[Esta
é uma resposta à longa mensagem que recebi da leitora Márcia. Como
em seu e-mail ela aborda muitos diferentes temas – que incluem
teologia, educação e política –, dividirei minhas respostas nos
blogs apropriados (aos quais ela faz referência em sua mensagem).
Aqui, obviamente, responderei a algumas de suas questões teológicas
(talvez, tenha de fazê-lo em mais de uma postagem).]
Cara
Márcia,
“E
conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32)
Como
você mesma percebeu, rejeito a noção de que apenas uma tradição
cristã seja a “verdadeira”. Se eu a defendesse, minha própria
vida religiosa testificaria contra mim. Como já escrevi aqui muitas
vezes, estou ligado a diferentes tradições cristãs, tendo,
inclusive, sido ordenado em diferentes comunhões. Assim, não posso,
honestamente, dizer que minha expressão do Cristianismo (o meu
protestantismo arminiano-unitarista-anglocatólico-luterano)
seja a única “verdade”, enquanto a fé de um católico romano ou
de um protestante evangelical seja “falsa”. Rejeito
terminantemente esta visão exclusivista.
Não,
não me envergonho de minha fé. Mas também não me envergonho de
usar minha inteligência. A ideia de que haja um Cristianismo
imutável, que sempre continuou o mesmo, sempre foi e ainda é uma
afronta à minha inteligência. É verdade que há traços de
continuidade nas tradições cristãs – por exemplo, ainda
continuamos a recitar o Pai Nosso, o Credo Apostólico e a ler
porções da Bíblia em celebrações eucarísticas (nas igrejas
católicas, ortodoxas, anglicanas, luteranas, metodistas e em algumas
outras tradições protestantes) –, mas, ao mesmo tempo, há
mudanças. No exemplo que citei, todos aqueles textos passaram por
transformações ao longo dos dois milênios da Igreja cristã. Os
textos que recitamos e lemos hoje (o Pai Nosso, o Credo Apostólico e
a Bíblia) não são os mesmos de suas versões “originais”.
Sim,
para mim, o Cristianismo é a “minha verdade”. E é a “minha
verdade”, porque outras pessoas encontram sua porta para Deus –
ou sua “salvação”, se preferir – em outras tradições.
Reconheço a sinceridade dessas pessoas. E como confio em Deus que é
Amor, em Deus que é Verdade, em Deus que é Compaixão, e acredito
que essa coisa que chamamos de “religião” é um artefato humano,
confio que quando o homem busca o Divino, o encontrará. Deus não é
judeu, nem cristão, nem muçulmano, nem budista, nem espiritualista,
nem candombleísta, nem umbandista, já que não é humano – para
mim, Deus é uma realidade que ultrapassa minha compreensão,
não é um ente antropomorfo.
Reconhecer
a sinceridade da fé de outras pessoas e que elas podem encontrar o
Divino em suas tradições, contudo, não faz com que o que elas
acreditam se torne “verdade” para mim. Tenho minhas próprias
convicções que podem ser incompatíveis com o que outras pessoas
acreditam – e vice versa. E é nesse sentido que a “verdade” é
relativa. Quando falo na relatividade da “verdade” não quero
dizer que não haja verdade absoluta no universo – obviamente, há
verdade e falsidade, certo e errado, apesar de nem sempre podermos
saber qual é qual. Essa relatividade se refere não à verdade em
si, mas à percepção que temos daquilo que chamamos de verdade. Um
exemplo simples disso está na percepção que diferentes pessoas
numa família com pais divorciados podem ter das razões que causaram
o fim do casamento. Frequentemente, os dois cônjuges terão sua
própria explicação diferente da do outro, e cada um dos filhos ou
filhas terá sua própria visão. Ou seja, cada um terá sua
“verdade”, que nem sempre, necessariamente, corresponderá à
factualidade (ao que de fato aconteceu) – isto é, em minha visão,
inerente ao ser humano.
Eu,
por exemplo, não acredito em coisas como reencarnação ou
possessão. Para mim, essas são crenças absurdas. Elas violam uma
série de aspectos de minha compreensão teológica do que seja um
ser humano e do que seja a justiça divina. Também não acredito que
Jesus tenha vindo ao mundo para servir de sacrifício por meus
pecados (refiro-me, especificamente, às chamadas "teoria do resgate" e "teoria da substituição penal"). Essa é uma crença tão absurdamente ofensiva à minha
compreensão de Deus e à minha moral que não poderia aceitá-la
como verdade factual – apesar de poder servir como metáfora em
algumas situações. Não aceito essas crenças que são tão comuns
para diferentes grupos religiosos. Não as aceito, mas aceito a
sinceridade daqueles que nelas acreditam; aceito a liberdade de quem
nelas acreditam.
Assim,
honestamente, não aceito como válidas para mim mesmo todas as
crenças abraçadas por outras pessoas. Há, em minha visão de
mundo, lícito e ilícito, verdade e mentira, aceitável e
inaceitável; e mesmo as pessoas que se digam mais abertas,
adogmáticas e tolerantes também terão, no fundo, um senso que
limita sua aceitabilidade da verdade alheia – seja esta uma verdade
religiosa, filosófica, política etc. E eu, apesar de me considerar
aberto à diferença e tolerante, não poderia ser diferente.
Nossas
convicções (as minhas, as suas e as de todas as outras pessoas),
entretanto, não estão esculpidas em diamantes. Elas,
esperançosamente, mudam porque nós mudamos. Podemos até não
perceber, mas ao menos pequenas porções do que acreditamos passam
por transformações ao longo do tempo – se isso não acontece,
então ai de nós!
Você
fez um comentário sobre a hipocrisia. Bem, não
acredito que a maioria de nós seja hipócrita. Acredito que sejamos
contraditórios. Ser hipócrita, para
mim, implica uma voluntariedade em agirmos diferentemente
daquilo que professamos (ou seja, contradizer o que
professamos por livre e espontânea vontade). Ser contraditório,
por outro lado, implica que
não somos perfeitos e que,
por isso, nem sempre percebemos que nossas ações contradizem aquilo
que professamos. Porque reconheço isso em mim mesmo,
me esforço para dar este crédito àquelas pessoas que pregam uma
coisa e, algumas vezes, fazem outra. Obviamente, há hipócritas,
mas penso que sejam uma minoria.
Sou,
como todos os demais humanos, imperfeito, limitado, contraditório. O
que isso significa para minhas crenças é que não sou capaz de dar
a mim mesmo respostas definitivas para meus questionamentos morais.
Assim, muitas vezes, haverá contradições entre diferentes aspectos
de minha visão de mundo.
Assim
– pensando no seu questionamento acerca das drogas, do
aborto, do suicídio e da pena de morte
(questões extremamente complexas para serem esgotadas ao longo de
nossa existência) –, veja o quão difícil é conciliar todos os
campos de minha visão de mundo (a teológica com a política e com a
científica, por exemplo):
Teológica
e moralmente, creio que a vida seja um dom divino do qual somos
apenas mordomos (cuidadores). Nós não criamos a vida. A vida não é
uma produção humana que deriva apenas da ação e da vontade
humanas. Ela não está restrita à matéria. Não sei explicar o que
ela seja – isto estaria além de minha capacidade –, mas por mais
que seja um fenômeno químico-biológico, é também um fenômeno
psicológico (espiritual). Por isso ela é sagrada. Voluntariamente
encerrar a vida, de outro ou de si próprio, é violar sua
sacralidade. Por isso, geralmente, me oponho a tudo aquilo que
perceba como uma violação à sacralidade da vida (e os quatro temas
que usou como exemplo se encaixam nisso).
Politica
e filosoficamente, acredito na liberdade do indivíduo. Acredito no
direito do indivíduo de acreditar ou desacreditar no que quiser, de
ir e vir, e de fazer com sua vida (desde que não fira a outrem) o
que bem entender. Isso significaria que se alguém quisesse usar
drogas ou se suicidar, isso seria seu problema. Entretanto, como
cristão, aceito ser um cuidador de meu irmão e um protetor da vida
– desta forma, não posso, conscientemente, legitimar algo que
compreendo como uma violação daquilo que considero mais sagrado (a
vida humana). Assim, a fé e a política se contradizem em algumas
encruzilhadas, e aí emerge aquele lado contraditório da vida
em sociedade, que você classificou como hipócrita.
Pensemos,
de forma bem simplista, no caso do uso recreativo de certas drogas.
Suponha que liberemos, por exemplo, o uso de cocaína. Possivelmente,
mais dependentes – já que teriam um acesso facilitado a esta droga
–, mais enfermidades em decorrência do uso, custo maior com
tratamento por parte do Estado (já que o Brasil tem um sistema
público de saúde), preço pago por contribuintes que não concordam
com essa liberação!... Percebe a equação?... Não se trata apenas
da liberdade individual, como os militantes gritam aos quatro ventos;
trata-se do bem-estar e da identidade moral da sociedade como
um todo (já que envolve finanças públicas, segurança, violência,
e princípios morais dominantes na sociedade). Isso seria diferente
se você ou eu, por exemplo, fizéssemos o que quiséssemos num
espaço isolado dos outros cidadãos; mas não vivemos isoladamente,
vivemos em sociedade – logo, tudo isso diz respeito à sociedade
como um todo.
Mas,
e se acrescentássemos outro dado a esta equação? O que dizer dos
militares e policiais que trabalham armados e, involuntariamente,
matam? Jurídica e socialmente autorizados e legitimados ou não,
fazem uso de violência para desempenharem suas funções. Como
encaixá-los nessa perspectiva de respeito à vida?... Posso dar uma
resposta política convincente a esta questão, mas ela, assim mesmo,
aparentemente entraria em conflito com minha resposta teológica!...
O que seria então: hipocrisia ou contradição?
No
que tange à pena de morte, que eticidade há em matar alguém por
este(a) haver matado outra pessoa? Como poderíamos manter nossas
cabeças erguidas diante da luz do sol, se não nos mostrássemos
moralmente superiores ao mal?... Mas, por outro lado, como podemos
dar liberdade a alguém que matou inúmeras pessoas e que,
eventualmente, caminhará livremente pelas ruas? Que resposta moral
podemos dar a este problema?... Eu, honestamente, não sei, e duvido
que outra pessoa o saiba!
É
por isso que sempre digo que não aceito respostas simplistas a
questões como essas. Não aceito as respostas absolutistas dadas por
fanáticos religiosos ou fanáticos políticos. E não as aceito por
saber que quando nos deslocamos um pouco de nossos lugares
confortáveis, passamos a ver as questões de outra forma, a partir
de outra perspectiva.
O
que posso fazer, e o que espero me esforçar para fazer, é ser
honesto comigo mesmo e reconhecer minhas limitações; reconhecer que
não conheço todas as respostas, que não conheço a “verdade
plena” das coisas.
Paz!
+Gibson
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