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sábado, 26 de dezembro de 2015

Um breve resgate da origem judaica do Natal: O mito natalino para um ministro cristão unitarista



[NOTA: Os termos e/ou trechos em grego e hebraico, ao longo do texto, são apenas transliterações.]

Começo com uma afirmação básica necessária: pouquíssimos estudiosos sérios questionam a existência de Jesus como um personagem real da história. São numerosas as fontes romanas, judaicas e cristãs sobre Jesus. Elas, obviamente, afirmam opiniões diversas a seu respeito, mas são aceitas como evidências suficientes de sua historicidade.

Quando Yeshua – o nome de Jesus em sua provável língua nativa, o aramaico (apesar de nenhum dos evangelhos explicitarem a língua falada por Jesus, pouquíssimas pessoas, além da elite dos escribas, podiam, àquela época, falar, ler ou escrever o hebraico bíblico; e os galileus falavam aramaico, não hebraico) – nasceu, seus conterrâneos viviam sob a tirania de conquistadores estrangeiros e sob o que entendiam como uma ameaça à sua identidade israelita advinda da assimilação cultural (uma ameaça recorrente à ideia duma identidade israelita ou judaica). A identidade israelita de seu povo enraizava-se na terra e no “mito” duma aliança que tornara aquela terra sua. Essa aliança mitológica era o escudo e a resistência que aquele povo tinha contra as forças imperiais romanas – uma fortaleza cultural que permaneceu de pé, mesmo depois de todas as instituições políticas e militares de Israel terem sido derrotadas.

A mitológica aliança que ligava aquele povo à sua terra emergira da compreensão que tinha das tradições israelitas. Essa compreensão advinha não do texto escrito da Torá e dos Profetas em hebraico – que pouquíssimos eram capazes de ler, de qualquer forma –, mas de seu “targum” oral. Um “targum” era uma tradução oral do texto das Escrituras que era memorizada e enriquecida por comentários, e recitada pelo “targeman” da comunidade. Essa recitação interpretativa das Escrituras contextualizava a tradição espiritual israelita para as circunstâncias de seu tempo, fazendo um amplo uso de leituras metafóricas. Dentre as muitas imagens enfatizadas por essa tradição interpretativa estava aquela do “Reino/Domínio de Deus” [basileia tou theou, no grego do Novo Testamento], que sobrepujaria todas as outras formas de reino ou domínio humano – uma forma de resistência poderosa para um povo que vivia sob o domínio estrangeiro.

Foi nesse contexto sociocultural que Miriam (Maria, em aramaico) e Yosef (José, em aramaico) conceberam a Yeshua (Jesus).

O texto grego de Mateus afirma:


tou de iesou christou he gennesis houtos en mnesteutheises gar tes metros autou marias to ioseph prin e sunelthein authos heurethe en gastri echousa ek pneumatos hagiou.” [A origem de Jesus, o ungido, foi assim: Maria, sua mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida por ação do Espírito Santo.] (Mateus 1:18)


O mito que envolve a narrativa natalina pode obscurecer o sentido histórico das palavras acima, extraídas do Evangelho de Mateus (“...antes de viverem juntos, ela ficou grávida por ação do Espírito Santo”). Em nossa cultura, afinal, a maioria de nós foi condicionada a interpretar aquelas palavras com base nos dogmas da Encarnação e da Trindade desenvolvidos posteriormente. Mas a tradição presente nos diferentes Evangelhos testifica sobre a recorrente acusação de que Jesus fora concebido de forma supostamente ilícita. Em sua vila de origem, de acordo com o autor do Evangelho de Marcos, ela era conhecido não como filho de José, mas como “o filho de Maria” [ho huios marias] (Marcos 6:3) – o que, se factual, seria uma evidência de seu status de ilegitimidade, já que as noções de “encarnação” e “trindade” ainda não haviam sido desenvolvidas. Mesmo longe de sua vila de origem, por exemplo, quando já era um rabino conhecido, Jesus foi ridicularizado, em Jerusalém, por haver nascido como fruto de “porneias” [fornicação] (João 8:41). Os séculos de dogmas acerca duma concepção e nascimento miraculosos obscureceriam dois pontos importantes sobre a narrativa que temos sobre Jesus: 1) Por que Jesus era insultado por supostamente ser filho ilegítimo?; e, 2) Por que se desenvolveu a narrativa de que teria nascido duma mãe virgem?

Aquela pequena frase em Mateus 1:18, enfatizada acima, é uma explicação suficiente para as acusações que marcariam a vida de Jesus de que seu nascimento possuía uma origem irregular. Ao mesmo tempo, também é suficiente para explicar a origem da lendária narrativa de que sua origem era miraculosa. Os seguidores posteriores de Jesus usariam a narrativa atribuída a Mateus como base para afirmar que Maria era biologicamente virgem quando do nascimento de seu filho. E por causa disso, em nossa própria época, os leitores teologicamente não ortodoxos podem se sentir tentados a descartar o valor histórico do Evangelho de Mateus. Mas, apesar de o texto daquele Evangelho e de outros estarem repletos de elementos não factuais, ele não pode ser responsabilizado pela leitura mítica que lhe foi imposta após sua escrita.

Um exemplo da compreensão mitológica posterior do texto encontra-se em Mateus 1:23 – “...he parthenos en gastri exei kai texetai huion...” [a solteira na barriga terá e dará à luz filho] –, quando afirma que uma mulher solteira [parthenos] conceberia um filho. Na tradução daquele texto grego à língua latina, no século II, “parhenos” tornou-se “virgo”, e essa tradução posteriormente alimentou a ideia de que Maria teria sido biologicamente virgem quando concebeu e deu à luz a seu filho Jesus. O problema com esse sentido, contudo, é que os termos “parthenos” e “almah” [“mulher jovem” – o termo hebraico que aparece na referência ao texto de Isaías 7:14] não significavam “virgem” como esse termo é utilizado na tradição cristã – na verdade, nem mesmo “virgo” significava isso exclusivamente; a expressão utilizada pelos romanos para “virgem”, no sentido relativo a “castidade”, era “virgo intacta” (por que não foi utilizado na tradução latina da Bíblia?!).

Uma razão que pode ser apontada para o uso de “parthenos” para referir-se a Maria é o fato de o(s) autor(es) de Mateus querer(em) fazer uma ligação entre Jesus e antigas profecias israelitas, para substanciar a afirmação de que ele seria o Messias esperado. Assim, seu passado é ligado ao passado de Israel. Note que sua mãe se chamava Maria [Miriam, em aramaico], e Maria [ou Miriam] era também o nome da irmã de Moisés, que salvou sua identidade israelita e, consequentemente, seu chamado profético (Êxodo 2:1-10), e que também foi chamada de “profetisa” (Êxodo 15:20). Essa Maria, irmã de Moisés, era descrita também como uma “almah” [parthenos, na tradução grega]. Assim, a mãe de Jesus possuía dois traços em comum com a irmã do libertador do povo de Israel, Moisés: o nome e a condição. Se a mais antiga Maria tivera a missão de assegurar que seu irmão manteria sua identidade como um israelita e, consequentemente, se tornaria o libertador de seu povo – sendo ela mesma uma profetisa –, a mãe de Jesus tinha a missão de trazer o Messias (o Cristo) ao mundo... Pequenos detalhes na narrativa que se tornaram essenciais para a forma como a maioria dos cristãos entenderia o Natal, mas aos quais poucos estão atentos!

Obviamente, a forma como a ortodoxia cristã lidou com isso tem muito mais a ver com as influências das ideias greco-romanas no pensamento da Igreja que emergia – pense, por exemplo, nos dogmas da Encarnação e da Trindade – do que propriamente com o que os textos originais das Escrituras ou a tradição judaica tinham a dizer. Assim, ao longo dos séculos, os cristãos não teriam a mínima necessidade de conciliar algumas afirmações feitas sobre Jesus, nos Evangelhos, com o todo da tradição judaica da qual ele era parte. E a ênfase no sobrenatural, no que tange à história de Jesus de Nazaré, pode ter contribuído para que a tradição cristã perdesse contato tanto com a cultura religiosa da qual emergiu quanto com a poderosa mensagem humana presente nos relatos, mesmo que míticos, sobre sua vida.

A questão sobre a concepção de Jesus – quem era seu pai, afinal de contas? – encontra três explicações diferentes no Novo Testamento (e essas podem se entrelaçar, nas mesmas fontes, com explicações conflitantes):

  • 1) Jesus teria sido concebido através da intervenção do “espírito santo” (ainda não necessariamente entendido como uma “pessoa”), por meio dum mecanismo desconhecido. Sua mãe, assim, não tivera relações sexuais com um homem: Lucas 1:34-35 e Mateus 1:18-25.

  • 2) Jesus era, de fato, filho de José: João 1:46; 6:42; Lucas 4:22; Mateus 1:1-17 e Lucas 3:23-38 (genealogias que só poderiam ter sido desenvolvidas com base nessa suposição) – os ajustes em Mateus 1:16 e Lucas 3:23 parecem ser posteriores. A identidade de Jesus como “filho de Davi” – Mateus 1:1; 9:27; 12:23; 15:22; 20:30-31; 21:9, 15; Marcos 10:47-48; Lucas 18:38-39; Romanos 1:3; 2 Timóteo 2:8; Apocalipse 5:5, e 22:16 – implicitamente invoca essa noção, já que apenas José poderia mediar essa linhagem (Mateus 1:20; Lucas 1:27, 32, e 2:4).

  • 3) Jesus foi acusado, por alguns de seus adversários, de ser fruto de “fornicação” [porneia, no texto grego] – João 8:41 –, e tal acusação é frequentemente vista como a base para a omissão de José na identificação de Jesus em Marcos 6:3, como já apontado anteriormente.


Ou seja, os próprios livros do chamado Novo Testamento – quando compreendemos sua historicidade (a forma como foram compostos e, posteriormente, ajustados para conformarem-se à ortodoxia desenvolvida posteriormente) – oferecem uma multiplicidade de pistas sobre o personagem histórico cuja memória nós cristãos, das mais variadas expressões, honramos no Natal. Essa multiplicidade contraditória, dentre tantas outras razões, resulta do simples fato de esses escritos não terem sido compostos como registros históricos como entendemos “História” e/ou “históricos” em nossos dias. As finalidades que tinham e os públicos aos quais se dirigiam não exigiam a noção de “factualidade”.

Mas, além daqueles escritos, podemos também acessar as pistas deixadas por outros textos importantes para entender a cultura religiosa na qual Jesus cresceu. Aquela pequena e simples frase em Mateus 1:18, assim como as expressões utilizadas nos trechos citados de Marcos e João (“filho de Maria” e “fornicação”) como referência a Jesus, pode(m) ser explicada(s) pela tradição talmúdica israelita. Por “talmúdica”, a propósito, quero me referir ao Talmud, um registro de discussões rabínicas acerca da Lei, exegese, costumes, história e tradições judaicas. O Talmud é composto pela Mishnah e pela Guemara e, apesar de os registros escritos mais antigos serem posteriores ao registro dos Evangelhos, aquela tradição da Torá Oral do judaísmo rabínico já existia antes de Jesus – estando presente em trechos dos Evangelhos.

Se voltarmos à tradição de José como originário duma cidade diferente da da jovem Maria (Lucas 2:4-5) – há, hoje, o conhecimento da existência prévia duma Belém na própria Galileia, próximo a Nazaré, mas evitarei entrar nessa questão aqui –, poderemos compreender um pouco da desconfiança sobre a paternidade de Jesus levantada por seus adversários.

Independentemente de quem tenha sido o pai de Jesus, as condições sob as quais foi concebido, de acordo com o(s) autor(es) do Evangelho de Mateus, o tornariam um “mamzer”, alguém gerado através de relacionamentos proibidos (e seus descendentes até a décima geração) pela lei judaica. A não ser que Maria pudesse apresentar testemunhas de que o pai de seu filho era um parceiro lícito, de acordo com a lei, se consideraria que o pai de sua criança era um “mamzer”, um filho de “mamzer” ou outro tipo de pessoa proibida, o que automaticamente também tornaria Jesus um “mamzer” (Mishnah Ketubot 1:8-9). E isso ocorreria tanto se José fosse o pai – já que, de acordo com o(s) autor(es) de Lucas, ele vinha de outra região e, assim, não poderia haver uma testemunha confiável de sua licitude como não “mamzer” para a comunidade de Maria –, quanto, e especialmente, se o “Espírito Santo” fosse o pai de Jesus – já que não poderia haver uma testemunha da licitude dessa paternidade!

Encontrar uma tradução apropriada para o termo “mamzer”, em português, é difícil. Algumas vezes, utiliza-se “ilícito” ou “ilegítimo(a)”, mas deve-se ter em mente que o termo hebraico não se refere a uma criança nascida fora do casamento – refere-se ao fruto duma relação sexual com a pessoa errada. As relações sexuais entre pessoas não casadas, a propósito, eram toleradas, e não afetavam o status da criança – só afetariam se um dos parceiros fosse “ilícito”. Muitas traduções, em português, da primeira referência ao “mamzerut” (a condição de um[a] “mamzer”) na lei judaica, traduzem “mamzer” como “bastardo”:


Não entrará bastardo na congregação do Eterno, nem ainda a décima geração dele não entrará na congregação do Eterno. [Deuteronômio 23:3 – da tradução da Editora Sêfer]


O Talmud esclarece que essa proibição de entrada na congregação significa a proibição de casamento com um[a] israelita. Os filhos duma união sexual entre um “mamzer” e uma mulher israelita estariam, igualmente, proibidos de se unirem a mulheres israelitas. No caso específico de Jesus, a ausência de provas de que era filho de um pai lícito – fosse seu pai divino ou um forasteiro na Galileia sem referências – o tornava um “mamzer”. O que significaria que, além de ser proibido de unir-se licitamente a uma mulher israelita, estava condenado a não ter voz na comunidade. [Você poderia me questionar sobre que garantias teríamos que José, por exemplo, não teria testemunhas reconhecidas de sua licitude para unir-se a Maria. Realmente não temos. Mas as evidências nos textos apontam para o fato de que Jesus foi acusado de “mamzerut” por seus adversários – e isso, se considerarmos o testemunho dos textos evangélicos, seria uma evidência de que haveria rumores a seu respeito!]

Olhar para os relatos da vida e dos ensinamentos de Jesus considerando as diferentes possibilidades permitidas pelos textos sagrados, cotejados com outras fontes do mesmo contexto sociocultural, pode parecer simples especulação para aqueles que abraçam o mito natalino como um relato factual. Mas, para mim, abre outras portas para compreender a tradição cristã. Ajuda-me, por exemplo, a compreender melhor a ênfase na visão de Deus como “paizinho” com o qual se pode manter relação pessoal – se Jesus foi um mamzer, e sofreu discriminação por isso, seu suposto uso do termo “Abba” para referir-se a Deus teria um impacto muito maior; suas fábulas sobre crianças teriam um peso muito mais profundo.

Assim, em minha experiência espiritual, humanizar Jesus, por meio da análise de possibilidades históricas, não equivale a diminuir sua importância. Muito pelo contrário. Significa alargar o sentido da tradição. Jesus deixa de ser apenas um mito etéreo – o Cristo construído pela ortodoxia –, e se torna o homem real, que iniciou sua vida como “refugiado”, viveu como um “excluído” e, por isso mesmo, sabia do que estava falando!

+Gibson

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