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sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Artigos sobre o Casamento Plural entre os "mórmons" no site oficial da Igreja SUD: lendo algumas das entrelinhas


Seus professores provavelmente não discutirão isso em suas aulas de História ou Teologia na universidade; e, se você for um “santo dos últimos dias”, possivelmente se ofenderá com meus comentários aqui. Ofender gratuitamente não é minha intenção, mas, como um pesquisador de Teologia Histórica, não posso evitar fazer breves comentários sobre o assunto aqui.

É bom afirmar desde agora que minha leitura é, obviamente, completamente distinta daquela que seria feita por um santo dos últimos dias que, provavelmente, não questionaria a autoridade e intenções de sua igreja e de sua liderança. Também é importante deixar claro que não sou um inimigo da tradição ou da Igreja SUD, logo, não invisto meu tempo em ataques à fé dos santos dos últimos dias – meus comentários aqui dizem respeito apenas à maneira como a Igreja SUD lida com sua história. A “historiografia” oficial da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias foi e continua a ser problemática, mas o passo tomado pela mesma esta semana toma um (meio)caminho até certo ponto surpreendente em sua abordagem de sua própria história – e é sobre isso que falo aqui.

Como alguém que se ocupa do estudo da história das ideias teológicas nos Estados Unidos do século XIX, tratar de assunto tão controverso quanto o tema do chamado “casamento plural” na tradição dos “santos dos últimos dias” (chamados popularmente de “mórmons”) é uma tarefa complicada. E é complicado por me forçar a, provavelmente, ofender convicções religiosas de alguns amigos membros da Igreja SUD (a sediada em Salt Lake City), para quem a “profecia” é algo factual; e também complicado por correr o risco de confundir um público não familiarizado com o tema, quando associam a crença de grupos como a “Comunidade de Cristo” ou outros “santos” (não tão comuns no Brasil), com as crenças e práticas da Igreja SUD – incluindo a forma como esses, os “santos dos últimos dias”, lidam com sua história.

Nesta última quarta-feira, 22 de outubro de 2014, foram publicados no site oficial da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (que aqui chamo de Igreja SUD), em inglês, três artigos tratando sobre o tema do “casamento plural”. Um introdutório é chamado [1] “Plural Marriage in the Church of Jesus Christ of Latter-day Saints” [Casamento Plural na Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias], o segundo chama-se [2] “Plural Marriage in Kirtland and Nauvoo” [Casamento Plural em Kirtland e Nauvoo], e outro chamado [3] “The Manifesto and the End of Plural Marriage” [O Manifesto e o Fim do Casamento Plural]. Esses têm causado um rebuliço nas discussões sobre o tema desta prática de muitos “mórmons” no século XIX. Esses artigos adicionam informações àquelas já disponibilizadas num artigo mais antigo, chamado [4] “Plural Marriage and Families in Early Utah” [Casamentos e Famílias Plurais nos Primórdios de Utah]. (A numeração é minha e serve apenas para facilitar minha referência a esses documentos mais adiante. Para evitar a repetição de seus títulos os chamarei de “artigo 1” etc.)

Os artigos, em minha opinião, apesar de expressarem um avanço em termos de reconhecimento da prática e de suas implicações sexuais, estão longe de ser uma obra historiográfica desatrelada do interesse em proteger a imagem da igreja SUD nas disputas políticas que se desenvolvem hoje nos Estados Unidos – em grande parte, após as discussões que se levantaram nos meios de comunicação americanos após a candidatura de Mitt Romney à Presidência dos Estados Unidos (e sua possível recandidatura nas próximas eleições). E seria tolice esperar que uma instituição que sempre desempenhou um papel tão autoritário, ao menos em minha opinião, na forma como se lida com sua história – por razões que seriam deveras complicadas para discutir aqui – mudasse sua atitude corporativa agora (e isso – quando olhado de fora, por pessoas que, como eu, se esforçam para ser mais compreensivas – é o desperdício duma grande oportunidade).

A primeira frase do artigo 1 já indica o caminho seguido por seu(s) autor(es):

Os santos dos últimos dias acreditam que o casamento de um homem e uma mulher é a lei permanente de casamento do Senhor.

Uma frase aparentemente tão inocente como esta explicita uma retórica anacrônica sobre um tema tão essencial para a história do movimento dos santos dos últimos dias. A frase aponta para uma preocupação com o presente, e não em esclarecer de forma honesta o passado. A declaração é tanto uma resposta a possíveis acusações desinformadas de que os “mórmons” sejam hoje polígamos, quanto uma afirmação da posição da Igreja SUD quanto à presente questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo (tanto nos Estados Unidos quanto em outros países). Uma afirmação, em minha opinião pessoal, desnecessária ao texto, se o que ele intentasse fosse o esclarecimento do passado da Igreja SUD.

Para qualquer pesquisador sério da história da tradição SUD, será importante observar algumas afirmações feitas nos textos, que corroboram aquilo defendido há muito por historiadores do movimento SUD não ligados à Igreja de Salt Lake City. É importante, por exemplo, a afirmação, no artigo 2, de que

A revelação sobre o casamento plural não foi escrita até 1843, mas seus primeiros versos sugerem que parte dela emergiu do estudo do Antigo Testamento por Joseph Smith em 1831. Pessoas que conheciam Joseph bem afirmaram, mais tarde, que ele recebera a revelação naquela época. […]

Mais adiante, no mesmo artigo 2, afirma-se o já conhecido fato de que Joseph Smith já havia “se casado pluralmente” com outra mulher na década de 1830 (supostamente obedecendo ao que lhe ordenara um anjo), ou seja, antes da revelação de 1843. Essa mulher, Fanny Alger, trabalhava na casa dos Smith durante a época em que moravam em Kirtland. O casamento acabou em separação e, após essa separação, Joseph só voltaria a tratar do tema em Nauvoo, na década seguinte.

O(s) autor(es) parece(m) se esforçar para evitar que a imagem de seu profeta – Joseph Smith – seja manchada de alguma forma e, para isso, recorrem a uma contextualização histórica, mesmo que limitada, das práticas matrimoniais no século XIX. Esse esforço se evidencia, por exemplo, quando se discute, no artigo 2, as práticas do próprio Joseph Smith:

A maioria daquelas seladas a Joseph Smith tinham entre 20 e 40 anos de idade na época de seu selamento a ele. A mais velha, Fanny Young, tinha 56 anos. A mais nova foi Helen Mar Kimball, filha dos amigos de Joseph, Heber C. [Kimball] e Vilate Murray Kimball, que foi selada a Joseph alguns meses antes de completar 15 anos. Casamento numa idade como essa, inapropriado para os padrões de hoje, era legal naquela época, e algumas mulheres se casavam em meados de sua adolescência. Helen Mar Kimball falou de seu selamento a Joseph como sendo “apenas para a eternidade”, sugerindo que o relacionamento não envolvia relações sexuais. Após a morte de Joseph, Helen se casou novamente e tornou-se uma articulada defensora do casamento plural.

Para mim, é marcante como se tenta diminuir o impacto da informação da idade de Helen, optando-se pela expressão “alguns meses antes de completar 15 anos”, em vez de simplesmente dizer que ela tinha 14 anos de idade. Logo em seguida, se contextualiza a questão da idade dos casamentos naquele ambiente de fronteira, ao mesmo tempo em que tenta-se poupar a imagem de Joseph, citando a afirmação de Helen de que seu selamento tivera sido “apenas para a eternidade”.

É importante, talvez, esclarecer aqui alguns dos termos presentes no artigo 2, citando a explicação dada no próprio texto:

Durante a era na qual o casamento plural foi praticado, os santos dos últimos dias distinguiram entre selamentos para o tempo e a eternidade e selamentos apenas para a eternidade. Selamentos para o tempo e para a eternidade incluíam compromissos e relacionamentos durante esta vida, geralmente incluíam a possibilidade de relações sexuais. Selamentos apenas para a eternidade indicavam relacionamentos na próxima vida apenas.

Os artigos trazem, além de várias informações que a Igreja SUD evitou discutir com o público não “mórmon” por tanto tempo (apesar de todas elas já serem conhecidas há muito), questões teológicas importantes, talvez invisíveis aos olhos leigos. Nesses artigos, a instituição e prática subsequente do casamento plural é identificado como fruto de “revelação”. Na tradição SUD, o “Profeta” (=Presidente da Igreja) recebe revelação direta de Deus para guiar a igreja; Joseph Smith foi um profeta e instituiu o casamento plural por meio de revelação. E foi por essa razão que tantos santos dos últimos dias se engajaram com essa prática até seu encerramento definitivo em 1904, ao menos nas comunidades que seguiam a liderança da Primeira Presidência da Igreja SUD. Contudo – voltando aos artigos –, quando os mesmos tratam do Manifesto de 1890, no qual Wilford Woodruff, então Presidente da Igreja (isto é, “Profeta”), se manifesta a favor da obediência às leis que proibiam o casamento plural nos Estados Unidos, o mesmo é identificado como um documento inspirado – não como uma “revelação”.

Obviamente, a escolha cuidadosa dos termos usados nos artigos é uma característica da preocupação tida pela liderança da Igreja SUD com correção doutrinária. Os artigos, mesmo com todo esse cuidado, já são suficientes para causar um debate sobre as contradições entre vários ensinamentos da Igreja SUD em suas primeiras décadas – contradições que são justificadas nos artigos mesmo que não sejam citadas explicitamente. Seja como for, os artigos, apesar de todos os seus problemas e limitações, são interessantíssimos para qualquer um que se interesse pela história da corrente do restauracionismo liderado por Joseph Smith; mas eu diria que são ainda mais interessantes para quem se interessa pelo “mormonismo” de hoje – já que, para mim, eles falam muito mais sobre a Igreja SUD de hoje, e suas preocupações políticas, do que dos antigos santos dos últimos dias.

Provavelmente, retornarei a este tema depois!

+Gibson

POST-SCRIPTUM: A IJCSUD publicou a tradução oficial dos artigos citados em língua portuguesa. Os mesmos encontram-se nos seguintes links:

O Casamento Plural em Kirtland e Nauvoo
O Casamento Plural e as Famílias Polígamas nos Primórdios de Utah

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