Caro
Pedro,
Você
está equivocado quanto à minha compreensão das Escrituras. O
problema está na forma como compreendemos certos conceitos que você
utilizou. O mais importante deles é o conceito de “Palavra de
Deus”. Você, aparentemente, define esse conceito como sendo
sinônimo exclusivo de “Bíblia”. Assim, para você, por a Bíblia
ser a “Palavra de Deus”, ela teria uma origem divina – de
alguma forma, tudo o que esteja escrito naquele conjunto de livros,
para você, é originalmente divino. É esse seu sentido de
“divindade” original que não abraço. Para mim, a Bíblia é,
sim, um conjunto de textos “divinos”, mas não porque os textos
tenham sido escritos já como “divinos”. As Escrituras (prefiro
chamar a Bíblia de “Escrituras” para reforçar a sua
multiplicidade) passaram por um processo de “divinização” –
isto é, o texto originariamente humano é reconhecido como “divino”
porque, para os ouvintes (a maioria dos primeiros cristãos era de
ouvintes, e não de leitores das Escrituras), aquelas palavras os
aproximavam do Divino e lhes mostravam o caminho,
Você
consegue perceber a diferença em nossa compreensão?
Para
mim, a “Palavra de Deus” é Jesus Cristo, e não a Bíblia em si.
Obviamente, “Palavra de Deus” é apenas uma metáfora, não uma
declaração literal. Por isso, poderia ser aplicada igualmente à
Bíblia. Mas eu, pessoalmente, prefiro utilizar a metáfora apenas
quando me refiro a Jesus. É por essa razão que você – como me
escreveu – possivelmente nunca leu nada que eu tenha escrito se
referir à Bíblia como “Palavra de Deus” (bem, você pode nunca
ter lido ou ouvido, mas, na verdade, eu já me referi algumas vezes
às Escrituras como tal, em contextos muito específicos). A Bíblia
não pode dizer ser ela a “Palavra de Deus” por duas razões
simples: 1) a Bíblia não diz absolutamente nada, quem diz são seus
autores – isso parece ser uma banalidade, mas é essencial para que
você desenvolva uma compreensão mais madura de sua leitura; 2) não
pode haver uma afirmação na Bíblia de que ela seja a “Palavra de
Deus”, no sentido que você dá ao termo, porque os autores da
“Bíblia” não sabiam sobre a existência da “Bíblia”! A
Bíblia, enquanto livro unitário, no singular, é uma invenção
recente. As Escrituras surgiram como um conjunto de textos distintos,
escritos em lugares e contextos diversos, por autores diversos, em
línguas diversas e até, pelo menos, o século XVI ainda não havia
sido estabelecido o cânon definitivo dos livros daquilo que hoje
lemos como um livro unitário. E os homens foram não apenas os
autores e tradutores dos escritos, mas também aqueles que decidiram
quais desses escritos estariam nas traduções que lemos hoje!
E
essa é uma das razões mais importantes para que eu não abrace sua
perspectiva de origem divina das Escrituras – há muitas outras
razões, mas já escrevi sobre elas naqueles textos que você citou
em sua mensagem.
Ler
é interpretar, e a interpretação é um processo. E nenhum cristão
lê a Bíblia por si só – ou seja, o sentido que dá à sua
leitura não advém apenas das palavras que encontra
impressas sobre as páginas. Todos nós, quando lemos as Escrituras –
ou qualquer outro texto escrito –, utilizamos em nossa ação
interpretativa as ferramentas que encontramos em nosso próprio
“universo cultural”. Dentre essas ferramentas estão os conceitos
que já internalizamos – voluntária ou involuntariamente –
sobre, por exemplo, Deus, Jesus Cristo, a humanidade, a vida, a morte
etc. Assim, um católico romano, um luterano, um presbiteriano, um
unitarista, um santo dos últimos dias, ou um pentecostal, podem ler
a mesma porção dum texto bíblico e compreendê-lo de formas
diferentes e, muitas vezes, conflitantes.
Essa
noção de que as Escrituras são interpretadas, ao menos
parcialmente, com base naquilo que trazemos em nossa visão de mundo,
obviamente, não é geralmente aceita por aqueles que acreditam na
Bíblia como tendo uma origem literalmente divina. É por essa razão
que, para eles, há apenas uma interpretação válida da coleção
de livros que chamamos de Bíblia – e que alguns tratam como se
fora um único livro, com uma única mensagem, com uma única
intenção, com uma única origem.
A
multiplicidade de fontes para a ação de interpretar as Escrituras
inclui o próprio texto, a tradição, a razão, e ação divina.
Isto é, a maioria das tradições teológicas cristãs reconhece que
há no processo de engajamento com o texto bíblico uma
multiplicidade de relações. Mesmo você reconheceu isso, quando
escreveu sobre a ação do Espírito Santo.
O
relato que você me fez de sua experiência de “conversão” já
me dá pistas sobre a origem de sua compreensão sobre a Bíblia. Se
você fosse um católico romano ou um luterano, por exemplo, suas
perguntas seriam diferentes e, possivelmente, as respostas às quais
chegaria também seriam diferentes daquelas que abraça hoje. Da
mesma forma, eu também tenho perguntas que são muito diferentes das
suas quando leio as Escrituras, e, provavelmente, chego a conclusões
bem diferentes das suas.
Para
mim, isso não significa que você esteja essencialmente errado e eu
esteja essencialmente certo em termos das questões levantadas e das
conclusões às quais chegamos. Significa, apenas, que partimos de
lugares diferentes; lugares que não são melhores ou piores que o do
outro, são apenas diferentes. O esforço que eu, pessoalmente, faço,
tanto em minha vida ministerial quanto devocional, é tentar entender
o lugar de onde as outras pessoas partem. E posso garantir a você
que, quando fazemos isso, nós aprendemos que é possível viver com
a diferença. É só tentar mudar um pouco a perspectiva e se colocar
no lugar do outro – especialmente quando esse outro busca a mesma
coisa que você.
Grande
abraço!
+Gibson
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