Seus
professores provavelmente não discutirão isso em suas aulas de
História ou Teologia na universidade; e, se você for um “santo
dos últimos dias”, possivelmente se ofenderá com meus comentários
aqui. Ofender gratuitamente não é minha intenção, mas, como um
pesquisador de Teologia Histórica, não posso evitar fazer breves
comentários sobre o assunto aqui.
É
bom afirmar desde agora que minha leitura é, obviamente,
completamente distinta daquela que seria feita por um santo dos
últimos dias que, provavelmente, não questionaria a autoridade e
intenções de sua igreja e de sua liderança. Também é importante
deixar claro que não sou um inimigo da tradição ou da Igreja SUD,
logo, não invisto meu tempo em ataques à fé dos santos dos últimos
dias – meus comentários aqui dizem respeito apenas à maneira como
a Igreja SUD lida com sua história. A “historiografia” oficial
da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias foi e continua
a ser problemática, mas o passo tomado pela mesma esta semana toma
um (meio)caminho até certo ponto surpreendente em sua abordagem de
sua própria história – e é sobre isso que falo aqui.
Como
alguém que se ocupa do estudo da história das ideias teológicas
nos Estados Unidos do século XIX, tratar de assunto tão controverso
quanto o tema do chamado “casamento plural” na tradição dos
“santos dos últimos dias” (chamados popularmente de “mórmons”)
é uma tarefa complicada. E é complicado por me forçar a,
provavelmente, ofender convicções religiosas de alguns amigos
membros da Igreja SUD (a sediada em Salt Lake City), para quem a
“profecia” é algo factual; e também complicado por correr o
risco de confundir um público não familiarizado com o tema, quando
associam a crença de grupos como a “Comunidade de Cristo” ou
outros “santos” (não tão comuns no Brasil), com as crenças e
práticas da Igreja SUD – incluindo a forma como esses, os “santos
dos últimos dias”, lidam com sua história.
Nesta
última quarta-feira, 22 de outubro de 2014, foram publicados no site
oficial da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (que
aqui chamo de Igreja SUD), em inglês, três artigos tratando sobre o
tema do “casamento plural”. Um introdutório é chamado [1]
“
Plural
Marriage in the Church of Jesus Christ of Latter-day Saints”
[Casamento Plural na Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos
Dias], o segundo chama-se [2] “
Plural
Marriage in Kirtland and Nauvoo” [Casamento Plural em Kirtland
e Nauvoo], e outro chamado [3] “
The
Manifesto and the End of Plural Marriage” [O Manifesto e o Fim
do Casamento Plural]. Esses têm causado um rebuliço nas discussões
sobre o tema desta prática de muitos “mórmons” no século XIX.
Esses artigos adicionam informações àquelas já disponibilizadas
num artigo mais antigo, chamado [4] “
Plural
Marriage and Families in Early Utah” [Casamentos e Famílias
Plurais nos Primórdios de Utah]. (
A numeração é minha e
serve apenas para facilitar minha referência a esses documentos mais
adiante. Para evitar a repetição de seus títulos os chamarei de
“artigo 1” etc.)
Os
artigos, em minha opinião, apesar de expressarem um avanço em
termos de reconhecimento da prática e de suas implicações sexuais,
estão longe de ser uma obra historiográfica desatrelada do
interesse em proteger a imagem da igreja SUD nas disputas políticas
que se desenvolvem hoje nos Estados Unidos – em grande parte, após
as discussões que se levantaram nos meios de comunicação
americanos após a candidatura de Mitt Romney à Presidência dos
Estados Unidos (e sua possível recandidatura nas próximas
eleições). E seria tolice esperar que uma instituição que sempre
desempenhou um papel tão autoritário, ao menos em minha opinião,
na forma como se lida com sua história – por razões que seriam
deveras complicadas para discutir aqui – mudasse sua atitude
corporativa agora (e isso – quando olhado de fora, por pessoas que,
como eu, se esforçam para ser mais compreensivas – é o
desperdício duma grande oportunidade).
A
primeira frase do artigo 1 já indica o caminho
seguido por seu(s) autor(es):
Os santos dos últimos dias
acreditam que o casamento de um homem e uma mulher é a lei
permanente de casamento do Senhor.
Uma
frase aparentemente tão inocente como esta explicita uma retórica
anacrônica sobre um tema tão essencial para a história do
movimento dos santos dos últimos dias. A frase aponta para uma
preocupação com o presente, e não em esclarecer de forma honesta o
passado. A declaração é tanto uma resposta a possíveis acusações
desinformadas de que os “mórmons” sejam hoje polígamos, quanto
uma afirmação da posição da Igreja SUD quanto à presente questão
do casamento entre pessoas do mesmo sexo (tanto nos Estados Unidos
quanto em outros países). Uma afirmação, em minha opinião
pessoal, desnecessária ao texto, se o que ele intentasse fosse o
esclarecimento do passado da Igreja SUD.
Para
qualquer pesquisador sério da história da tradição SUD, será
importante observar algumas afirmações feitas nos textos, que
corroboram aquilo defendido há muito por historiadores do movimento
SUD não ligados à Igreja de Salt Lake City. É importante, por
exemplo, a afirmação, no artigo 2, de que
A revelação sobre o
casamento plural não foi escrita até 1843, mas seus primeiros
versos sugerem que parte dela emergiu do estudo do Antigo Testamento
por Joseph Smith em 1831. Pessoas que conheciam Joseph bem afirmaram,
mais tarde, que ele recebera a revelação naquela época. […]
Mais
adiante, no mesmo artigo 2, afirma-se o já conhecido fato de
que Joseph Smith já havia “se casado pluralmente” com outra
mulher na década de 1830 (supostamente obedecendo ao que lhe
ordenara um anjo), ou seja, antes da revelação de 1843. Essa
mulher, Fanny Alger, trabalhava na casa dos Smith durante a época em
que moravam em Kirtland. O casamento acabou em separação e, após
essa separação, Joseph só voltaria a tratar do tema em Nauvoo, na
década seguinte.
O(s)
autor(es) parece(m) se esforçar para evitar que a imagem de seu
profeta – Joseph Smith – seja manchada de alguma forma e, para
isso, recorrem a uma contextualização histórica, mesmo que
limitada, das práticas matrimoniais no século XIX. Esse esforço se
evidencia, por exemplo, quando se discute, no artigo 2, as
práticas do próprio Joseph Smith:
A maioria daquelas seladas a
Joseph Smith tinham entre 20 e 40 anos de idade na época de seu
selamento a ele. A mais velha, Fanny Young, tinha 56 anos. A mais
nova foi Helen Mar Kimball, filha dos amigos de Joseph, Heber C.
[Kimball] e Vilate Murray Kimball, que foi selada a Joseph alguns
meses antes de completar 15 anos. Casamento numa idade como essa,
inapropriado para os padrões de hoje, era legal naquela época, e
algumas mulheres se casavam em meados de sua adolescência. Helen Mar
Kimball falou de seu selamento a Joseph como sendo “apenas para a
eternidade”, sugerindo que o relacionamento não envolvia relações
sexuais. Após a morte de Joseph, Helen se casou novamente e
tornou-se uma articulada defensora do casamento plural.
Para
mim, é marcante como se tenta diminuir o impacto da informação da
idade de Helen, optando-se pela expressão “alguns meses antes
de completar 15 anos”, em vez de simplesmente dizer que ela
tinha 14 anos de idade. Logo em seguida, se contextualiza a questão
da idade dos casamentos naquele ambiente de fronteira, ao mesmo tempo
em que tenta-se poupar a imagem de Joseph, citando a afirmação de
Helen de que seu selamento tivera sido “apenas para a
eternidade”.
É
importante, talvez, esclarecer aqui alguns dos termos presentes no
artigo 2, citando a explicação dada no próprio texto:
Durante a era na qual o
casamento plural foi praticado, os santos dos últimos dias
distinguiram entre selamentos para o tempo e a eternidade e
selamentos apenas para a eternidade. Selamentos para o tempo e para a
eternidade incluíam compromissos e relacionamentos durante esta
vida, geralmente incluíam a possibilidade de relações sexuais.
Selamentos apenas para a eternidade indicavam relacionamentos na
próxima vida apenas.
Os
artigos trazem, além de várias informações que a Igreja SUD
evitou discutir com o público não “mórmon” por tanto tempo
(apesar de todas elas já serem conhecidas há muito), questões
teológicas importantes, talvez invisíveis aos olhos leigos. Nesses
artigos, a instituição e prática subsequente do casamento plural é
identificado como fruto de “revelação”. Na tradição
SUD, o “Profeta” (=Presidente da Igreja) recebe revelação
direta de Deus para guiar a igreja; Joseph Smith foi um profeta e
instituiu o casamento plural por meio de revelação. E foi por essa
razão que tantos santos dos últimos dias se engajaram com essa
prática até seu encerramento definitivo em 1904, ao menos nas
comunidades que seguiam a liderança da Primeira Presidência da
Igreja SUD. Contudo – voltando aos artigos –, quando os mesmos
tratam do Manifesto de 1890, no qual Wilford Woodruff, então
Presidente da Igreja (isto é, “Profeta”), se manifesta a favor
da obediência às leis que proibiam o casamento plural nos Estados
Unidos, o mesmo é identificado como um documento inspirado – não
como uma “revelação”.
Obviamente,
a escolha cuidadosa dos termos usados nos artigos é uma
característica da preocupação tida pela liderança da Igreja SUD
com correção doutrinária. Os artigos, mesmo com todo esse cuidado,
já são suficientes para causar um debate sobre as contradições
entre vários ensinamentos da Igreja SUD em suas primeiras décadas –
contradições que são justificadas nos artigos mesmo que não sejam
citadas explicitamente. Seja como for, os artigos, apesar de todos os
seus problemas e limitações, são interessantíssimos para qualquer
um que se interesse pela história da corrente do restauracionismo
liderado por Joseph Smith; mas eu diria que são ainda mais
interessantes para quem se interessa pelo “mormonismo” de hoje –
já que, para mim, eles falam muito mais sobre a Igreja SUD de hoje,
e suas preocupações políticas, do que dos antigos santos dos
últimos dias.
Provavelmente,
retornarei a este tema depois!