e o
divino. Nunca lemos “solitariamente”.
Que
possamos, todos nós, estar mais conscientes e atentos à forma como
lemos não apenas nossos textos sagrados como também ao mundo ao
nosso reder.
+Gibson
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