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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O “tiro no pé” do Mormonismo ortodoxo em sua tentativa de silenciar o corajoso John Dehlin: quando discordar respeitosamente torna-se uma declaração de guerra


Gibson da Costa

[…] Os mórmons devem ser tratados como inimigos, e devem ser exterminados ou expulsos do estado, se necessário, para a paz pública – seus ultrajes estão além de qualquer descrição. […]

(Ordem Executiva nº 44, do Governador Lilburn W. Boggs, do Estado de Missouri – 27 de outubro de 1838)


Antes que você se choque com a citação acima nesta página, é bom que eu esclareça que não a incluí aqui por concordar com suas palavras. Se você não tiver ligação com a tradição dos “santos dos últimos dias” (SUD), conhecida popularmente como “mormonismo”, nem dedica-se ao estudo da tradição a partir de seu exterior, possivelmente desconhece a história de perseguição e sofrimento que seus primeiros adeptos sofreram. Não é exagero afirmar que os “mórmons” consistiram o grupo religioso mais brutalmente perseguido na história dos Estados Unidos – o que, de certa forma, ajuda a compreender seu senso de vitimização e exclusão enraizada especialmente na memória das comunidades “mórmons” de Utah e de estados vizinhos, e a cultura de intolerância institucional à não-conformidade doutrinária ou hierárquica n' A Igreja de Jesus Cristo dos Santos do Últimos Dias (AIJCSUD) [sim, o artigo definido feminino singular é parte do nome da denominação, por isso a não contração aqui].

Hoje, a vítima dessa cultura é John Dehlin, um prominente intelectual e blogueiro SUD que ousa defender publicamente posições sobre o tratamento de mulheres, de minorias étnicas e sexuais e de intelectuais, na AIJCSUD, que entram em conflito com as práticas da denominação com relação aos não conformistas em seu seio.

No próximo dia 8 de fevereiro, Dehlin será levado diante dum Conselho Disciplinar de sua igreja para ser julgado por sua “apostasia” (heresia). Seus líderes o julgarão com base em sua auto-apresentação, em sua página na internet, onde afirma:

Tenho um profundo amor pela igreja SUD, por seus membros e por seus ex-membros. Me considero como um mórmon não ortodoxo e não ortopráxico. Acredito em muitas dos ensinamentos morais centrais e não-distintivos do Mormonismo (por exemplo, amor, generosidade, caridade, perdão, fé, esperança), mas ou tenho sérias dúvidas sobre, ou não mais acredito em muitas das reivindicações de verdades fundamentais da igreja SUD (por exemplo, o Deus antropomórfico, “única igreja verdadeira com autoridade exclusiva”, que o atual profeta da igreja SUD recebe comunicações privilegiadas de Deus, que o Livro de Mórmon e o Livro de Abraão são traduções, poligamia, ensinamentos racistas no Livro de Mórmon, que ordenanças são exigências para a salvação, obras em favor dos mortos).
[…]
Creio que muitos líderes da igreja SUD têm boas intenções, mas me perturbo profundamente por seu tratamento histórico e atual das mulheres, de minorias raciais e sexuais, e de cientistas/intelectuais. Perturbo-me também por sua abordagem histórica e atual à fé/dúvida, sexualidade, pela busca de vastos interesses comerciais juntamento com sua não divulgação de seus dados financeiros, coerção/envergonhamento de membros por meio do impedimento de privilégios no templo e no sacerdócio, e a atual mentalidade de adoração à liderança na igreja SUD. Creio que o desencorajamento de críticas a líderes da igreja SUD é, possivelmente, o aspecto mais pernicioso e prejudicial da cultura da igreja SUD – e que a luz do sol e a candura sejam os melhores desinfetantes.

Dedicarei os anos restantes de minha vida a: 1) ajudar a minimizar o dano, e maximizar o bem, nas culturas secular e religiosa, e 2) ajudar aqueles que estão deixando a ortodoxia religiosa a encontrar alegria, sentido e satisfação em suas vidas, famílias e comunidades – seja dentro ou fora duma estrutura eclesiástica formal.
[…]

Esse é o pecado de John Dehlin. Sua grande apostasia e rebelião!

O julgamento perante um Conselho Disciplinar, a propósito, é um procedimento comum a todos aqueles que são acusados de pecados sérios no “mormonismo”, o que inclui o quase imperdoável pecado de questionar a doutrina ou discordar da hierarquia da AIJCSUD. Ocorre sob a presidência do Presidente de Estaca (“Estaca” é o correspondente a uma diocese nas tradições anglicana, luterana ou católica, por exemplo). A punição pode chegar ao máximo de excomunhão – que, na teologia mórmon, significa perda da “exaltação”, caso não haja um arrependimento pleno, e o isolamento social pleno (já que um excomunhado frequentemente é discriminado por seus amigos e familiares SUD – ou seja, como diria uma amiga minha que já passou por isso, “o mal é cortado pela raiz”).

Antes que você questione as motivações de Dehlin, vale a pena saber quem ele é.

Nascido na “mormoníssima” Boise, em Idaho – apesar de criado no Texas –, Dehlin vem duma tradicional família SUD. Após servir como missionário na Guatemala para sua igreja (1988-1990), frequentou a BYU (Universidade Brigham Young), onde se formou em Ciência Política. Depois de formado, trabalhou para várias empresas da área de computação, incluindo a Microsoft, e para a própria AIJCSUD. Trabalhou, ainda, para a Universidade Estadual de Utah e para o MIT, no desenvolvimento e coordenação de programas de educação online.

Na Universidade Estadual de Utah, também fez seu mestrado, pesquisando o desenvolvimento dum tratamento para o TOC baseado na experiência religiosa, com foco na população mórmon de orientação gay que se submetia a tentativas de mudança de orientação sexual. E, hoje, termina seu doutorado em Psicologia Clínica e Aconselhamento, aprofundando sua pesquisa sobre a relação entre religião e saúde mental.

É casado com Margaret – os dois foram ortodoxamente “selados” num templo SUD –, e é pai de três filhas e um filho.

Ele tem sido um personagem central no movimento de levar o “mormonismo” para o universo das discussões online com aqueles mórmons interessados em discutir a história e as ideias da tradição SUD. Seu trabalho tornou-se, desde o início dos anos 2000, um suporte especialmente àqueles SUD que se viam excluídos por não poderem discutir suas dúvidas, nem encontrarem uma rede de apoio dentre seu próprio povo. Participou na organização duma rede de mórmons para apoiarem jovens gays mórmons, que sofrem uma alta incidência de suicídio, especialmente em Utah e estados vizinhos. Tornou-se um bastião de esperança para muitos em sua própria denominação.

Dehlin disse hoje numa entrevista ao The Salt Lake Tribune que se for excomunhado, respeitará a decisão da igreja. Para ele, a igreja tem o direito de decidir quem pode continuar a ser membro.

O que os poderosíssimos líderes mórmons de Utah não se dão conta, entretanto, é que sua já longa perseguição a John Dehlin – baseada numa afirmação feita fora da igreja por um membro que não ocupa posições de liderança na mesma – poderá tornar-se um “tiro no pé” da própria igreja SUD. Imaginem ter de explicar isso ao eleitorado dos Estados Unidos do século XXI, se Mitt Romney se pré candidatar, mais uma vez, a Presidente dos EUA... É aguardar e ver o que acontece!

+Gibson

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Verdade e questões complexas: uma resposta a Márcia


[Esta é uma resposta à longa mensagem que recebi da leitora Márcia. Como em seu e-mail ela aborda muitos diferentes temas – que incluem teologia, educação e política –, dividirei minhas respostas nos blogs apropriados (aos quais ela faz referência em sua mensagem). Aqui, obviamente, responderei a algumas de suas questões teológicas (talvez, tenha de fazê-lo em mais de uma postagem).]

Cara Márcia,

E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32)

Como você mesma percebeu, rejeito a noção de que apenas uma tradição cristã seja a “verdadeira”. Se eu a defendesse, minha própria vida religiosa testificaria contra mim. Como já escrevi aqui muitas vezes, estou ligado a diferentes tradições cristãs, tendo, inclusive, sido ordenado em diferentes comunhões. Assim, não posso, honestamente, dizer que minha expressão do Cristianismo (o meu protestantismo arminiano-unitarista-anglocatólico-luterano) seja a única “verdade”, enquanto a fé de um católico romano ou de um protestante evangelical seja “falsa”. Rejeito terminantemente esta visão exclusivista.

Não, não me envergonho de minha fé. Mas também não me envergonho de usar minha inteligência. A ideia de que haja um Cristianismo imutável, que sempre continuou o mesmo, sempre foi e ainda é uma afronta à minha inteligência. É verdade que há traços de continuidade nas tradições cristãs – por exemplo, ainda continuamos a recitar o Pai Nosso, o Credo Apostólico e a ler porções da Bíblia em celebrações eucarísticas (nas igrejas católicas, ortodoxas, anglicanas, luteranas, metodistas e em algumas outras tradições protestantes) –, mas, ao mesmo tempo, há mudanças. No exemplo que citei, todos aqueles textos passaram por transformações ao longo dos dois milênios da Igreja cristã. Os textos que recitamos e lemos hoje (o Pai Nosso, o Credo Apostólico e a Bíblia) não são os mesmos de suas versões “originais”.

Sim, para mim, o Cristianismo é a “minha verdade”. E é a “minha verdade”, porque outras pessoas encontram sua porta para Deus – ou sua “salvação”, se preferir – em outras tradições. Reconheço a sinceridade dessas pessoas. E como confio em Deus que é Amor, em Deus que é Verdade, em Deus que é Compaixão, e acredito que essa coisa que chamamos de “religião” é um artefato humano, confio que quando o homem busca o Divino, o encontrará. Deus não é judeu, nem cristão, nem muçulmano, nem budista, nem espiritualista, nem candombleísta, nem umbandista, já que não é humano – para mim, Deus é uma realidade que ultrapassa minha compreensão, não é um ente antropomorfo.

Reconhecer a sinceridade da fé de outras pessoas e que elas podem encontrar o Divino em suas tradições, contudo, não faz com que o que elas acreditam se torne “verdade” para mim. Tenho minhas próprias convicções que podem ser incompatíveis com o que outras pessoas acreditam – e vice versa. E é nesse sentido que a “verdade” é relativa. Quando falo na relatividade da “verdade” não quero dizer que não haja verdade absoluta no universo – obviamente, há verdade e falsidade, certo e errado, apesar de nem sempre podermos saber qual é qual. Essa relatividade se refere não à verdade em si, mas à percepção que temos daquilo que chamamos de verdade. Um exemplo simples disso está na percepção que diferentes pessoas numa família com pais divorciados podem ter das razões que causaram o fim do casamento. Frequentemente, os dois cônjuges terão sua própria explicação diferente da do outro, e cada um dos filhos ou filhas terá sua própria visão. Ou seja, cada um terá sua “verdade”, que nem sempre, necessariamente, corresponderá à factualidade (ao que de fato aconteceu) – isto é, em minha visão, inerente ao ser humano.

Eu, por exemplo, não acredito em coisas como reencarnação ou possessão. Para mim, essas são crenças absurdas. Elas violam uma série de aspectos de minha compreensão teológica do que seja um ser humano e do que seja a justiça divina. Também não acredito que Jesus tenha vindo ao mundo para servir de sacrifício por meus pecados (refiro-me, especificamente, às chamadas "teoria do resgate" e "teoria da substituição penal"). Essa é uma crença tão absurdamente ofensiva à minha compreensão de Deus e à minha moral que não poderia aceitá-la como verdade factual – apesar de poder servir como metáfora em algumas situações. Não aceito essas crenças que são tão comuns para diferentes grupos religiosos. Não as aceito, mas aceito a sinceridade daqueles que nelas acreditam; aceito a liberdade de quem nelas acreditam.

Assim, honestamente, não aceito como válidas para mim mesmo todas as crenças abraçadas por outras pessoas. Há, em minha visão de mundo, lícito e ilícito, verdade e mentira, aceitável e inaceitável; e mesmo as pessoas que se digam mais abertas, adogmáticas e tolerantes também terão, no fundo, um senso que limita sua aceitabilidade da verdade alheia – seja esta uma verdade religiosa, filosófica, política etc. E eu, apesar de me considerar aberto à diferença e tolerante, não poderia ser diferente.

Nossas convicções (as minhas, as suas e as de todas as outras pessoas), entretanto, não estão esculpidas em diamantes. Elas, esperançosamente, mudam porque nós mudamos. Podemos até não perceber, mas ao menos pequenas porções do que acreditamos passam por transformações ao longo do tempo – se isso não acontece, então ai de nós!

Você fez um comentário sobre a hipocrisia. Bem, não acredito que a maioria de nós seja hipócrita. Acredito que sejamos contraditórios. Ser hipócrita, para mim, implica uma voluntariedade em agirmos diferentemente daquilo que professamos (ou seja, contradizer o que professamos por livre e espontânea vontade). Ser contraditório, por outro lado, implica que não somos perfeitos e que, por isso, nem sempre percebemos que nossas ações contradizem aquilo que professamos. Porque reconheço isso em mim mesmo, me esforço para dar este crédito àquelas pessoas que pregam uma coisa e, algumas vezes, fazem outra. Obviamente, há hipócritas, mas penso que sejam uma minoria.

Sou, como todos os demais humanos, imperfeito, limitado, contraditório. O que isso significa para minhas crenças é que não sou capaz de dar a mim mesmo respostas definitivas para meus questionamentos morais. Assim, muitas vezes, haverá contradições entre diferentes aspectos de minha visão de mundo.

Assim – pensando no seu questionamento acerca das drogas, do aborto, do suicídio e da pena de morte (questões extremamente complexas para serem esgotadas ao longo de nossa existência) –, veja o quão difícil é conciliar todos os campos de minha visão de mundo (a teológica com a política e com a científica, por exemplo):

Teológica e moralmente, creio que a vida seja um dom divino do qual somos apenas mordomos (cuidadores). Nós não criamos a vida. A vida não é uma produção humana que deriva apenas da ação e da vontade humanas. Ela não está restrita à matéria. Não sei explicar o que ela seja – isto estaria além de minha capacidade –, mas por mais que seja um fenômeno químico-biológico, é também um fenômeno psicológico (espiritual). Por isso ela é sagrada. Voluntariamente encerrar a vida, de outro ou de si próprio, é violar sua sacralidade. Por isso, geralmente, me oponho a tudo aquilo que perceba como uma violação à sacralidade da vida (e os quatro temas que usou como exemplo se encaixam nisso).

Politica e filosoficamente, acredito na liberdade do indivíduo. Acredito no direito do indivíduo de acreditar ou desacreditar no que quiser, de ir e vir, e de fazer com sua vida (desde que não fira a outrem) o que bem entender. Isso significaria que se alguém quisesse usar drogas ou se suicidar, isso seria seu problema. Entretanto, como cristão, aceito ser um cuidador de meu irmão e um protetor da vida – desta forma, não posso, conscientemente, legitimar algo que compreendo como uma violação daquilo que considero mais sagrado (a vida humana). Assim, a fé e a política se contradizem em algumas encruzilhadas, e aí emerge aquele lado contraditório da vida em sociedade, que você classificou como hipócrita.

Pensemos, de forma bem simplista, no caso do uso recreativo de certas drogas. Suponha que liberemos, por exemplo, o uso de cocaína. Possivelmente, mais dependentes – já que teriam um acesso facilitado a esta droga –, mais enfermidades em decorrência do uso, custo maior com tratamento por parte do Estado (já que o Brasil tem um sistema público de saúde), preço pago por contribuintes que não concordam com essa liberação!... Percebe a equação?... Não se trata apenas da liberdade individual, como os militantes gritam aos quatro ventos; trata-se do bem-estar e da identidade moral da sociedade como um todo (já que envolve finanças públicas, segurança, violência, e princípios morais dominantes na sociedade). Isso seria diferente se você ou eu, por exemplo, fizéssemos o que quiséssemos num espaço isolado dos outros cidadãos; mas não vivemos isoladamente, vivemos em sociedade – logo, tudo isso diz respeito à sociedade como um todo.

Mas, e se acrescentássemos outro dado a esta equação? O que dizer dos militares e policiais que trabalham armados e, involuntariamente, matam? Jurídica e socialmente autorizados e legitimados ou não, fazem uso de violência para desempenharem suas funções. Como encaixá-los nessa perspectiva de respeito à vida?... Posso dar uma resposta política convincente a esta questão, mas ela, assim mesmo, aparentemente entraria em conflito com minha resposta teológica!... O que seria então: hipocrisia ou contradição?

No que tange à pena de morte, que eticidade há em matar alguém por este(a) haver matado outra pessoa? Como poderíamos manter nossas cabeças erguidas diante da luz do sol, se não nos mostrássemos moralmente superiores ao mal?... Mas, por outro lado, como podemos dar liberdade a alguém que matou inúmeras pessoas e que, eventualmente, caminhará livremente pelas ruas? Que resposta moral podemos dar a este problema?... Eu, honestamente, não sei, e duvido que outra pessoa o saiba!

É por isso que sempre digo que não aceito respostas simplistas a questões como essas. Não aceito as respostas absolutistas dadas por fanáticos religiosos ou fanáticos políticos. E não as aceito por saber que quando nos deslocamos um pouco de nossos lugares confortáveis, passamos a ver as questões de outra forma, a partir de outra perspectiva.

O que posso fazer, e o que espero me esforçar para fazer, é ser honesto comigo mesmo e reconhecer minhas limitações; reconhecer que não conheço todas as respostas, que não conheço a “verdade plena” das coisas.

Paz!

+Gibson

domingo, 18 de janeiro de 2015

Muçulmanos e felizes!


Quando os “gênios” da televisão – sim, estou sendo sarcástico! – falam do Islã como se este vivesse intrinsecamente em conflito com a “cultura secular”, não se dão conta de que não há apenas um único Islã, há diferentes vozes dentro desta tradição de fé, há conflitos entre diferentes interpretações no interior desta religião. Talvez não dissessem tantas bobagens, maquiadas por uma suposta sofisticação intelectual, se se dessem ao trabalho de ler mais, se informar mais, e, principalmente, conhecer mais muçulmanos!

Um grupo de muçulmanos britânicos – seguido por outros ao redor do mundo – há cerca de um ano fez um vídeo no qual cantam e dançam ao som de “Happy”, de Pharrell Williams, e que causou reações que mostram essa multiplicidade de vozes no interior do Islã (já que houve protestos por parte de grupos, digamos, mais “tradicionalistas”)...

O fato é que o Islã possui tradições de radicalmente “conservadoras” (como o wahhabismo saudita) a radical ou moderadamente “liberais” (como os movimentos “progressista”, “liberal” e “modernista” na Indonésia, no Reino Unido, na Rússia, na Turquia, no Canadá e nos Estados Unidos). Assim, é uma desonestidade intelectual retratar todos os muçulmanos como fanáticos – da mesma forma que o seria fazê-lo com judeus, cristãos, ou qualquer outra fé.

Então, em homenagem a todos os muçulmanos que fizeram e fazem parte de minha vida, deixo você com a felicidade de diferentes muçulmanos, que contradizem aquilo que a islamofobia desinformada quer que acreditemos!



sábado, 10 de janeiro de 2015

A onipresença da polarização na relação com “o outro”




Ela parece estar em todos os lugares. É só estar atento ao que se diz lá fora. A polarização parece, muitas vezes, haver se tornado o termo que resume bem o espírito vocalizado nos meios de comunicação e nos púlpitos políticos e religiosos mundo afora.

Obviamente, nos negamos a reconhecê-la como parte de nosso sofisticado imaginário (pós)moderno – mas, por mais que neguemos sua presença, ela está lá, envergonhando nossa suposta capacidade de racionalizar, de forma refinada, nossa realidade social. Gostemos ou não, a onipresente polarização nos domina.

Defrontadas com uma perceptível ameaça externa, as pessoas tendem a se esquecer de suas diferenças e a formar um grupo unificado. Esse processo de coesão é uma característica importantíssima da polarização. A melhor representação pictórica disso encontra-se nas imagens do atual e do anterior presidentes franceses, Hollande e Sarkozy, juntos esta semana. As diferenças são engavetadas, mesmo que apenas temporariamente, em nome dum objetivo supostamente comum – no caso dos franceses, a “guerra ao terror”.

As imagens dos protestos na Alemanha contra a presença de imigrantes muçulmanos no país – que, confesso, me aterrorizaram, por se parecerem com protestos semelhantes aos do nascente movimento nazista no século XX – apontam para outra característica dessa polarização de nosso tempo: a estereotipagem do outro. A mesma característica, aliás, presente no Brasil durante as campanhas eleitorais, e mesmo depois. Grupos rivais que adotam um conjunto de opiniões exageradamente simplificadas sobre as supostas características de seus oponentes, presumindo que todos eles compartilhem um conjunto de características indesejáveis. É só escolher o grupo simplificado: a direita; a esquerda; os fundamentalistas; os ateus; os evangélicos; os muçulmanos; os judeus; os homossexuais; os heterossexuais; os negros; os brancos; os homens; as mulheres; os ricos; os pobres; os brasileiros; os norte-americanos – e lembrar-se dos adjetivos que frequentemente são associados a esses “grupos”.

Subjacente ao desenvolvimento daquelas ideias estereotipadas sobre o outro, além dos demais aspectos da polarização, encontra-se o fenômeno da percepção seletiva. Ou seja, tendemos a ver e ouvir aquilo que esperamos ver e ouvir, especialmente quando nossas emoções encontram-se à flor da pele. Baseados no que percebemos, frequentemente reagimos de formas antagônicas aos outros, e eles, como resposta, agem de formas tais que acabam por confirmar nossas expectativas. E quanto mais intensas as emoções, maiores são as probabilidades de isso ocorrer. Mais uma vez, é só pensar no que ocorreu no Brasil durante as últimas campanhas eleitorais e imediatamente após as eleições: a ameaça da “direita” no discurso de alguns, aparentemente confirmada, posteriormente, por marchas que pediam o retorno do regime militar!

Mas a tendência de grupos polarizados a desenvolverem ideias exageradamente simplificadas (estereótipos) não se limita apenas a ideias sobre seus oponentes, também inclui estereótipos sobre si próprios. Assim, aquilo que os oponentes apontam como características indesejáveis, muitas vezes, transformam-se em ideias e racionalizações simplificadas (ideologias) que justificam os próprios sentimentos ou comportamentos. E porque as ideias são exageradamente simplificadas e imprecisas, a ideologia unifica pessoas que, de outra forma, discordariam entre si. Presos às teias da polarização e suas emoções auxiliares, poucos se dão ao trabalho de comparar a ideologia à realidade.

Quando a polarização domina, o desenvolvimento do comportamento “defensivo” de cada grupo torna-se padrão. O processo toma forma num espiral de ação-reação, que pode até resultar, em casos extremos, em muitos “defensores” mortos. E, obviamente, o elemento crucial nesse processo não é “a verdade” sobre o outro ou sobre si, mas aquilo que se pense ser verdadeiro sobre o outro e sobre si mesmo.

O espiral da ação-reação e a percepção das ações do oponente como ofensivas não são, necessariamente, processos irracionais. Como cada grupo vê o outro como uma ameça real, e a polarização se intensifica, o próximo passo defensivo lógico se torna um “ataque preventivo”. Por exemplo, um exército que se concentre numa fronteira para evitar uma invasão se parece muito com um exército que se prepara para invadir!... Não muito diferente da forma como nossas sociedades têm se comportado interna e externamente – só temos de nos dar ao trabalho de observar.

...Tornamo-nos, infelizmente, escravos dos processos de polarização em nossas relações com “o outro”. A polarização tornou-se onipresente!

+Gibson

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

O espetáculo do terror e o assassínio de nossa humanidade


Qualquer interessado que se dê ao trabalho de pesquisar cuidadosamente o tema saberá que não há uma definição globalmente aceita do que seja terrorismo. Isso faz com que, como escrito por Brian Jenkins ainda em 1974, o termo seja usado promiscuamente, aplicado a todo tipo de violência que, estritamente falando, não seria terrorismo. Todas as mais frequentes definições de terrorismo, entretanto, concordam que o mesmo seja um instrumento utilizado por certos atores para atingir certos objetivos, espalhando medo e ansiedade por meio de atos violentos; e esses atos violentos seriam parte do instrumento, e não o objetivo per se (JENKINS, 1974; HOFFMAN, 1998; GANOR, 2005; NEUMANN, SMITH, 2008).

Se nos ancorássemos à antiga perspectiva de Jenkins, aceita até 2001, abraçaríamos aquela sua conhecida ideia de que terroristas queririam muita atenção e não muitas mortes. Hoje, apesar de haver mudado sua perspectiva acerca do número de mortes desejado por terroristas, o autor – e todos os demais especialistas em terrorismo do mundo – continua a defender sua crença de que a publicidade do ato seja uma característica central de qualquer ação terrorista. E a importância da publicidade reside no fato de esta servir de meio para alastrar o medo e a ansiedade generalizada.

Pare e pense, por um instante, no caso francês. Foi uma tragédia humana – e, para mim, tragédia em absolutamente todos os sentidos (no que tange às vítimas, à sociedade espectadora e aos próprios criminosos). Uma tragédia que nenhum de nós – supondo que você pense como eu – gostaria de ver repetir-se em lugar nenhum do globo.

Pare e pense, agora, na cobertura dada pela mídia global à “caçada” policial a esses criminosos. Diferentes jornais, revistas, redes de televisão e rádio, do mundo inteiro, têm feito seu trabalho e divulgado as notícias relativas ao caso. Mas a cobertura – que, sim, deve acontecer, especialmente num caso em que profissionais da imprensa foram vitimados –, principalmente quando feita de forma sensacionalista, não deixa de contribuir para o objetivo final de qualquer ação terrorista: conseguir publicidade suficiente para criar um temor e ansiedade generalizados. A notícia, assim, tão essencial à liberdade e à democracia, transforma-se numa espada de dois gumes: informa-nos ao mesmo tempo em que nos torna mais uma peça no tabuleiro do jogo do terror (cujo objetivo é vencer-nos pelo medo).

E a imposição de medo intentada por terroristas tem feito mais danos às liberdades civis, naquilo que chamam de Ocidente, do que tem causado mortes diretas. A maior morte causada pelo terrorismo nas sociedades ocidentais têm sido o assassínio das antigas ilusões de liberdade e igualdade sob a lei, como uma forma de assassínio de nosso senso moderno de humanidade. Pergunte isso a qualquer muçulmano na Alemanha, França, Grã-Bretanha ou Estados Unidos, só para citar alguns casos. Essas pessoas, inocentes dos crimes cometidos pelos supostos jihadistas que vimos nos noticiários nos três últimos dias, são as que antecipadamente já pagam o preço, tendo agredidas suas dignidades e liberdades. Esta é uma cena que tem se repetido desde, pelo menos, 2001. Soa, ironicamente, como uma grande vitória dos terroristas.

Hoje mesmo, mais 7 pessoas morreram em outro atentado em Islamabad, no Paquistão. Onze haviam morrido ontem, em outra região do país. Uma bomba explodiu dentro duma mesquita no Iraque – algumas dezenas de mortos. Você viu isso ser relatado em algum noticiário de onde você está? Por que não? Por que isso não afeta nossa sensibilidade? Isso não é uma afronta ao nosso senso de liberdade e dignidade? Não é uma afronta à nossa humanidade?... Só alguns pensamentos para terminar minha sexta-feira!

+Gibson


Referências:

GANOR, B. The Counter-Terrorism Puzzle: a Guide for Decision Makers. New Brunswick: Transaction, 2005. p.1-24.

HOFFMAN, Bruce. Inside Terrorism. Nova York: Columbia University Press, 1998. p.13-44.

JENKINS, Brian. International Terrorism: a new kind of warfare. Santa Monica: RAND, 1974.

NEUMANN. Peter R.; SMITH, Michael Lawrence Rowan. The Strategy of Terrorism: how it works, and why it fails. Nova York: Routledge, 2008. p.1-11.