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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O “tiro no pé” do Mormonismo ortodoxo em sua tentativa de silenciar o corajoso John Dehlin: quando discordar respeitosamente torna-se uma declaração de guerra


Gibson da Costa

[…] Os mórmons devem ser tratados como inimigos, e devem ser exterminados ou expulsos do estado, se necessário, para a paz pública – seus ultrajes estão além de qualquer descrição. […]

(Ordem Executiva nº 44, do Governador Lilburn W. Boggs, do Estado de Missouri – 27 de outubro de 1838)


Antes que você se choque com a citação acima nesta página, é bom que eu esclareça que não a incluí aqui por concordar com suas palavras. Se você não tiver ligação com a tradição dos “santos dos últimos dias” (SUD), conhecida popularmente como “mormonismo”, nem dedica-se ao estudo da tradição a partir de seu exterior, possivelmente desconhece a história de perseguição e sofrimento que seus primeiros adeptos sofreram. Não é exagero afirmar que os “mórmons” consistiram o grupo religioso mais brutalmente perseguido na história dos Estados Unidos – o que, de certa forma, ajuda a compreender seu senso de vitimização e exclusão enraizada especialmente na memória das comunidades “mórmons” de Utah e de estados vizinhos, e a cultura de intolerância institucional à não-conformidade doutrinária ou hierárquica n' A Igreja de Jesus Cristo dos Santos do Últimos Dias (AIJCSUD) [sim, o artigo definido feminino singular é parte do nome da denominação, por isso a não contração aqui].

Hoje, a vítima dessa cultura é John Dehlin, um prominente intelectual e blogueiro SUD que ousa defender publicamente posições sobre o tratamento de mulheres, de minorias étnicas e sexuais e de intelectuais, na AIJCSUD, que entram em conflito com as práticas da denominação com relação aos não conformistas em seu seio.

No próximo dia 8 de fevereiro, Dehlin será levado diante dum Conselho Disciplinar de sua igreja para ser julgado por sua “apostasia” (heresia). Seus líderes o julgarão com base em sua auto-apresentação, em sua página na internet, onde afirma:

Tenho um profundo amor pela igreja SUD, por seus membros e por seus ex-membros. Me considero como um mórmon não ortodoxo e não ortopráxico. Acredito em muitas dos ensinamentos morais centrais e não-distintivos do Mormonismo (por exemplo, amor, generosidade, caridade, perdão, fé, esperança), mas ou tenho sérias dúvidas sobre, ou não mais acredito em muitas das reivindicações de verdades fundamentais da igreja SUD (por exemplo, o Deus antropomórfico, “única igreja verdadeira com autoridade exclusiva”, que o atual profeta da igreja SUD recebe comunicações privilegiadas de Deus, que o Livro de Mórmon e o Livro de Abraão são traduções, poligamia, ensinamentos racistas no Livro de Mórmon, que ordenanças são exigências para a salvação, obras em favor dos mortos).
[…]
Creio que muitos líderes da igreja SUD têm boas intenções, mas me perturbo profundamente por seu tratamento histórico e atual das mulheres, de minorias raciais e sexuais, e de cientistas/intelectuais. Perturbo-me também por sua abordagem histórica e atual à fé/dúvida, sexualidade, pela busca de vastos interesses comerciais juntamento com sua não divulgação de seus dados financeiros, coerção/envergonhamento de membros por meio do impedimento de privilégios no templo e no sacerdócio, e a atual mentalidade de adoração à liderança na igreja SUD. Creio que o desencorajamento de críticas a líderes da igreja SUD é, possivelmente, o aspecto mais pernicioso e prejudicial da cultura da igreja SUD – e que a luz do sol e a candura sejam os melhores desinfetantes.

Dedicarei os anos restantes de minha vida a: 1) ajudar a minimizar o dano, e maximizar o bem, nas culturas secular e religiosa, e 2) ajudar aqueles que estão deixando a ortodoxia religiosa a encontrar alegria, sentido e satisfação em suas vidas, famílias e comunidades – seja dentro ou fora duma estrutura eclesiástica formal.
[…]

Esse é o pecado de John Dehlin. Sua grande apostasia e rebelião!

O julgamento perante um Conselho Disciplinar, a propósito, é um procedimento comum a todos aqueles que são acusados de pecados sérios no “mormonismo”, o que inclui o quase imperdoável pecado de questionar a doutrina ou discordar da hierarquia da AIJCSUD. Ocorre sob a presidência do Presidente de Estaca (“Estaca” é o correspondente a uma diocese nas tradições anglicana, luterana ou católica, por exemplo). A punição pode chegar ao máximo de excomunhão – que, na teologia mórmon, significa perda da “exaltação”, caso não haja um arrependimento pleno, e o isolamento social pleno (já que um excomunhado frequentemente é discriminado por seus amigos e familiares SUD – ou seja, como diria uma amiga minha que já passou por isso, “o mal é cortado pela raiz”).

Antes que você questione as motivações de Dehlin, vale a pena saber quem ele é.

Nascido na “mormoníssima” Boise, em Idaho – apesar de criado no Texas –, Dehlin vem duma tradicional família SUD. Após servir como missionário na Guatemala para sua igreja (1988-1990), frequentou a BYU (Universidade Brigham Young), onde se formou em Ciência Política. Depois de formado, trabalhou para várias empresas da área de computação, incluindo a Microsoft, e para a própria AIJCSUD. Trabalhou, ainda, para a Universidade Estadual de Utah e para o MIT, no desenvolvimento e coordenação de programas de educação online.

Na Universidade Estadual de Utah, também fez seu mestrado, pesquisando o desenvolvimento dum tratamento para o TOC baseado na experiência religiosa, com foco na população mórmon de orientação gay que se submetia a tentativas de mudança de orientação sexual. E, hoje, termina seu doutorado em Psicologia Clínica e Aconselhamento, aprofundando sua pesquisa sobre a relação entre religião e saúde mental.

É casado com Margaret – os dois foram ortodoxamente “selados” num templo SUD –, e é pai de três filhas e um filho.

Ele tem sido um personagem central no movimento de levar o “mormonismo” para o universo das discussões online com aqueles mórmons interessados em discutir a história e as ideias da tradição SUD. Seu trabalho tornou-se, desde o início dos anos 2000, um suporte especialmente àqueles SUD que se viam excluídos por não poderem discutir suas dúvidas, nem encontrarem uma rede de apoio dentre seu próprio povo. Participou na organização duma rede de mórmons para apoiarem jovens gays mórmons, que sofrem uma alta incidência de suicídio, especialmente em Utah e estados vizinhos. Tornou-se um bastião de esperança para muitos em sua própria denominação.

Dehlin disse hoje numa entrevista ao The Salt Lake Tribune que se for excomunhado, respeitará a decisão da igreja. Para ele, a igreja tem o direito de decidir quem pode continuar a ser membro.

O que os poderosíssimos líderes mórmons de Utah não se dão conta, entretanto, é que sua já longa perseguição a John Dehlin – baseada numa afirmação feita fora da igreja por um membro que não ocupa posições de liderança na mesma – poderá tornar-se um “tiro no pé” da própria igreja SUD. Imaginem ter de explicar isso ao eleitorado dos Estados Unidos do século XXI, se Mitt Romney se pré candidatar, mais uma vez, a Presidente dos EUA... É aguardar e ver o que acontece!

+Gibson

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