Gibson
da Costa
[…]
Os mórmons devem ser tratados como inimigos, e devem ser
exterminados ou expulsos do estado, se necessário, para a paz
pública – seus ultrajes estão além de qualquer descrição. […]
(Ordem
Executiva nº 44, do Governador Lilburn W. Boggs, do Estado de
Missouri – 27 de outubro de 1838)
Antes
que você se choque com a citação acima nesta página, é bom que
eu esclareça que não a incluí aqui por concordar com suas
palavras. Se você não tiver ligação com a tradição dos “santos
dos últimos dias” (SUD), conhecida popularmente como “mormonismo”,
nem dedica-se ao estudo da tradição a partir de seu exterior,
possivelmente desconhece a história de perseguição e sofrimento
que seus primeiros adeptos sofreram. Não é exagero afirmar que os
“mórmons” consistiram o grupo religioso mais brutalmente
perseguido na história dos Estados Unidos – o que, de certa forma,
ajuda a compreender seu senso de vitimização e exclusão enraizada
especialmente na memória das comunidades “mórmons” de Utah e de
estados vizinhos, e a cultura de intolerância institucional à
não-conformidade doutrinária ou hierárquica n' A Igreja de
Jesus Cristo dos Santos do Últimos Dias (AIJCSUD) [sim, o artigo
definido feminino singular é parte do nome da denominação, por
isso a não contração aqui].
Hoje,
a vítima dessa cultura é John Dehlin, um prominente
intelectual e blogueiro SUD que ousa defender publicamente posições
sobre o tratamento de mulheres, de minorias étnicas e sexuais e de
intelectuais, na AIJCSUD, que entram em conflito com as práticas da
denominação com relação aos não conformistas em seu seio.
No
próximo dia 8 de fevereiro, Dehlin será levado diante dum Conselho
Disciplinar de sua
igreja para ser julgado por sua “apostasia” (heresia). Seus
líderes o julgarão com base em sua auto-apresentação, em sua
página na internet, onde afirma:
Tenho
um profundo amor pela igreja SUD, por seus membros e por seus
ex-membros. Me considero como um mórmon não ortodoxo e não
ortopráxico. Acredito em muitas dos ensinamentos morais centrais e
não-distintivos do Mormonismo (por exemplo, amor, generosidade,
caridade, perdão, fé, esperança), mas ou tenho sérias dúvidas
sobre, ou não mais acredito em muitas das reivindicações de
verdades fundamentais da igreja SUD (por exemplo, o Deus
antropomórfico, “única igreja verdadeira com autoridade
exclusiva”, que o atual profeta da igreja SUD recebe comunicações
privilegiadas de Deus, que o Livro de Mórmon e o Livro de Abraão
são traduções, poligamia, ensinamentos racistas no Livro de
Mórmon, que ordenanças são exigências para a salvação, obras em
favor dos mortos).
[…]
Creio
que muitos líderes da igreja SUD têm boas intenções, mas me
perturbo profundamente por seu tratamento histórico e atual das
mulheres, de minorias raciais e sexuais, e de
cientistas/intelectuais. Perturbo-me também por sua abordagem
histórica e atual à fé/dúvida, sexualidade, pela busca de vastos
interesses comerciais juntamento com sua não divulgação de seus
dados financeiros, coerção/envergonhamento de membros por meio do
impedimento de privilégios no templo e no sacerdócio, e a atual
mentalidade de adoração à liderança na igreja SUD. Creio que o
desencorajamento de críticas a líderes da igreja SUD é,
possivelmente, o aspecto mais pernicioso e prejudicial da cultura da
igreja SUD – e que a luz do sol e a candura sejam os melhores
desinfetantes.
Dedicarei
os anos restantes de minha vida a: 1) ajudar a minimizar o dano, e
maximizar o bem, nas culturas secular e religiosa, e 2) ajudar
aqueles que estão deixando a ortodoxia religiosa a encontrar
alegria, sentido e satisfação em suas vidas, famílias e
comunidades – seja dentro ou fora duma estrutura eclesiástica
formal.
[…]
Esse
é o pecado de John Dehlin. Sua grande apostasia e rebelião!
O
julgamento perante um Conselho Disciplinar, a propósito, é um
procedimento comum a todos aqueles que são acusados de pecados
sérios no “mormonismo”, o que inclui o quase imperdoável pecado
de questionar a doutrina ou discordar da hierarquia da AIJCSUD.
Ocorre sob a presidência do Presidente de Estaca (“Estaca” é o
correspondente a uma diocese nas tradições anglicana, luterana ou
católica, por exemplo). A punição pode chegar ao máximo de
excomunhão – que, na teologia mórmon, significa perda da
“exaltação”, caso não haja um arrependimento pleno, e o
isolamento social pleno (já que um excomunhado frequentemente é
discriminado por seus amigos e familiares SUD – ou seja, como diria
uma amiga minha que já passou por isso, “o mal é cortado pela
raiz”).
Antes
que você questione as motivações de Dehlin, vale a pena saber quem
ele é.
Nascido
na “mormoníssima” Boise, em Idaho – apesar de criado no Texas
–, Dehlin vem duma tradicional família SUD. Após servir como
missionário na Guatemala para sua igreja (1988-1990), frequentou a
BYU (Universidade Brigham Young), onde se formou em Ciência
Política. Depois de formado, trabalhou para várias empresas da área
de computação, incluindo a Microsoft, e para a própria AIJCSUD.
Trabalhou, ainda, para a Universidade Estadual de Utah e para o MIT,
no desenvolvimento e coordenação de programas de educação online.
Na
Universidade Estadual de Utah, também fez seu mestrado, pesquisando
o desenvolvimento dum tratamento para o TOC baseado na experiência
religiosa, com foco na população mórmon de orientação gay que se
submetia a tentativas de mudança de orientação sexual. E, hoje,
termina seu doutorado em Psicologia Clínica e Aconselhamento,
aprofundando sua pesquisa sobre a relação entre religião e saúde
mental.
É
casado com Margaret – os dois foram ortodoxamente “selados” num
templo SUD –, e é pai de três filhas e um filho.
Ele
tem sido um personagem central no movimento de levar o “mormonismo”
para o universo das discussões online com aqueles mórmons
interessados em discutir a história e as ideias da tradição SUD.
Seu trabalho tornou-se, desde o início dos anos 2000, um suporte
especialmente àqueles SUD que se viam excluídos por não poderem
discutir suas dúvidas, nem encontrarem uma rede de apoio dentre seu
próprio povo. Participou na organização duma rede de mórmons para
apoiarem jovens gays mórmons, que sofrem uma alta incidência de
suicídio, especialmente em Utah e estados vizinhos. Tornou-se um
bastião de esperança para muitos em sua própria denominação.
Dehlin
disse hoje numa entrevista ao The
Salt Lake Tribune que se for excomunhado, respeitará a decisão
da igreja. Para ele, a igreja tem o direito de decidir quem pode
continuar a ser membro.
O
que os poderosíssimos líderes mórmons de Utah não se dão conta,
entretanto, é que sua já longa perseguição a John Dehlin –
baseada numa afirmação feita fora da igreja por um membro que não
ocupa posições de liderança na mesma – poderá tornar-se um
“tiro no pé” da própria igreja SUD. Imaginem ter de explicar
isso ao eleitorado dos Estados Unidos do século XXI, se Mitt Romney
se pré candidatar, mais uma vez, a Presidente dos EUA... É aguardar
e ver o que acontece!
+Gibson
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