Gibson
da Costa
Para
alguém que, como eu, pesquisa a história teológica da tradição
do Movimento Restauracionista iniciada por Joseph Smith (tradição
popularmente conhecido, para alguns inapropriadamente, como
“Mormonismo”), a publicação de mais um ensaio historiográfico
por parte de “A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos
Dias” (IJCSUD) foi uma relativamente boa “surpresa”.
Como
vocês leram aqui, em 24 de outubro de 2014, a IJCSUD já havia publicado uma série de
ensaios que lidavam com temas controversos de sua história –
especificamente sobre Joseph Smith e o Casamento Plural (poligamia) em sua tradição. Na verdade, nos últimos
anos, a denominação tem feito um esforço de lidar com sua história
– pense no excelente Projeto “Joseph Smith Papers” [Os Papeis/Documentos de Joseph Smith] –,
e a publicação daqueles artigos faz parte desse trabalho de
relativa abertura ao mundo externo (obviamente, não se trata duma
historiografia desvinculada das visões doutrinárias da
denominação). Apesar das limitações decorrentes de os artigos
terem sido escritos sob os auspícios da própria denominação, o
fato de lidarem com os questionamentos e tratarem do tema foi, em si,
um ato corajoso e louvável – independentemente das possíveis
intenções políticas por trás disso (afinal de contas, se virmos a
questão de forma mais cínica, não esqueceremos que o “Mormonismo”,
em geral, e a IJCSUD, em particular, foram alvo de protestos durante
a campanha de Mitt Romney à Presidência dos E.U.A., e vir às
claras sobre o passado poderia melhorar a percepção pública para
com a denominação).
Mas,
então, temos o mais novo ensaio historiográfico da Igreja SUD,
desta vez lidando com um outro aspecto polêmico para quem não é da
tradição: “Joseph the Seer” [Joseph, o Vidente], que estará na edição
de outubro da revista oficial da igreja em inglês, Ensign –
mas já disponível online.
Gostaria,
aqui, apenas de tecer breves observações sobre alguns trechos do
ensaio. Lembro aos amigos SUD que minha intenção não é de atacar
suas crenças, mas apenas lidar brevemente com um tema que me
interessa enquanto pesquisador de Teologia Histórica. Todas as
citações são extraídas do texto em discussão – a tradução
livre é minha.
“Visões” e “videntes”
eram parte das culturas americana e da família nas quais Joseph
Smith cresceu. Mergulhados na linguagem da Bíblia e numa mistura das
culturas anglo-europeias trazidas por imigrantes à América do
Norte, algumas pessoas no início do século XIX acreditavam que era
possível que indivíduos dotados “vissem”, ou recebessem
manifestações espirituais, por meio de objetos materiais como as
pedras videntes.
O jovem Joseph Smith aceitou
tais costumes populares de sua época, incluindo a ideia de utilizar
pedras videntes para encontrar objetos perdidos ou escondidos. Como a
narrativa bíblica mostrava que Deus usava objetos físicos para
focar a fé das pessoas ou para comunicar-se espiritualmente nos
tempos antigos, Joseph e outros presumiam o mesmo quanto ao seu
tempo. Os pais de Joseph, Joseph Smith Sr. e Lucy Mack Smith,
afirmavam a imersão da família nessa cultura e seu uso de objetos
físicos para esses fins, e os habitantes de Palmyra e Manchester,
Nova York, onde os Smith viviam, procuravam Joseph para que ele
encontrasse objetos perdidos antes de ele se mudar para a Pensilvânia
no final de 1827.1
Não
há, aí, nenhuma surpresa para qualquer pessoa que tenha mesmo que
um conhecimento apenas superficial da história religiosa de
populações rurais menos privilegiadas dos E.U.A. naquela época. Na
cultura rural de Nova York, especificamente, manifestações
“espiritualistas” se mesclavam ao “carismatismo” marcante dos
reavivamentos e dos cultos ao ar livre. Isso não é desconhecido de
absolutamente ninguém que estude os movimentos religiosos da época.
Só que, por conta dos contextos específicos da cultura dos santos
dos últimos dias, parece ter sempre havido uma negação velada
disso – especialmente quando se considera que isso era uma das
acusações utilizadas por grupos cristãos para invalidar a
autenticidade e a “irracionalidade” da narrativa de Joseph Smith
sobre suas supostas visões e revelações.
O
texto prossegue, agora, de forma apologética:
Para aqueles sem uma
compreensão de como as pessoas do século XIX, na região de Joseph,
viviam sua religião, pedras videntes podem ser coisas com as quais
não estão familiarizados, e estudiosos têm, há muito, debatido
esse período da vida dele. Em parte, como resultado do Iluminismo
[…], muitos nos dias de Joseph vieram a sentir que o uso de objetos
físicos, como pedras ou varas, fosse supersticioso e inadequado para
fins religiosos.
Nos anos posteriores, enquanto
Joseph falava sobre sua notável história, ele enfatizou suas visões
e outras experiências espirituais. Alguns de seus antigos
companheiros focaram-se em seu antigo uso de pedras videntes, num
esforço para destruir sua reputação num mundo que, cada vez mais,
rejeitava tais práticas. Em seus esforços proselitistas, Joseph e
outros dos membros iniciais escolheram não se focar na influência
da cultura popular, já que muitos potenciais conversos estavam
experienciando uma transformação em como entendiam a religião na
Idade da Razão. […]2
Enquanto,
no trecho anterior, é especialmente notório o reconhecimento de que
Joseph, de fato, procurava objetos perdidos para outras pessoas
utilizando pedras videntes (que, a partir de 1833, seriam chamadas de
“Urim e Tumim”). Na cultura “mórmon”, os próprios membros
da IJCSUD habituaram-se a desconsiderar esse tipo de acusações por
vê-la apenas como ataques de inimigos de sua tradição religiosa.
Curiosamente, essa visão é exposta no segundo parágrafo do trecho
acima, quando afirma que alguns dos antigos companheiros de Joseph
Smith falavam sobre seu anterior uso de pedras videntes “para
destruir sua reputação”. Os fieis sempre utilizaram essa
explicação para desconsiderar esse aspecto da juventude de seu
profeta.
Obviamente,
há décadas, se escreve entre os próprios “santos” – sejam os
membros da IJCSUD, sediada em Salt Lake City (Utah), ou os membros de
outros grupos minoritários do movimento, especialmente da Comunidade de Cristo, sediada em Independence (Missouri) [grupo que, há
muito, tem abraçado uma visão historiográfica mais crítica sobre
o passado de seu próprio movimento] – sobre esse envolvimento de
Joseph Smith com tais práticas. Mas esse tipo de estudo
historiográfico sempre esteve distante do “mórmon” comum, mesmo
considerando o relativo nível de letramento cultural da maioria dos
“santos dos últimos dias”.
Permitam-me,
a propósito, explicar brevemente um fato ignorado por muitos
“não-mórmons” no Brasil: não há apenas um grupo eclesiástico
advindo da “Restauração” liderada por Joseph Smith Jr. Há
várias denominações dentro do chamado “Movimento dos Santos dos
Últimos Dias” – ao todo, cerca de 80 diferentes grupos.
Entretanto, as duas maiores expressões são: [1] A Igreja de
Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – conhecida como a
Igreja “Mórmon” pelos não-membros (aquela sobre a qual estou
falando aqui e que publicou os artigos em questão) –, sendo,
praticamente, o único desses grupos conhecido pelos brasileiros; e
[2] a Comunidade de Cristo – conhecida, até 2001, como a
Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias Reorganizada –
que mantém muito pouco em comum, doutrinária e socioculturalmente,
com a IJCSUD (no Brasil, a denominação está oficialmente presente
apenas no Estado de São Paulo e talvez, por isso, seja tão desconhecida
para a maioria dos brasileiros). Esses dois principais grupos
representam, em minha opinião, as expressões mais extremadamente
opostas na tradição que chamo aqui, inadequadamente, de “mórmon”;
tendo sempre se visto, mutuamente, como “apóstatas” da
Restauração iniciada pelo – para ambos – profeta Joseph Smith.
A Comunidade de Cristo, na maioria dos aspectos, está muito próxima
a muitas outras igrejas cristãs liberais (com exceção de sua visão
acerca das Escrituras e de revelação), e muito distante da IJCSUD.
Quanto
à iniciativa da IJCSUD de discutir sua história – mesmo que de
forma ainda limitada e institucionalmente enquadrada –, parece ser
uma tentativa raquítica e atrasada dum lado, mas também intelectualmente
íntegra, de conciliar o corpo de estudos historiográficos dos
últimos 30 anos, produzidos por historiadores de seu próprio meio
(muitos dos quais sofreram punições por levantarem questionamentos
que contrariavam a doutrina oficial da denominação), com as
posições oficiais da mesma. Mesmo que limitadamente, talvez seja um
indicador das possíveis direções que os ventos estão soprando no
Vale do Lago Salgado.
Há
outros pontos interessantes no ensaio, mas os discutirei, talvez,
numa outra ocasião.
Vejamos
o que mais vem por aí!
Referências:
Referências:
[1] TURLEY
JR., Richard E.; JENSEN, Robin S.; ASHURST-MCGEE, Mark. Joseph
the Seer. In: ENSIGN,
outubro de 2015. Disponível
em: .
Acesso em: 4 ago 2015.
[2] Ibid.
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