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domingo, 7 de outubro de 2007

LIÇÃO 3 - HISTÓRIA E METÁFORA

Nesta lição movemos das formas de ver a Bíblia ao tópico mais específico de leitura da Bíblia. De forma resumida, chamo o método que desenvolveremos de “abordagem histórico-metafórica”. Ele pressupõe as afirmações centrais sobre a Bíblia feitas na lição anterior: sua origem como uma resposta humana a Deus, seu status para os cristãos como escritura sagrada, e suas funções de alicerce do mundo cristão e sacramento do sagrado.


A ABORDAGEM HISTÓRICO-METAFÓRICA

Os dois adjetivos na frase “abordagem histórico-metafórica” são crucialmente importantes. Compactamente definirei ambas antes de descrevê-las mais detalhadamente.

Com “abordagem histórica”, quero dizer todos os métodos que são relevantes ao discernimento dos antigos significados históricos dos textos bíblicos. A principal preocupação da abordagem histórica é a pergunta no tempo passado: “O que este texto significava no antigo cenário histórico no qual foi escrito?” - Por “abordagem histórica”, quero dizer mais amplamente uma forma não-literal de ler os textos bíblicos. Uma leitura metafórica não se confina aos sentidos literal, factual e histórico de um texto. Ela move-se além rumo à pergunta: “O que esta narrativa significa como estória, independente de sua factualidade histórica?”


A Abordagem histórica

A abordagem histórica focaliza-se na iluminação histórica de um texto em seu contexto primevo. Como uma ampla categoria, esta abordagem cobre todos os métodos de criticismo histórico que têm sido desenvolvidos por estudiosos da Bíblia nos últimos séculos. A palavra “criticismo” talvez seja infeliz, simplesmente porque no uso popular ela freqüentemente tem um significado negativo de busca de erros. Mas na frase “criticismo histórico”, “criticismo” significa “discernimento” - em outras palavras, se trata do julgamento discernido sobre assuntos históricos.

O Que É. A abordagem histórica inclui os métodos tradicionais de criticismo de fontes, criticismo de formas, criticismo de redação, e criticismo canônico. Também inclui métodos inter-disciplinários mais recentes de estudo histórico. Às vezes chamados de “criticismo social-científico”, estes envolvem o uso de modelos e análises derivados de estudos das sociedades agrícolas pré-industriais, antropologia cultural, etc. Estes métodos inter-disciplinários são especialmente úteis para a construção do contexto antigo no qual textos bíblicos foram falados ou escritos. Eles nos ajudam a entender os diferentes mundos culturais nos quais a Bíblia se originou.

O foco de uma abordagem histórica é duplo: o significado histórico de um texto e seu contexto histórico. O contexto no qual palavras são ditas ou escritas, ou ações são feitas, dão ampla forma a seu significado. A palavra “contexto” sugere muito: o prefixo latino CON significa “com”. Sendo assim, con-texto é aquilo que vai com um texto.

Por quê é Importante. Apesar de o uso devocional da Bíblia poder ser bem independente da abordagem histórica, a segunda é indispensável para genuinamente se ouvir a Bíblia como uma coleção de documentos do passado. Ela reconhece que a Bíblia como um todo e seus textos individuais são artefatos históricos: coisas feitas no passado. Para dizer o óbvio, eles são artefatos do passado distante. A Bíblia Hebraica foi escrita entre aproximadamente meados do décimo século antes da era cristã e meados do segundo século antes de Cristo. O Novo Testamento foi escrito de aproximadamente 50 d.C. até o princípio ou meados do primeiro século da era cristã (Muitos estudiosos datam as porções mais antigas da Bíblia Hebraica, encontradas no Pentateuco, como sendo de cerca de 900 a.C., e datam as porções mais ulteriores – o livro de Daniel – como sendo de cerca de 165 a.C.. O documento mais antigo do Novo Testamento é provavelmente a primeira carta de Paulo à sua comunidade em Tessalônica, escrito por volta dos anos 50 d.C., e o documento mais recente é II Pedro, escrito entre 125 e 150 d.C.).

O estudo histórico leva a sério a vasta distância histórica e cultural entre o passado bíblico e nós. Ele procura entender a Bíblia como uma coleção de documentos antigos produzidos em mundos muito diferentes do nosso.

O estudo histórico da Bíblia é uma das glórias dos estudos modernos. Tem sido muito iluminador. Sem ele, muito da Bíblia continuaria simplesmente opaco. Pôr passagens bíblicas em seu contexto antigo as faz tomar vida. Permite-nos ver significados nestes textos antigos que de outra forma estariam escondidos de nossa vista. Desenterra significados que de outra forma estariam enterrados no passado. Além do mais, permite-nos ouvir a estranheza destes textos que vêm até nós de mundos que nos são estranhos. Assim nos ajuda a evitar ler a Bíblia simplesmente com nossas agendas atuais em mente e liberta a Bíblia para falar com suas próprias vozes.

Limitações. Ainda assim, a abordagem histórica tem suas limitações. Algumas dessas limitações têm a ver com a maneira como ela tem sido praticada no período moderno. Quando acoplada à visão de mundo moderna, com seu ceticismo a respeito da realidade espiritual e sua preocupação com factualidade, às vezes leva a um “achatamento” dos textos. Que os textos bíblicos possam estar dizendo algo sobre Deus, ou sobre experiências genuínas de Deus, ou sobre eventos que vão além das fronteiras do que é considerado possível pela visão de mundo moderna – estas alternativas são freqüentemente ignoradas.

Além do mais, grande parte dos modernos estudos bíblicos é de natureza técnica e especializada, estudiosos freqüentemente discordam uns dos outros, e pouco parece oferecer infalibilidade. O resultado é que muitas pessoas que foram para um seminário, por exemplo, motivadas por um forte senso de vocação cristã e amor pela Bíblia sentem como se o moderno estudo bíblico tirasse a Bíblia deles. Alguns, tanto membros do clero quanto estudiosos, não se recuperaram. Para alguns, a Bíblia continua em pedaços. Outros lançam ataques ferrenhos contra a crítica histórica, acusando-a de falida. Mas mesmo aqueles que a atacam (a não ser que sejam fundamentalistas) não podem viver sem ela.

Há mais uma limitação, e ela é intrínseca: o criticismo histórico trata apenas do significado antigo do texto. Seu foco, como mencionado anteriormente, é a pergunta no passado: “O que este texto significou na e para a comunidade antiga que o produziu?” A não ser que suplementado por outra abordagem, o criticismo histórico deixa o texto preso ao passado.


A Abordagem Metafórica

A abordagem metafórica permite-nos ver e afirmar significados que vão além da particularidade do que os textos significaram em seu cenário antigo. Como a abordagem histórica, envolve muitas coisas, abraçando muitas disciplinas. O que todas essas disciplinas envolvidas têm em comum é uma maneira de ler a Bíblia que avança além dos significados históricos dos textos.

O Que É. Uso as palavras “metáfora” e “metafórica” em um sentido bem amplo. Em seu significado limitado, “metáfora” refere-se a um tipo muito específico de linguagem comparativa e distingue-se de sua prima próxima “símile”: uma símile explicitamente usa a palavra “como” quando faz uma comparação, enquanto que uma metáfora não o faz. Por exemplo, “Meu amor é como uma rosa vermelha” é uma símile. “Meu amor é uma rosa vermelha” é uma metáfora. Neste curso, entretanto, eu uso “metáfora” e “metafórica” em um sentido muito mais amplo.

A linguagem metafórica é intrinsecamente não-literal. Ela simultaneamente afirma e nega: x é y, e x não é y. A afirmação “Meu amor é uma rosa vermelha” afirma que o(a) meu(minha) amado(a) seja uma rosa mesmo negando-o. O(a) meu(minha) amado(a) não é uma rosa, salvo se eu estiver literalmente apaixonado por uma flor. Entretanto, há algo a respeito de meu(minha) amado(a) que é como uma rosa.

Esta compreensão leva a uma segunda característica da linguagem metafórica: ela tem mais de uma nuança de significado. Em termos de suas raízes gregas, “metáfora” significa “levar com”, e o que a metáfora leva ou carrega são ressonâncias ou associações de significado. O uso do plural é deliberado: uma metáfora não pode ser reduzida a um único significado. (Se pudesse alguém poderia simplesmente expressar aquele significado em linguagem não-metafórica.) Para retornar ao exemplo da rosa mais uma vez, dizer, “Meu amor é uma rosa vermelha”, evoca mais de uma associação. A metáfora pode apontar para a beleza do meu(minha) amado(a), para o seu aroma agradável, para a sua exuberância; pode também apontar para sua natureza efêmera e finita (já que, como uma rosa, meu-minha amado-a definhará e morrerá); pode até mesmo estar apontando para dificuldades, pois há espinhos entre as rosas. Em resumo, a linguagem metafórica é intrinsecamente multivalente, com uma pluralidade de associações.

“Metáfora” também significa “ver como”: ver algo como uma outra coisa. A metáfora é uma arte lingüística ou verbal. Se puder agüentar o exemplo da rosa por mais uma vez, eu vejo meu(minha) amado(a) como uma rosa. Ou, para usar um exemplo bíblico, nós podemos ver a narrativa do êxodo como uma narrativa metafórica da relação divina-humana, descrevendo o apuro humano e os meios de livramento.

Uma abordagem metafórica da Bíblia enfatiza, assim, metáforas e suas associações. Enfatiza a ação de ver e não a ação de crer. O ponto não é o de crer numa metáfora, e sim ver em luz dela.

Finalmente, metáforas podem ser profundamente verdadeiras, mesmo que não sejam literalmente verdadeiras. A metáfora é uma poesia mais(x), e não uma factualidade menos(x). Ou seja, a metáfora não é menos que o fato, e sim mais. Algumas coisas são melhor expressas em linguagem metafórica; outras podem ser unicamente expressas em linguagem metafórica.

Uma abordagem metafórica da Bíblia é de importância fundamental para muitos tipos de interpretações modernas. Estes tipos incluem teologia narrativa, que centraliza-se no significado de estórias como estórias, e algumas formas de crítica literária, nos quais o foco está em como os textos funcionam como literatura independente de seus significados históricos originais.

O criticismo arquetípico, um terceiro tipo de abordagem metafórica, envole o estudo de símbolos e estórias arquetípicas, que são tipicamente transculturais. O criticismo arquetípico (ou crítica arquetípica) mais obviamente leva a uma leitura psicológica dos textos bíblicos. Mas vai além do psicológico também, pois tais narrativas e símbolos às vezes se conectam também à realidades sociais.

Uma abordagem metafórica também inclui alguns tipos antigos de interpretação. Os escritores do Novo Testamento freqüentemente usavam textos da Bíblia Hebraica de uma forma não-literal. A prática continuou na leitura “espiritual” ou “alegórica” da escritura que se disseminou no cristianismo do segundo século à Idade Média. Durante esses séculos, teólogos cristãos freqüentemente falavam de quatro níveis de interpretação dos textos bíblicos: o literal, o alegórico, o anagógico, e o tropológico. Os detalhes desses níveis não importam para o meu presente propósito, que é apenas indicar o escopo e antiguidade da interpretação metafórica.

Justificativa. A justificativa para uma abordagem metafórica é dupla. Primeiro, algumas das narrativas bíblicas são manifestamente metafóricas e, assim, requerem uma interpretação metafórica. Esta compreensão não é moderna. No terceiro século, um teólogo cristão e estudioso bíblico chamado Orígenes distinguia entre os significados “espirituais” e “físicos” da Bíblia. Por “significados espirituais”, ele queria dizer aproximadamente o que eu quero dizer por metafóricos. Por “significados físicos”, ele queria dizer significados literais-factuais. Usando estas distinções, Orígenes argumentava que enquanto a Bíblia como um todo deva ser lida em um sentido espiritual, algumas partes não devem ser lidas em um sentido físico.

Mas mesmo quando uma narrativa bíblica não é manifestamente metafórica, há justificativas para lê-la com uma abordagem metafórica. A razão é que a Bíblia é um “clássico religioso”. Um clássico é uma obra literária que perdurou através do tempo e foi (e continua a ser) lida e relida em novos cenários. Por definição, um clássico tem um excesso de significados. Seu significado não é confinado à intenção de seu autor ou ao seu cenário original.

Limitações. A limitação básica de uma abordagem metafórica é o perigo de a imaginação vagar muito livremente, produzindo interpretações descontroladas e fantasiosas que tenham pouco ou nada a ver com o texto real.

Um exemplo clássico é a interpretação de Agostinho da parábola do Bom Samaritano no evangelho de Lucas (10:29-37 - A interpretação de Agostinho está em sua Questiones Evangeliorum II.19). Jesus conta a narrativa de um homem que enquanto viajava de Jerusalém a Jericó é atacado e espancado por ladrões, e deixado quase morto na estrada. Dois oficiais do templo (um sacerdote e um levita) aproximam-se e passam pelo outro lado da estrada. Então um samaritano, um membro de um grupo desprezado, aproxima-se, cuida das feridas do homem, põe-lhe sobre um jumento, e lave-o a uma hospedaria. Para Jesus, é uma estória sobre o que significa ser compassivo.

Agostinho lê a narrativa de forma bem diferente. Menciono aqui apenas alguns dos significados que ele encontrou. O homem que viajava de Jerusalém a Jericó é Adão. Os ladrões que o atacaram são o demônio e seus anjos. Eles espancam Adão persuadindo-o a pecar e o desnudam de sua imortalidade. O sacerdote e o levita que passam pelo homem são representantes da antiga dispensação, que não podem prover salvação. O samaritano que vem a sua ajuda é Jesus. O óleo com o qual ele unge as feridas de Adão é o conforto da boa esperança. O animal sobre o qual Adão é posto é a carne da encarnação. A hospedaria à qual Adão é levado é a igreja, e o hospedeiro é São Paulo. Assim, na leitura de Agostinho, a parábola se torna uma alegoria da narrativa cristã da salvação da queda de Adão através de Jesus.

Essa leitura é engenhosa. O problema, claro, é que essa leitura não tem nada a ver com o texto. Não se pode imaginar que Jesus ou o autor de Lucas quisessem dizer algo neste sentido. Não apenas é completamente fantasiosa, como obscurece o significado da parábola e, assim, de certa forma destrói o texto.

Sendo assim, a abordagem metafórica precisa de controles: não se pode fazer uma leitura metafórica que não possua ligações expressas no texto. Entretanto, os controles devem ser “leves”, já que uma das principais funções da abordagem metafórica é evitar que um texto seja confinado ao passado.

Os controles necessários são providos em parte pela abordagem histórica e em parte pelo discernimento da comunidade à qual a interpretação é oferecida. Alguns fatores entram no discernimento da comunidade: sua percepção do significado da Bíblia como um todo, sua compreensão da narrativa cristã como um todo, e seu senso de “propriedade”. Se uma interpretação não fizer sentido a ninguém mais além do indivíduo que a oferece, dificilmente terá qualquer importância.

Em resumo, as abordagens histórica e metafórica à leitura da Bíblia se necessitam mutuamente. A histórica necessita da metafórica para que o texto não seja aprisionado ao passado. A metafórica necessita da histórica para que não se torne fantasia subjetiva.

No restante desta lição, eu tenho dois propósitos. O primeiro é sugerir que a Bíblia seja uma combinação de história e metáfora e que, portanto, requer esta abordagem. O segundo é ilustrar o tipo de leitura que resulta desta abordagem.


A BÍBLIA COMO HISTÓRIA E METÁFORA

A Bíblia é uma combinação de história e metáfora. Só para dizer o mesmo de maneira um pouco diferente, a Bíblia é uma combinação de memórias históricas e de narrativas metafóricas.

O significado de “história relembrada” ou “memórias históricas” é óbvio. Alguns eventos reportados na Bíblia realmente aconteceram, e as antigas comunidades de Israel e do movimento cristão preservaram a memória desses relatos como fatos que realmente ocorreram. Na realidade, a narrativa bíblica está baseada na história dessas duas comunidades.

O significado de “narrativas metafóricas” requer mais explicação. Na Bíblia, tais narrativas se encaixam em duas categorias. A primeira inclui narrativas nas quais um evento que ocorreu (ou que possa ter ocorrido) às quais são dados significados metafóricos. A segunda cobre narrativas puramente metafóricas.


Narrativas Que Metaforizam a História

O primeiro tipo de narrativa metafórica é um relato que combina história e metáfora; e resulta no que poderíamos chamar de “história metaforizada”. Um evento histórico está por trás do relato, mas a forma na qual o história é contada dá à narrativa um significado metafórico também. Por exemplo, eu penso que haja boas bases históricas para se dizer que Jesus realmente tenha restaurado a visão de algumas pessoas cegas. Uma ou mais das narrativas que reportam tal evento provavelmente refletem memória histórica. Mas a maneira como estes eventos são contados dá a eles um significado metafórico também.

A maneira como o autor do evangelho de Marcos conta os eventos dos dois homens cegos a quem Jesus deu a visão fornece um exemplo esclarecedor. As duas narrativas dão forma à grande divisão central daquele evangelho – uma divisão que descreve a viagem final de Jesus a Jerusalém, contém três ditos solenes sobre sua iminente morte e ressurreição, e fala do discipulado como sendo o seguimento a Jesus nessa jornada (Marcos 8:27 – 10:45).

No início desta divisão, Marcos coloca o evento do homem cego de Betsaida. Jesus restaura sua visão em duas etapas. Depois da primeira, o homem vê pessoas, mas não claramente: “Estou vendo homens; parecem árvores que andam.” Após Jesus pôr suas mãos sobre ele uma segunda vez, o homem vê tudo “claramente” (Marcos 8:22-26).

No final da divisão está a narrativa do homem cego, chamado Bartimeu. Ele grita: “Jesus, filho de Davi, tem piedade de mim!” Jesus pergunta: “O que você quer que eu faça por você?” Em linguagem deveras evocativa, Bartimeu expressa seu desejo mais profundo: “Eu quero ver de novo”. Então, se nos conta: “Bartimeu começou a ver novamente e seguia Jesus pelo caminho” (Marcos 10:46-52).

Ao colocar estas narrativas onde ele as coloca, o autor de Marcos dá a elas um significado metafórico, mesmo que uma delas ou ambas reflitam a 'história relembrada': ter a visão restaurada – ver novamente – é ver o caminho de Jesus. Esse caminho, essa rota, envolve caminhar com ele da Galiléia a Jerusalém, o lugar de morte e de ressurreição, de fins e de começos. Ver isso é ter os olhos abertos.

Dessa forma, a maneira como Marcos usa estas narrativas resulta em história metaforizada. Além do mais, a divisão como um todo provê ainda um outro exemplo de história relembrada e metaforizada. História relembrada: Jesus realmente fez uma viagem final a Jerusalém. História metaforizada: a forma como a narrativa daquela viagem é feita torna-lhe uma narrativa metafórica sobre o caminho do discipulado.


Narrativas Puramente Metafóricas

O segundo tipo de narrativa metafórica consiste de narrativas que são puramente metafóricas. Nenhum evento histórico particular se esconde por trás delas. Do contrário, as narrativas como um todo são metafóricas ou simbólicas. Exemplos desta categoria na Bíblia Hebraica são as narrativas da criação e do início da humanidade, a narrativa arespeito de Jonas e do peixe enorme que o engoliu, e a narrativa a respeito do sol parado no céu no tempo de Josué. Exemplos no Novo Testamento incluem algumas das narrativas contadas pelo movimento cristão primitivo a respeito de Jesus – seu nascimento, sua caminhada sobre as águas, a multiplicação dos pães e peixes, a transformação da água em vinho, etc.

A decisão sobre se ou não ver uma narrativa como sendo puramente metafórica envolve dois fatores. O primeiro centra-se nos elementos presentes na própria narrativa. A narrativa aparenta estar relatando algo que aconteceu, ou há sinais dentro da narrativa sugerindo que ela seja lida simbolicamente? As narrativas israelitas do início do mundo contêm muitos desses sinais, e as narrativas a respeito de Jesus mencionadas fazem uso de ricos temas simbólicos extraídos da Bíblia Hebraica.

O segundo fator envolve um julgamento sobre o que chamo de “os limites do espetacular”. Eu deliberadamente falo de “o espetacular” em vez de “milagres”. O entendimento comum moderno de milagres, aceito tanto por aqueles que os aceitam como por aqueles que os negam, pressupõe um entendimento do universo como sendo um sistema fechado de leis naturais. Milagres são entendidos como sendo intervenções sobrenaturais de um Deus “lá em cima” em um sistema natural de causa e efeito, de outra forma completamente previsível. Por eu não aceitar esta forma de pensar a respeito da relação de Deus com o universo, eu evito o termo “milagres”. “O Espetacular”, por outro lado, simplesmente se refere a eventos que vão além do que nós comumente pensamos ser possível.

Sendo assim, a questão sobre se há “limites para o espetacular” seria: “Há coisas que nunca acontecem em nenhum lugar?” - E enquanto pensamos a respeito desta questão, é importante não por limites muito estreitos, como a visão de mundo da modernidade faz. Mais coisas são possíveis, e mais coisas acontecem, do que a moderna visão de mundo permite.

Por exemplo, eu penso que Jesus realmente tenha realizado curas paranormais e que elas não possam simplesmente ser explicadas em termos psicossomáticos. Eu estou até mesmo disposto a considerar que fenômenos espetaculares, tais como levitação, possam acontecer. Mas nascimentos virginais, multiplicação de pães e peixes, e transformação de água em vinho, acontecem em algum lugar? Se eu me persuadisse de que elas acontecem, então eu estaria alimentando a possibilidade de que as narrativas a respeito de Jesus que relatam tais eventos também conteriam história relembrada. Mas o que não posso fazer como um historiador é dizer que Jesus poderia fazer tais coisas mesmo quando nenhuma outra pessoa tenha sido capaz de fazê-lo. Assim, eu as considero narrativas puramente metafóricas.

O reconhecimento de que a Bíblia contenha tanto história quanto metáfora tem uma implicação imediata: as antigas comunidades que produziram a Bíblia freqüentemente metaforizavam sua história. Na realidade, esta é a forma pela qual eles vestiam suas narrativas de significado. Mas nós, especialmente no período moderno, temos freqüentemente transformado suas metáforas em histórias. Para dizer a mesma coisa de forma um pouco diferente: eles freqüentemente davam um sentido mitológico a sua história (para poder expressar significado), enquanto nós temos tido a tendência de dar um sentido literal à sua mitologia. E quando se dá um sentido literal a uma metáfora ou a um mito, o resultado é o absurdo. Por outro lado, quando se reconhece uma narrativa metafórica como tal, o resultado é uma poderosa narrativa. Isso nos leva diretamente ao próximo ponto.


A BÍBLIA COMO NARRATIVA DO RELACIONAMENTO DIVINO-HUMANO

Apesar de a Bíblia conter mais que narrativas, uma surpreendentemente grande quantidade dela consiste de narrativas. Há centenas de narrativas individuais, além do que chamo de “macro-narrativas”, narrativas que dão forma à Bíblia como um todo. Além do mais, estas narrativas – tanto as individuais quanto as macro – são a respeito do relacionamento divino-humano. A Bíblia Hebraica consiste das narrativas da antiga Israel de seu relacionamento com Deus. O Novo Testamento consiste das narrativas do antigo movimento cristão de seu relacionamento com Deus como revelado em Jesus.

Estas narrativas não são apenas a respeito do relacionamento divino-humano no passado. Elas são também sobre o relacionamento divino-humano no presente. A forma como a narrativa do êxodo é usada na celebração judaica do Pessach (Páscoa) todos os anos ilustra bem isso. Na liturgia que acompanha a refeição do Pessach, as seguintes palavras são ditas:

“Não foram apenas nossos pais e nossas mães que foram escravos do Faraó no Egito, mas nós, todos nós reunidos aqui esta noite, fomos escravos do Faraó no Egito. E não foram apenas nossos pais e nossas mães que foram libertos do Egito pela poderosa mão de Deus, mas nós, todos nós reunidos aqui esta noite, fomos libertos do Egito pela poderosa mão de Deus.”
O que significa dizer que “nós” (e não apenas nossos ancestrais) fomos escravos no Egito e que “nós” fomos libertos da terra de escravidão por Deus? (Isso, claro, no caso dos judeus que usam essa liturgia na noite de Pessach) Não significa que estivessem lá nos corpos de seus ancestrais, como se seus genes ou DNA estivessem presentes. A narrativa do êxodo é entendida como sendo verdadeira em cada geração. Ela apresenta a escravidão como um constante problema humano e proclama a vontade de Deus de que sejamos libertos da escravidão. A narrativa da escravidão de Israel no Egito e sua libertação por Deus é, assim, uma permanente história verídica sobre o relacionamento divino-humano. Ela é sobre Deus e os humanos.


LENDO A BÍBLIA EM UM ESTADO DE INGENUIDADE PÓS-CRÍTICA

Levando em consideração o que foi escrito anteriormente, uma grande necessidade para leitores contemporâneos da Bíblia é mover da ingenuidade pré-crítica através do pensamento crítico para a ingenuidade pós-crítica. Apesar dessas frases soarem como jargão intelectual, elas são muito esclarecedoras. Elas identificam maneiras de ler e ouvir a Bíblia que podemos reconhecer em nossa própria experiência.

Ingenuidade Pré-crítica é um estado da primeira-infância no qual aceitamos como verdadeiras quaisquer coisas que a figura de autoridade (seja ela quem for) em nossas vidas diz-nos ser verdade. Neste estado (se crescemos em um cenário cristão), simplesmente ouvimos as narrativas da Bíblia como sendo histórias verdadeiras.

O Pensamento crítico começa no final da infância e princípio da adolescência. Para que este tipo de pensamento se desenvolva, não é necessário ser um intelectual ou ir para uma faculdade. É uma fase natural do desenvolvimento humano; todos passam por ele (pode ser resistido, entretanto; o Fundamentalismo é a recusa de se aplicar o pensamento crítico à Bíblia; como uma forma de literalismo consciente, o fundamentalismo vê o efeito corrosivo do pensamento crítico moderno sobre a Bíblia e insistentemente o rejeita). Neste estágio, conscientemente ou inconscientemente, examinamos o que aprendemos na infância para avaliar o que deveríamos reter. Há realmente fadas? Os bebês são realmente trazidos por cegonhas (se é que ainda dizem isso às crianças)? A criação realmente só levou seis dias? Adão e Eva foram pessoas reais?

Na cultura ocidental moderna, o pensamento crítico está muito preocupado com factualidade e é, assim, danoso para a religião em geral e o cristianismo e a Bíblia em particular. Como pensadores críticos nessa cultura, a maioria de nós não ouve mais as narrativas da Bíblia como sendo histórias verídicas – ou pelo menos sua vericidade tornou-se suspeita. Agora precisa-se de fé para crer nelas, e fé torna-se no crer em coisas que alguém normalmente rejeitaria.

Ingenuidade pós-crítica é a habilidade de ouvir as narrativas bíblicas mais uma vez como histórias verdadeiras, mesmo sabendo-se que elas podem não ser factualmente verídicas e que sua verdade não depende de sua factualidade.

A ingenuidade pós-crítica não é um retorno à ingenuidade pré-crítica. Ela traz o pensamento crítico consigo. Ela não rejeita os discernimentos do criticismo histórico mas os integra a um conjunto maior.

Deixem-me retornar às narrativas do Natal para ilustrar isso. A ingenuidade pós-crítica é a habilidade de ouvi-las mais uma vez como sendo narrativas verdadeiras, apesar de se saber com razoável segurança que os elementos básicos da estória não sejam historicamente factuais. O pensamento crítico na forma de criticismo histórico vê a estória da concepção virginal de Jesus como uma continuação do tema de nascimentos especiais da Bíblia Hebraica. Ele está ciente de que a narrativa da estrela especial e dos magos trazendo presentes não seja história, mas que seja quase certamente a criação literária de Mateus baseada em Isaías 60.

No estado de ingenuidade pós-crítica, se sabe que a verdade das narrativas de nascimento estão em seus significados como narrativas metafóricas. Usando tanto imagens bíblicas quanto imagens religiosas arquetípicas, as narrativas de nascimento falam sobre o significado de Jesus e sobre o relacionamento divino-humano.

Apesar de o mover da ingenuidade pré-crítica ao pensamento crítico ser inevitável, não há nada inevitável em se mover para um estado de ingenuidade pós-crítica. Pode-se ficar preso ao estado de pensamento crítico por toda a vida, como um significante número de pessoas no período moderno ficam. O movimento inicial em direção ao pensamento crítico é freqüentemente experimentado como libertador, mas se alguém permanece nesse estado década após década, ele se torna um lugar muito árido e estéril no qual viver.

Precisamos ser levados ao estado de ingenuidade pós-crítica. Ele não ocorre automaticamente. Essa é uma das maiores tarefas em nosso tempo enquanto aprendemos a ler a Bíblia usando as abordagens histórica e metafórica.

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