Os cristãos sempre afirmaram um relacionamento próximo entre a Bíblia e Deus, da mesma forma que outras religiões afirmam um relacionamento próximo entre o sagrado e suas escrituras sagradas. Aqui, começarei a descrever uma maneira de ver e ler a Bíblia focando em como vemos o relacionamento entre a Bíblia e Deus. Quatro tópicos são centrais: a Bíblia como uma resposta humana a Deus, a Bíblia como escritura sagrada, a Bíblia como sacramento do sagrado, e a Bíblia como a Palavra de Deus.
A Bíblia Como Uma Resposta Humana a Deus
Fundamental para uma leitura da Bíblia é uma decisão de como ver sua origem. Vem de Deus, ou é produto humano? Devemos ver e ler o que ela diz como um produto divino ou como um produto humano?
Através das lentes do literalismo natural e seus descendentes modernos, a Bíblia é vista como um produto divino (como já enfatizei na aula passada). A inspiração da escritura é entendida como significando que Deus guiou a escrita da Bíblia, diretamente ou indiretamente. O que a escritura diz, no final das contas, vem de Deus.
A alternativa, claro, é ver a Bíblia como um produto humano – o produto de duas antigas comunidades. Esta é a lente através da qual eu vejo a escritura. A Bíblia Hebraica (O Velho Testamento cristão) é o produto da Israel antiga. O Novo Testamento é o produto do movimento cristão primitivo. O que a Bíblia diz são as palavras daquelas comunidades, não as palavras de Deus.
Ver a Bíblia como um produto humano não nega, de forma alguma, a realidade de Deus. Na verdade, uma das premissas centrais deste curso é que Deus é real e que pode ser experimentado. Correndo o risco de ser repetitivo, o que quero dizer é que Deus (ou “o sagrado” ou o “Espírito”, termos que uso sinonimicamente) é uma realidade conhecida na experiência humana, e não simplesmente uma criação ou projeção humana. Claro que seja lá o que dizemos sobre o sagrado é uma criação humana. Não podemos falar a respeito de Deus (ou de qualquer outra coisa), a não ser que usemos palavras, símbolos, estórias, conceitos, e categorias conhecidas por nós, pois eles são a única linguagem que temos. Entretanto, nós também temos experiências do “santo”, do “divino”, do “sagrado”. Estas experiências vão além de nossa linguagem, a ultrapassando, a relativizando. Estou convencido que a Bíblia, como a literatura sacra em geral, origina-se em tais experiências. Também estou convencido que a Bíblia (como todas as outras coisas expressas em palavras) é uma construção humana.
Há uma terceira forma de ver a relação entre Deus e a escrita da Bíblia: não há uma relação, pois não há Deus. Para esta posição, a Bíblia é, obviamente, um produto humano, mas ela não tem nenhum significado religioso além do que nos diz sobre o que estas pessoas antigas erroneamente pensavam. Esta não é a forma como vejo a escritura.
Eu vejo a Bíblia como uma resposta humana a Deus. Em vez de ver Deus como o autor da escritura, eu vejo a Bíblia como a resposta dessas duas antigas comunidades à sua experiência de Deus. Como tal, ela contém suas narrativas a respeito de Deus, suas percepções do caráter e vontade de Deus, suas orações e louvor a Deus, suas percepções da condição humana e os caminhos para a libertação, suas práticas religiosas e éticas, e sua compreensão do que fidelidade a Deus envolve. Como o produto dessas duas comunidades, a Bíblia nos diz sobre como eles viam as coisas, não sobre como Deus vê as coisas.
A Diferença Que Nossas Perspectivas Sobre A Bíblia Faz
As justificativas para ver a Bíblia como um produto humano são atrativas. Basicamente, para mim parece que uma leitura cuidadosa da Bíblia torna impossível pensar que o que ela diz venha diretamente ou indiretamente de Deus. Então, em vez de tentar convencer que a Bíblia é um produto humano, oferecerei cinco ilustrações da diferença que estas duas formas de ver e ler a Bíblia fazem.
A primeira ilustração é uma história. Havia um programa em uma rádio sobre a Bíblia e questões éticas, que eu ouvi uma vez. Em resposta à ligação de um ouvinte, o apresentador disse: “Vamos ver o que Deus diz a respeito disso”, e então citou uma passagem da Bíblia (uma passagem escrita por Paulo). Eu me “assustei” do pulo que o apresentador deu de Deus para a Bíblia, mesmo tendo compreendido. Afinal de contas, ele via o que a Bíblia diz como vindo de Deus. Mas a diferença entre ver a Bíblia como um produto divino e vê-la como um produto humano é clara nesta ilustração: Uma passagem de Paulo nos diz o que Deus diz ou como Paulo via as coisas?
Minha segunda ilustração concerne às narrativas da criação do Gênesis. Se virmos a Bíblia como um produto divino, então estas são as narrativas de Deus a respeito da criação. E como narrativas de Deus, elas não podem estar erradas. Se descermos muito por essa estrada, podemos encontrar-nos atraídos ao criacionismo científico (a tentativa de mostrar que um certo tipo de “ciência” apóia a leitura literal do Gênesis). Podemos até nos tornar envolvidos em conflitos sobre se o Gênesis deveria ser ensinado junto com a teoria da evolução em cursos de biologia nas escolas públicas, como ocorre em partes dos Estados Unidos.
Mas se vemos a Bíblia como um produto humano, então lemos os capítulos iniciais do Gênesis não como a narrativa de Deus da criação, mas como as estórias da criação da antiga Israel. Como a maioria das culturas antigas, Israel possuía tais estórias. Se perguntássemos “Qual a probabilidade de as narrativas da criação da antiga Israel conterem informações cientificamente exatas?”, a resposta seria “Quase zero”. E mesmo se contivessem, não passaria de coincidência. Tendo dito isto, entretanto, quero acrescentar que eu penso que as narrativas da criação da antiga Israel são profundamente verdadeiras – mas verdadeiras como narrativas metafóricas ou simbólicas, não como contos literalmente factuais.
Minha terceira ilustração concerne às leis da Bíblia. Se pensamos na Bíblia como um produto divino, então as leis da Bíblia são as leis de Deus. Para ilustrar isso com uma controvérsia cristã contemporânea, a única lei na Bíblia Hebraica que proíbe o comportamento homossexual entre homens é encontrada em Levítico: “Não se deite com um homem, como se fosse com mulher: é uma abominação”(18:22). A pena (morte) se encontra dois capítulos depois (Levítico 20:13).
Se vemos a Bíblia como um produto divino, então esta é uma das leis de Deus. A questão ética, então, se torna: “Como alguém justifica o abandono de uma das leis de Deus?” É desta forma, ao menos, como os fundamentalistas e muitos cristãos conservadores vêem a questão.
Mas se vemos a Bíblia como um produto humano, então as leis da Bíblia Hebraica são as leis da antiga Israel, e a proibição do comportamento homossexual nos diz que tal comportamento era considerado inaceitável na antiga Israel. A questão ética, então, se torna: “Qual seria a justificativa para continuar vendo o comportamento homossexual como a antiga Israel o fazia?”.
A questão se torna ainda mais crítica quando nos damos conta de que esta lei está embutida em uma coleção de leis que, entre outras coisas, proíbem plantar dois tipos de sementes no mesmo campo, e proíbem o uso de vestes feitas de dois tipos de pano (Levítico 19:19). nós não nos preocupamos com isso; a maioria de nós usa roupas feitas de misturas de tecidos, sem pensar duas vezes. Nós prontamente reconhecemos algumas dessas proibições como as leis de uma cultura antiga, que não estamos obrigados a seguir. Por que, então, apontarmos algumas como sendo “as leis de Deus”?
Minha quarta ilustração é uma pequena e estranha narrativa em Êxodo, envolvendo Moisés, Séfora (sua esposa), e seu filho (Êxodo 4:24-26). Eles estão retornando ao Egito, em obediência ao comissionamento de Moisés como o libertador de Israel. “Durante a viagem, em um lugar onde passaram a noite, o Senhor foi ao encontro de Moisés e procurava matá-lo”. Séfora então, circuncisa seu filho e toca Moisés com o prepúcio de seu filho. O resultado: Deus o deixa em paz; o intento divino de matar Moisés desaparece.
Se vemos a Bíblia como um produto divino, a questão se torna: “Por que Deus quereria matar Moisés – já que Moisés foi escolhido por Deus e está fazendo o que Deus o ordenou?” A pergunta é impossível de responder. Ela sugere um Deus perturbativamente caprichoso e malévolo. Apelar para o familiar “os caminhos de Deus não são nossos caminhos” seria um sofisma, não uma resposta adequada.
Mas se vemos a Bíblia como um produto humano, percebemos que esta é uma narrativa contada pela antiga Israel. A questão, então, se torna: “Por que Israel contaria esta narrativa?” A resposta pode ainda não ser muito clara (presumivelmente, tem algo a ver com a importância da circuncisão), mas ao menos não somos deixados com o dilema de vê-la como uma história verdadeira a respeito de Deus.
Por as últimas três ilustrações terem sido tiradas da Bíblia Hebraica, eu concluo com uma do Novo Testamento. A passagem é de 1 Timóteo (2:9-15), uma carta atribuída a Paulo, mas quase que certamente não escrita por ele:
“Quanto às mulheres, que elas tenham roupas decentes e se enfeitem com pudor e modéstia. Não usem tranças, nem objetos de ouro, pérolas ou vestuário suntuoso; pelo contrário, enfeitem-se com boas obras, como convém a mulheres que dizem ser piedosas. Durante a instrução, a mulher deve ficar em silêncio, com toda a submissão. Eu não permito que a mulher ensine ou domine o homem. Portanto, que ela conserve o silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, pecou. Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que permaneça com modéstia na fé, no amor e na santidade.”
Essa é uma passagem extraordinária. Não apenas as mulheres não devem ensinar ou ter autoridade sobre homens, mas elas não devem trançar seus cabelos, usar pérolas ou ouro ou roupas caras. Além do mais, elas são responsabilizadas pela origem do pecado no mundo: foi a mulher que foi enganada, não o homem. As “boas novas” é que as mulheres podem ser salvas – sendo mães.
Se a Bíblia é vista como um produto divino, então estas são as restrições de Deus aos comportamentos e papéis das mulheres. Na verdade, para aquelas igrejas protestantes que continuam a proibir a ordenação de mulheres, esta é a maneira como esta passagem é vista (mesmo sendo as outras restrições comumente ignoradas). Para eles, a ordenação de mulheres é contrária à “Palavra de Deus” (esta não é a razão pela não ordenação de mulheres no catolicismo).
Entretanto, se a Bíblia é vista como um produto humano, então esta passagem nos diz como um antigo escritor cristão – um homem – via as coisas. Como mencionado, Paulo quase certamente não escreveu essas palavras. O autor é comumente visto como um seguidor de Paulo de terceira ou quarta geração, escrevendo em seu nome. Mas é igualmente possível que o autor não seja um seguidor de Paulo, mas um “corretor” tentando negar a remarcável igualdade de gênero do movimento cristão primitivo. Quando a Bíblia é vista como um produto humano, o contraste entre este texto e outros textos no Novo Testamento requer que reconheçamos mais de uma voz no cristianismo primitivo, falando sobre o papel das mulheres e que busquemos discernir que voz honraremos.
Sendo assim, muito está em jogo em como vemos a Bíblia – seja como um produto humano ou um produto divino. Quando não somos completamente claros e cândidos sobre a Bíblia ser um produto humano e não um produto divino, criamos a possibilidade de uma enorme confusão.
Por Que Nossa Perspectiva Precisa Ser De Ou...Ou?
Antecipando uma possível objeção: Por que ver a questão como uma escolha de ou-ou? Por que não ver a Bíblia tanto como divina quanto humana? Em minha experiência, que seja ambos apenas aumenta a confusão.
Quando a Bíblia é vista tanto como divina quanto humana, nós temos duas opções. Uma é dizer que seja completamente divina e completamente humana. Isso pode parecer bom, mas nos deixa com o dilema de tratar toda a escritura como revelação divina. Mais tipicamente em minha experiência, afirmar que a Bíblia seja tanto divina quanto humana leva à tentativa de separar as partes divinas das partes humanas – como se uma parte viesse de Deus e outra parte fosse um produto humano. Às partes que vêm de Deus são, então, dadas autoridade, e não às outras. Mas as partes que nós pensamos virem de Deus são normalmente as partes que vemos como importantes, e então simplesmente conferimos autoridade divina ao que nos importa, sejamos nós conservadores ou liberais.
Para usar um exemplo: a maioria dos cristãos que pensam ser a Bíblia tanto um produto divino quanto humano, diria que os Dez Mandamentos estão entre as partes que vêm de Deus. Eles parecem importantes de uma forma que a proibição contra o uso de roupas feitas de dois tipos de tecido não parecem ser.
Mas um momento de ponderação sugere que os Dez Mandamentos são também um produto humano. Eles foram escritos de uma perspectiva masculina: por exemplo, eles proíbem a cobiça da esposa do próximo, mas não dizem nada sobre a cobiça do esposo do próximo (Êxodo 20:17; Deuteronômio 5:21). Os mandamentos contra o roubo, o adultério, o assassínio, a prestação de falso testemunho, etc, são simplesmente regras que tornam possível para os humanos viverem juntos em comunidade. O gênero divino não é uma exigência para se criarem leis como essas. O ponto não é que os Dez Mandamentos não sejam importantes. O ponto é, na verdade, que sua origem humana é evidente.
Assim, as lentes que estou defendendo não vêem a Bíblia em seu todo como tendo origem divina, ou algumas partes como divinas e outras como humanas. A Bíblia é completamente humana, apesar de haver sido gerada em resposta a Deus. Como tal, ela contém as idéias da antiga Israel do que a vida com Deus envolve, assim como também contém as idéias do primitivo movimento cristão.
Dessa forma, somos nós que devemos discernir como ler e interpretar, como ouvir e valorizar, suas várias vozes. A Bíblia não vêm com notas de roda-pé (ao menos não escritas por seus escritores originais) que digam: “Esta passagem reflete a vontade de Deus; a próxima passagem não”.; ou: “Esta passagem é valida para todas as eras; a anterior não era”. A Bíblia também não vem com notas de roda-pé que digam: “Esta passagem deve ser lida literalmente; aquela não”. Ler as narrativas da criação ou as narrativas do nascimento de Jesus literalmente envolve uma decisão interpretativa (ou seja, uma decisão de lê-las literalmente), da mesma forma que acontece com a decisão de lê-las metaforicamente.
Assim, toda afirmação sobre o que uma passagem de escritura significa, envolve interpretação. Não existe leitura não-interpretativa da Bíblia, a não ser que nossa leitura consista simplesmente de fazer sons no ar. Enquanto lemos a Bíblia, então, não deveríamos perguntar, “O que Deus está dizendo?”, mas “O que o antigo autor ou comunidade está dizendo?”. (UMA NOTA: Não estou dizendo com isso que o significado de um texto bíblico esteja confinado ou restrito ao que o autor ou comunidade tenha dito. Como direi na próxima aula, uma leitura metafórica da Bíblia produz significados que vão além da antiga intenção histórica do texto.)
A BÍBLIA COMO ESCRITURA SAGRADA
Apesar de a Bíblia ser um produto humano, ela é também sagrada escritura para três tradições religiosas. A Bíblia Hebraica é sagrada para o judaísmo, a Bíblia Hebraica e o Novo Testamento são sagrados para o cristianismo, e ambos são sagrados para o islamismo (apesar de à nenhum ser dado o mesmo status sagrado do Corão).
Status Sagrado
O que significa referir-se à Bíblia como escritura sagrada? Eu começo por dizer que os livros da Bíblia não eram sagrados quando foram escritos. Paulo, por exemplo, teria se surpreendido se soubesse que suas cartas às suas comunidades se tornariam escritura sagrada. As várias partes da Bíblia se tornaram sagradas através de um processo que levou alguns séculos.
O processo pelo qual a Bíblia se tornou sagrada é conhecido como “canonização”. Até onde sabemos (e não sabemos muito), o processo de canonização não envolveu concílios oficiais que se reuniram e tomaram decisões. Ao contrário, foi gradual, tendo acontecido em etapas. Os primeiros cinco livros da Bíblia Hebraica (a Lei, também conhecidos como a Torá ou o Pentateuco) foram aparentemente considerados como sagrados por volta de 400 a.C.. A segunda parte da Bíblia Hebraica (os Profetas) alcançou status sagrado por volta de 200 a.C.. A terceira parte (os Escritos) se tornou canônica por volta do ano 100 da era cristã. O cânon da Bíblia Hebraica estava, então, completo.
Para os vinte e sete livros do Novo Testamento, o processo levou cerca de três séculos. Apesar de a maioria dos documentos agora presentes no Novo Testamento terem sido escritos antes do ano 100 da era cristã, a primeira lista que menciona todos os vinte e sete deles como tendo um status especial é do ano de 367 d.C..
A percepção de que a Bíblia tornou-se escritura sagrada durante um período de séculos tem implicações para nossa compreensão de sua origem, status, e autoridade. Falar da Bíblia como sagrada trata-se não de sua origem mas de seu status dentro de uma comunidade religiosa. Qualquer documento é sagrado apenas porque é sagrado para uma comunidade particular. Confundir status com origem leva ao tipo de confusão que eu descrevi na seção anterior.
Para os cristãos, o status da Bíblia como escritura sagrada significa que ela é a coleção mais importante de escritos que nós conhecemos. Estes são os escritos básicos que definem quem nós somos em relação a Deus e quem nós somos como uma comunidade e como indivíduos. Este é o livro que nos modelou e que continuará a nos modelar.
Por causa da importância deste ponto, eu o enfatizarei de outra forma. Em comum com muitos estudiosos da religião, eu vejo cada uma das religiões do mundo como um “mundo cultural-lingüístico”. Esta frase um pouco abstrata significa coisas. Primeiro, cada religião emerge dentro de uma cultura particular e usa linguagens e símbolos daquela cultura (mesmo que também subverta ou desafie os valores e compreensões centrais daquela cultura). Sendo assim, as religiões nascem dentro de um mundo cultural-lingüístico existente.
Segundo, se a nova religião sobrevive com o passar do tempo, ela se torna um mundo cultural-lingüístico aparte. Como tal, ela provê um mundo no qual seus seguidores vivem. Suas narrativas e práticas, seus ensinamentos e rituais, tornam-se as lentes através das quais seus membros vêem a realidade e suas próprias vidas. Torna-se a base primária de identidade e visão.
Dentro desta estrutura de compreensão, a Bíblia como escritura sagrada é a base do mundo cultural-lingüístico cristão. A Bíblia é a “constituição” do mundo cristão, não no sentido de ser uma coleção de leis mas no sentido de ser sua base.
A Autoridade da Bíblia
Ver a Bíblia como sagrada em status e não em origem também leva a uma forma também diferente de ver a autoridade da Bíblia. A maneira antiga, convencional, de ver a Bíblia, baseava a autoridade da escritura em sua origem: a Bíblia era sagrada porque ela vinha de Deus. O resultado era um modelo monárquico de autoridade bíblica. Como um monarca antigo, a Bíblia está acima de nós, nos dizendo o que crer e o que fazer. Mas ver a Bíblia como sagrada em seu status leva a um modelo diferente de autoridade bíblica. Em vez de ser uma autoridade acima de nós, a Bíblia é a base do mundo no qual os cristãos vivem.
O resultado: o modelo monárquico de autoridade bíblica é substituído por um modelo dialogal de autoridade bíblica. Em outras palavras, o cânon bíblico nomeia a coleção básica de documentos antigos com os quais devem estar em constante diálogo. Esta conversa contínua é definitiva e constitutiva da identidade cristã. Se o diálogo cessa ou torna-se falho, então deixamos de ser cristãos e nos tornamos outra coisa. Então a autoridade da Bíblia é seu status como nosso básico e antigo parceiro de conversação.
Ainda assim, por a Bíblia ser um produto humano além de escritura sagrada, o contínuo diálogo precisa ser uma conversa crítica. Há partes na Bíblia que nós decidiremos que não precisam ou não devam ser honradas, ou porque discernimos que elas eram relevantes para tempos antigos mas não o são para o nosso próprio tempo, ou porque nós discernimos que elas nunca foram a vontade de Deus. (Não quero me estender muito em listagens, mas um exemplo de cada pode ser de ajuda. (1) O conselho de Paulo sobre se é permissível comer sobras de carne de sacrifícios pagões era relevante para o seu tempo, apesar de hoje não ser mais. (2) Não posso crer que alguma vez tenha sido a vontade de Deus que as mulheres e filhos dos inimigos de alguém em guerra devessem ser mortos, para usar um exemplo da Bíblia Hebraica; ou que seja a vontade de Deus que a maioria da população da Terra seja destruída na segunda vinda de Cristo, para usar um exemplo do Novo Testamento.)
Mas diálogo crítico com a Bíblia implica não simplesmente que façamos julgamentos discernidos sobre os textos. Também significa que permitimos que os textos nos moldem e nos julguem. Enquanto lemos a Bíblia, devemos não apenas trazer nossa inteligência crítica conosco, mas também ouvir. Sempre digo a meus alunos que ler bem envolve ouvir bem – buscar ouvir o que o texto está nos dizendo e não simplesmente absorver o texto no que nós já pensamos.
Ser cristão significa viver dentro do mundo criado pela Bíblia. Nós temos de ouví-la bem e permitir que suas narrativas centrais formem nossa visão de Deus, nossa identidade, e nosso senso do que fidelidade a Deus significa. Deve dar forma a nossa imaginação, aquela parte de nossa psique na qual nossas imagens básicas da realidade e da vida residem. Devemos ser uma comunidade formada pela escritura. O propósito de nosso diálogo contínuo com a Bíblia como escritura sagrada é nada menos que isso.
A BÍBLIA COMO SACRAMENTO DO SAGRADO
Sendo assim, uma principal função da Bíblia é a formação da visão e identidade cristãs. A Bíblia também tem outra função primária, e é um outro aspecto da relação entre a Bíblia e Deus: a Bíblia é um sacramento do sagrado.
Na tradição cristã, a palavra “sacramento” freqüentemente refere-se a um dos sacramentos específicos: para os protestantes, os dois sacramentos de batismo e da eucaristia; para os católicos, aqueles dois mais cinco outros. Central para a definição de “sacramento” neste sentido particular é o de que algo sacramental seja “um meio da graça”.
A palavra “sacramento” também tem um significado mais amplo. No estudo da religião, um sacramento é comumente definido como um mediador do sagrado, um veículo pelo qual Deus torna-se presente, um meio através do qual o Espírito é experimentado. Este significado inclui os dois (ou sete) Sacramentos Cristãos, mesmo sendo mais amplo. Virtualmente qualquer coisa pode tornar-se sacramental: natureza, música, oração, nascimento, morte, sexualidade, poesia, pessoas, peregrinações, até mesmo participação em esportes, etc. Coisas são sacramentais quando elas se tornam ocasiões para a experiência de Deus, momentos quando o Espírito torna-se presente, tempos quando o sagrado torna-se uma realidade experimentável.
A Bíblia freqüentemente funciona desta forma sacramental nas vidas de cristãos. Ela funcionou assim, por exemplo, nas experiências de conversão de muitas das figuras centrais da história cristã. A experiência de conversão de Agostinho aconteceu quando ele ouviu uma criança cantando “Toma e lê”, o que fez com que ele lesse uma passagem na carta de Paulo aos Romanos, que mudou sua vida. A experiência da graça de Martinho Lutero, assim como o movimento do Espírito no coração de John Wesley, aconteceram por meio da imersão na escritura. Em cada caso, eles experimentaram a Bíblia como um meio por meio do qual o Espírito se dirigia a eles no presente.
O uso sacramental da Bíblia está também entre as práticas espirituais tanto de judeus quanto de cristãos. A meditação na Torá é uma antiga prática judaica. Na tradição cristã, uma prática espiritual arquitetada por Ignácio de Loyola envolve a meditação nas imagens de um texto bíblico até que elas se tornem animadas pelo Espírito. Uma outra prática, a lectio divina, envolve entrar em um estado contemplativo e ouvir uma passagem de escritura ser lida em alta voz algumas vezes, com períodos de silêncio entre cada leitura. Nestes exemplos, o propósito da prática não é ler ou ouvir a Bíblia para informação ou conteúdo. Ao contrário, o propósito é ouvir o Espírito de Deus falar através das palavras do texto bíblico.
Para muitos cristãos, a Bíblia às vezes torna-se sacramental em leituras devocionais privadas. Assim como as práticas mencionadas anteriormente, o propósito da leitura devocional não é a aquisição de conteúdo. É, antes, abertura à experiência de Deus dirigindo-se ao leitor por meio de uma frase ou verso, abertura à sensação do Espírito presente no interior. Em tais momentos a Bíblia se torna sacramental, um instrumento da graça e mediadora do sagrado. Deus “fala” através das palavras do texto bíblico.
Ver a Bíblia como um sacramento do sagrado também conecta-nos de volta à Bíblia como um produto humano. O pão e o vinho do sacramento cristão da eucaristia são evidentemente produtos humanos. Alguém fez o pão, e alguém fez o vinho. Não pensamos no pão e no vinho como sendo “perfeitos” (seja lá o que essa palavra signifique). Ao contrário, afirmamos que por meio de ou nestes produtos evidentemente humanos de pão e vinho, Cristo torna-se presente para nós. Então, também por meio de ou nas palavras humanas da Bíblia, o Espírito de Deus se dirige a nós.
Nas liturgias de muitas denominações, as seguintes palavras são ditas após a leitura de uma passagem da Bíblia: “Palavra do Senhor.” Com minha ênfase na Bíblia como um produto humano, eu às vezes brinco que deveríamos dizer: “Pensamentos da antiga Israel”, ou “Pensamentos do movimento cristão primitivo”. Mas quando quero ser sério em vez de exibir meu bom humor, acho serem as palavras usadas no Livro de Oração Comum da Igreja Anglicana da Nova Zelândia exatamente corretas: “Ouçam o que o Espírito está dizendo à Igreja.” O Espírito de Deus fala através das palavras humanas destes antigos documentos: a Bíblia é um sacramento do sagrado.
A BÍBLIA COMO A PALAVRA DE DEUS
A função sacramental da escritura leva a uma observação final sobre a relação entre Deus e a Bíblia: a Bíblia como sendo “a Palavra de Deus”. Como já mencionado, falar da Bíblia como “a Palavra de Deus” tem freqüentemente levado os cristãos a verem a Bíblia como tendo vindo de Deus. A este ponto já é óbvio que as lentes que eu estou prescrevendo para ler a Bíblia não a vêem desta forma.
O que significa chamar a Bíblia de “a Palavra de Deus”? È importante enfatizar que a tradição cristã através de sua história tem falado da Bíblia como sendo a Palavra de Deus (P maiúsculo e singular), e não como sendo as palavras de Deus (p minúsculo e plural). Se tivesse usado a segunda forma, então alguém poderia, com razão, afirmar que crer nas palavras da Bíblia como sendo as palavras de Deus seria indispensável para ser cristão.
Mas o uso de um P maiúsculo e do singular sugere um significado diferente: “Palavra” está sendo usado num sentido metafórico e não-literal. Como com metáforas em geral, esta ressoa com mais de uma nuança de significado. Uma palavra é um meio de comunicação, envolvendo tanto o falar quanto o ouvir. Uma palavra é um meio de manifestação; nós nos manifestamos ou nos revelamos por meio de palavras. Palavras encurtam a distância entre nós e outros: nos comunicamos e nos tornamos íntimos por meio de palavras.
Chamar a Bíblia de a Palavra de Deus é vê-la de todas essas formas. A Bíblia é um instrumento de auto-revelação do divino. A expressão teológica tradicional para isto é “a Bíblia como revelação de Deus”. Na Bíblia, como fundamento do mundo cultural-lingüístico cristão, os cristãos encontram a revelação de Deus – não por ser a Bíblia as palavras de Deus, mas porque a Bíblia contém as narrativas e tradições primárias que revelam o caráter e vontade de Deus.
Ver a Bíblia como a Palavra de Deus também sublinha sua função sacramental: as palavras da Bíblia às vezes se tornam um mediador do sagrado pelo qual o Espírito dirige-se a nós no presente. Em resumo, chamar a Bíblia de a Palavra de Deus refere-se não à sua origem mas a seu status e função.
METÁFORAS FINAIS PARA A NOSSA VISÃO DA BÍBLIA
No período moderno, os cristãos têm freqüentemente enfatizado a crença na Bíblia. Eu concluo esta parte de nosso curso com três metáforas, todas sugerindo uma maneira muito diferente de ver a relação entre os cristãos e a Bíblia.
Um Dedo Apontando Para a Lua
A primeira metáfora vem da tradição budista. Os budistas geralmente falam dos ensinamentos do Buda como sendo “um dedo apontando para a lua”. A metáfora ajuda a proteger contra o erro de pensar que ser um budista significa crer nos ensinos budistas – ou seja, crer no dedo. Como a metáfora infere, alguém deve ver (e prestar atenção em) aquilo que o dedo aponta.
Para aplicar a metáfora à Bíblia, a Bíblia é como um dedo apontando para a lua. Os cristãos às vezes, cometem o erro de pensar que ser cristão seja crer no dedo, em vez de ver a vida cristã como um relacionamento com aquilo para o qual o dedo aponta.
A Bíblia Como Lente
Até agora tenho falado das lentes através das quais vemos a Bíblia. Agora estou aplicando a metáfora da lente à própria Bíblia: a Bíblia como uma lente. A Bíblia é como uma lente através da qual vemos Deus, mas algumas pessoas pensam que seja extremamente importante crer na lente.
Como na metáfora do dedo que aponta para a lua, há uma grande diferença entre crer na lente e usar a lente como uma forma de ver aquilo que está além da lente.
A Bíblia Como Sacramento
Como uma metáfora final, volto à Bíblia como sacramento. Agora, entretanto, eu estendo a metáfora para que possa incluir a tradição cristã como um todo: a Bíblia, assim como os credos cristãos, liturgias, rituais, práticas, hinos, músicas, arte, etc. Quando se vê o cristianismo como um sacramento do sagrado, ser cristão não se trata de crer no cristianismo. Isto seria como crer no pão e vinho da eucaristia, em vez de deixar o pão e o vinho desempenharem seu papel sacramental de mediar a presença de Cristo. Seria como crer no dedo ou na lente.
Entretanto, ser cristão trata-se de um relacionamento com o Deus que é mediado pela tradição cristã como sacramento. Ser cristão é viver dentro da tradição cristã como um sacramento e deixá-la realizar sua obra dentro de nós e entre nós.
Blog do Rev. Gibson da Costa. Os objetivos deste blog são compartilhar uma perspectiva cristã comprometida com a graça extravagante, a inclusão radical, e a compaixão inflexível; abordar a fé cristã através das lentes da teologia liberal cristã, e num espírito ecumênico e questionador; e contribuir com a voz daqueles cristãos que rejeitam o dogmatismo cego e a intolerância religiosa em sua jornada espiritual e, consequentemente, em suas relações sociais. Unitarismo, Cristianismo Unitarista.
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