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sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

A "Palavra de Deus": uma resposta a Pedro


Caro Pedro,

Você está equivocado quanto à minha compreensão das Escrituras. O problema está na forma como compreendemos certos conceitos que você utilizou. O mais importante deles é o conceito de “Palavra de Deus”. Você, aparentemente, define esse conceito como sendo sinônimo exclusivo de “Bíblia”. Assim, para você, por a Bíblia ser a “Palavra de Deus”, ela teria uma origem divina – de alguma forma, tudo o que esteja escrito naquele conjunto de livros, para você, é originalmente divino. É esse seu sentido de “divindade” original que não abraço. Para mim, a Bíblia é, sim, um conjunto de textos “divinos”, mas não porque os textos tenham sido escritos já como “divinos”. As Escrituras (prefiro chamar a Bíblia de “Escrituras” para reforçar a sua multiplicidade) passaram por um processo de “divinização” – isto é, o texto originariamente humano é reconhecido como “divino” porque, para os ouvintes (a maioria dos primeiros cristãos era de ouvintes, e não de leitores das Escrituras), aquelas palavras os aproximavam do Divino e lhes mostravam o caminho,

Você consegue perceber a diferença em nossa compreensão?

Para mim, a “Palavra de Deus” é Jesus Cristo, e não a Bíblia em si. Obviamente, “Palavra de Deus” é apenas uma metáfora, não uma declaração literal. Por isso, poderia ser aplicada igualmente à Bíblia. Mas eu, pessoalmente, prefiro utilizar a metáfora apenas quando me refiro a Jesus. É por essa razão que você – como me escreveu – possivelmente nunca leu nada que eu tenha escrito se referir à Bíblia como “Palavra de Deus” (bem, você pode nunca ter lido ou ouvido, mas, na verdade, eu já me referi algumas vezes às Escrituras como tal, em contextos muito específicos). A Bíblia não pode dizer ser ela a “Palavra de Deus” por duas razões simples: 1) a Bíblia não diz absolutamente nada, quem diz são seus autores – isso parece ser uma banalidade, mas é essencial para que você desenvolva uma compreensão mais madura de sua leitura; 2) não pode haver uma afirmação na Bíblia de que ela seja a “Palavra de Deus”, no sentido que você dá ao termo, porque os autores da “Bíblia” não sabiam sobre a existência da “Bíblia”! A Bíblia, enquanto livro unitário, no singular, é uma invenção recente. As Escrituras surgiram como um conjunto de textos distintos, escritos em lugares e contextos diversos, por autores diversos, em línguas diversas e até, pelo menos, o século XVI ainda não havia sido estabelecido o cânon definitivo dos livros daquilo que hoje lemos como um livro unitário. E os homens foram não apenas os autores e tradutores dos escritos, mas também aqueles que decidiram quais desses escritos estariam nas traduções que lemos hoje!

E essa é uma das razões mais importantes para que eu não abrace sua perspectiva de origem divina das Escrituras – há muitas outras razões, mas já escrevi sobre elas naqueles textos que você citou em sua mensagem.

Ler é interpretar, e a interpretação é um processo. E nenhum cristão lê a Bíblia por si só – ou seja, o sentido que dá à sua leitura não advém apenas das palavras que encontra impressas sobre as páginas. Todos nós, quando lemos as Escrituras – ou qualquer outro texto escrito –, utilizamos em nossa ação interpretativa as ferramentas que encontramos em nosso próprio “universo cultural”. Dentre essas ferramentas estão os conceitos que já internalizamos – voluntária ou involuntariamente – sobre, por exemplo, Deus, Jesus Cristo, a humanidade, a vida, a morte etc. Assim, um católico romano, um luterano, um presbiteriano, um unitarista, um santo dos últimos dias, ou um pentecostal, podem ler a mesma porção dum texto bíblico e compreendê-lo de formas diferentes e, muitas vezes, conflitantes.

Essa noção de que as Escrituras são interpretadas, ao menos parcialmente, com base naquilo que trazemos em nossa visão de mundo, obviamente, não é geralmente aceita por aqueles que acreditam na Bíblia como tendo uma origem literalmente divina. É por essa razão que, para eles, há apenas uma interpretação válida da coleção de livros que chamamos de Bíblia – e que alguns tratam como se fora um único livro, com uma única mensagem, com uma única intenção, com uma única origem.

A multiplicidade de fontes para a ação de interpretar as Escrituras inclui o próprio texto, a tradição, a razão, e ação divina. Isto é, a maioria das tradições teológicas cristãs reconhece que há no processo de engajamento com o texto bíblico uma multiplicidade de relações. Mesmo você reconheceu isso, quando escreveu sobre a ação do Espírito Santo.

O relato que você me fez de sua experiência de “conversão” já me dá pistas sobre a origem de sua compreensão sobre a Bíblia. Se você fosse um católico romano ou um luterano, por exemplo, suas perguntas seriam diferentes e, possivelmente, as respostas às quais chegaria também seriam diferentes daquelas que abraça hoje. Da mesma forma, eu também tenho perguntas que são muito diferentes das suas quando leio as Escrituras, e, provavelmente, chego a conclusões bem diferentes das suas.

Para mim, isso não significa que você esteja essencialmente errado e eu esteja essencialmente certo em termos das questões levantadas e das conclusões às quais chegamos. Significa, apenas, que partimos de lugares diferentes; lugares que não são melhores ou piores que o do outro, são apenas diferentes. O esforço que eu, pessoalmente, faço, tanto em minha vida ministerial quanto devocional, é tentar entender o lugar de onde as outras pessoas partem. E posso garantir a você que, quando fazemos isso, nós aprendemos que é possível viver com a diferença. É só tentar mudar um pouco a perspectiva e se colocar no lugar do outro – especialmente quando esse outro busca a mesma coisa que você.

Grande abraço!

+Gibson

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