Ontem,
ouvi um comentário que me fez não saber se ria ou se chorava,
enquanto ouvia uma entrevista. Aquele entrevistado, apresentado como
“teólogo”, resumia o cenário dum capítulo infeliz da história
de 2015 – um capítulo que parece querer reescrever uma narrativa
já conhecida de “caça às bruxas”. O “teólogo”, fazendo
uma comparação histórica e teologicamente desinformada entre o
Islã e o Cristianismo, dizia que não havia nada de naturalmente
pacífico no Islã, já que – em sua opinião – só o
Cristianismo era naturalmente pacífico!
Sua
infeliz afirmação continha uma verdade inegável: não há nada de
naturalmente pacífico no Islã!... E considero-a
inegável porque, em minha visão, ideias não são naturais,
conceitos não são naturais, crenças não são naturais... Logo
após esse reconhecimento da não-naturalidade das ideias islâmicas,
entretanto, ele inadvertidamente se contradisse, cometendo o equívoco
de afirmar que essa naturalidade podia ser encontrada
em sua própria tradição religiosa (da qual também partilho)!
O
indivíduo cuja entrevista ouvi, aparentemente não compreendia que o
Islã é uma noção contestada – assim como o Cristianismo (e
mesmo a Paz). E isso porque o uso de todas essas noções é
reflexivo: isto é, seu uso reflete mais o lugar onde o usuário se
encontra no espectro do debate religioso/político/ideológico do
que, propriamente, as continuidades e mudanças de sentido dado a
eles (Islã e Cristianismo) por todo o diverso corpo de seus adeptos
ao longo do tempo.
Assim,
se dissermos que o Cristianismo (uma noção contestada ao menos
pelas diferentes tradições autoidentificadas como “cristãs”) é
“naturalmente” pacífico, a qual versão do mesmo estaríamos nos
referindo? [Não poderia ser a de Jesus, já que ele não era
cristão!]: À versão do imperador romano que o oficializou? À
versão dos cavaleiros cruzados que dizimaram populações não
cristãs? À versão dos inquisidores católicos que caçaram
não-conformistas no mundo ibérico? À versão dos calvinistas
bôeres que criaram/apoiavam o sistema do apartheid na África do
Sul? À versão dos quakers (quacres) que proclamaram e viveram uma
versão extremada de pacifismo?... É impossível falar em
“naturalidade” duma mensagem quando não se consegue nem definir
quem sejam seus agentes. [Para que não reste dúvida quanto à minha
visão: o Cristianismo – minha fé – é uma criação histórica
múltipla, e todas as suas faces são “cristãs”! Não é uma
entidade ou objeto “natural”, que caiu pronto do “céu”. O
Cristianismo, enquanto existir, continuará a seguir seu processo de
formação – como toda e qualquer tradição de fé existente.]
É
“interessantíssimo” que a maioria dos denunciadores do Islã que
aparecem nos meios midiáticos, incluindo a internet, tenham uma
leitura bem seletiva das fontes islâmicas. Isto é, facilmente citam
trechos descontextualizados do Corão para “provar” o quão
violenta é a mensagem do Islã. E isso é ainda mais “interessante”
quando o assunto é política (e não exatamente religião).
Uma
contextualização intelectualmente íntegra do Islã exige que
incluamos aqueles antecedentes que os próprios muçulmanos utilizam
como fonte para a interpretação de sua própria fé: a narrativa
sobre Muhammad e os primeiros muçulmanos; a perspectiva teológica
mediada pelo Corão e pelos ditos de seu Profeta; os arranjos
institucionais e legais que se desenvolveram ao longo da emergência
do Islã como uma força política e sociocultural; e sua própria
experiência contemporânea. Grupos de fanáticos “terroristas”
(lembre-se que mesmo esse conceito é contestável, se estivermos
dispostos a analisar cuidadosamente a raison d'être de seu
uso!) não podem ser os definidores do que mais de 1 bilhão e meio
de pessoas acreditam – são elas, a partir de suas diferentes
tradições e de suas próprias convicções e práticas, que devem
definir suas próprias crenças.
Por
que utilizaríamos citações da al-Qa'ida ou do Da'ish para definir
o que os muçulmanos acreditam ser o Islã ou sua relação com a paz
e com o mundo em geral? Por que nenhuma citação do atual
establishment ortodoxo sunni ou shia? Por que toda uma tradição –
que, na verdade, é multifacetada – seria definida por vozes
marginais em seu próprio interior?
A
equalização desinformada do Islã com o terrorismo e a violência é
tão absurda quanto afirmar que o Cristianismo e o Fascismo, por
exemplo, sejam sinônimo. O Fascismo pode ter emergido no seio duma
sociedade majoritariamente (ao menos nominalmente) cristã; seus
líderes podem ter se apropriado de símbolos cristãos; muitos
cristãos podem ter abraçado o Fascismo; mas nada disso é
suficiente para supor ou afirmar que o Cristianismo e o Fascismo
sejam o mesmo – o Cristianismo é muito mais do que o pensamento ou
a experiência de um certo grupo de fieis. [A comparação
aparentemente exagerada, a propósito, se justifica pelo simples fato
de os movimentos jihadistas serem movimentos políticos – e
politizarem o Islã, utilizando-o a seu próprio favor –, de forma
semelhante ao que ocorreu entre movimentos fascistas e membros do
clero ou fiéis católicos italianos, eslovacos e croatas.]
O
Islã não é “naturalmente” nem violento nem pacífico. Isso
porque, para um não-muçulmano como eu, o Islã não é uma entidade
ou objeto “natural”. É uma construção histórica. E, como
construção histórica, pode ser tanto pacífico quanto violento.
Tudo depende a partir de que perspectivas olhemos para seus frutos.
O
Islã é uma tradição viva e multifacetada, na qual a maioria dos
fiéis se esforça para discernir as ligações entre a narrativa
histórica tomada como padrão exemplar e sua experiência
contemporânea. Exatamente o que fazem os seguidores de todas as
demais tradições enraizadas no texto escrito. Seus textos sagrados,
as interpretações desses feitas pelas primeiras autoridades da
tradição, as narrativas das experiências das primeiras comunidades
de seguidores, e as ideias e práticas que se desenvolveram ao longo
do tempo, contribuem para que os fieis judeus, cristãos, muçulmanos,
etc, etc, etc, construam uma interpretação de sua fé
relevante para sua experiência contemporânea – mesmo quando
pensam que a única coisa que fazem é seguir o que já foi
dado!... Ignorar isso, enquanto se apresenta como “teólogo”, é
uma estarrecedora manifestação de ignorância voluntária!
+Gibson
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