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terça-feira, 4 de agosto de 2015

Joseph, o Vidente: mais um ensaio historiográfico dos “mórmons” de Utah



Gibson da Costa


Para alguém que, como eu, pesquisa a história teológica da tradição do Movimento Restauracionista iniciada por Joseph Smith (tradição popularmente conhecido, para alguns inapropriadamente, como “Mormonismo”), a publicação de mais um ensaio historiográfico por parte de “A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias” (IJCSUD) foi uma relativamente boa “surpresa”.

Como vocês leram aqui, em 24 de outubro de 2014, a IJCSUD já havia publicado uma série de ensaios que lidavam com temas controversos de sua história – especificamente sobre Joseph Smith e o Casamento Plural (poligamia) em sua tradição. Na verdade, nos últimos anos, a denominação tem feito um esforço de lidar com sua história – pense no excelente Projeto “Joseph Smith Papers” [Os Papeis/Documentos de Joseph Smith] –, e a publicação daqueles artigos faz parte desse trabalho de relativa abertura ao mundo externo (obviamente, não se trata duma historiografia desvinculada das visões doutrinárias da denominação). Apesar das limitações decorrentes de os artigos terem sido escritos sob os auspícios da própria denominação, o fato de lidarem com os questionamentos e tratarem do tema foi, em si, um ato corajoso e louvável – independentemente das possíveis intenções políticas por trás disso (afinal de contas, se virmos a questão de forma mais cínica, não esqueceremos que o “Mormonismo”, em geral, e a IJCSUD, em particular, foram alvo de protestos durante a campanha de Mitt Romney à Presidência dos E.U.A., e vir às claras sobre o passado poderia melhorar a percepção pública para com a denominação).

Mas, então, temos o mais novo ensaio historiográfico da Igreja SUD, desta vez lidando com um outro aspecto polêmico para quem não é da tradição: “Joseph the Seer” [Joseph, o Vidente], que estará na edição de outubro da revista oficial da igreja em inglês, Ensign – mas já disponível online.

Gostaria, aqui, apenas de tecer breves observações sobre alguns trechos do ensaio. Lembro aos amigos SUD que minha intenção não é de atacar suas crenças, mas apenas lidar brevemente com um tema que me interessa enquanto pesquisador de Teologia Histórica. Todas as citações são extraídas do texto em discussão – a tradução livre é minha.

Visões” e “videntes” eram parte das culturas americana e da família nas quais Joseph Smith cresceu. Mergulhados na linguagem da Bíblia e numa mistura das culturas anglo-europeias trazidas por imigrantes à América do Norte, algumas pessoas no início do século XIX acreditavam que era possível que indivíduos dotados “vissem”, ou recebessem manifestações espirituais, por meio de objetos materiais como as pedras videntes.

O jovem Joseph Smith aceitou tais costumes populares de sua época, incluindo a ideia de utilizar pedras videntes para encontrar objetos perdidos ou escondidos. Como a narrativa bíblica mostrava que Deus usava objetos físicos para focar a fé das pessoas ou para comunicar-se espiritualmente nos tempos antigos, Joseph e outros presumiam o mesmo quanto ao seu tempo. Os pais de Joseph, Joseph Smith Sr. e Lucy Mack Smith, afirmavam a imersão da família nessa cultura e seu uso de objetos físicos para esses fins, e os habitantes de Palmyra e Manchester, Nova York, onde os Smith viviam, procuravam Joseph para que ele encontrasse objetos perdidos antes de ele se mudar para a Pensilvânia no final de 1827.1


Não há, aí, nenhuma surpresa para qualquer pessoa que tenha mesmo que um conhecimento apenas superficial da história religiosa de populações rurais menos privilegiadas dos E.U.A. naquela época. Na cultura rural de Nova York, especificamente, manifestações “espiritualistas” se mesclavam ao “carismatismo” marcante dos reavivamentos e dos cultos ao ar livre. Isso não é desconhecido de absolutamente ninguém que estude os movimentos religiosos da época. Só que, por conta dos contextos específicos da cultura dos santos dos últimos dias, parece ter sempre havido uma negação velada disso – especialmente quando se considera que isso era uma das acusações utilizadas por grupos cristãos para invalidar a autenticidade e a “irracionalidade” da narrativa de Joseph Smith sobre suas supostas visões e revelações.

O texto prossegue, agora, de forma apologética:

Para aqueles sem uma compreensão de como as pessoas do século XIX, na região de Joseph, viviam sua religião, pedras videntes podem ser coisas com as quais não estão familiarizados, e estudiosos têm, há muito, debatido esse período da vida dele. Em parte, como resultado do Iluminismo […], muitos nos dias de Joseph vieram a sentir que o uso de objetos físicos, como pedras ou varas, fosse supersticioso e inadequado para fins religiosos.

Nos anos posteriores, enquanto Joseph falava sobre sua notável história, ele enfatizou suas visões e outras experiências espirituais. Alguns de seus antigos companheiros focaram-se em seu antigo uso de pedras videntes, num esforço para destruir sua reputação num mundo que, cada vez mais, rejeitava tais práticas. Em seus esforços proselitistas, Joseph e outros dos membros iniciais escolheram não se focar na influência da cultura popular, já que muitos potenciais conversos estavam experienciando uma transformação em como entendiam a religião na Idade da Razão. […]2


Enquanto, no trecho anterior, é especialmente notório o reconhecimento de que Joseph, de fato, procurava objetos perdidos para outras pessoas utilizando pedras videntes (que, a partir de 1833, seriam chamadas de “Urim e Tumim”). Na cultura “mórmon”, os próprios membros da IJCSUD habituaram-se a desconsiderar esse tipo de acusações por vê-la apenas como ataques de inimigos de sua tradição religiosa. Curiosamente, essa visão é exposta no segundo parágrafo do trecho acima, quando afirma que alguns dos antigos companheiros de Joseph Smith falavam sobre seu anterior uso de pedras videntes “para destruir sua reputação”. Os fieis sempre utilizaram essa explicação para desconsiderar esse aspecto da juventude de seu profeta.

Obviamente, há décadas, se escreve entre os próprios “santos” – sejam os membros da IJCSUD, sediada em Salt Lake City (Utah), ou os membros de outros grupos minoritários do movimento, especialmente da Comunidade de Cristo, sediada em Independence (Missouri) [grupo que, há muito, tem abraçado uma visão historiográfica mais crítica sobre o passado de seu próprio movimento] – sobre esse envolvimento de Joseph Smith com tais práticas. Mas esse tipo de estudo historiográfico sempre esteve distante do “mórmon” comum, mesmo considerando o relativo nível de letramento cultural da maioria dos “santos dos últimos dias”.

Permitam-me, a propósito, explicar brevemente um fato ignorado por muitos “não-mórmons” no Brasil: não há apenas um grupo eclesiástico advindo da “Restauração” liderada por Joseph Smith Jr. Há várias denominações dentro do chamado “Movimento dos Santos dos Últimos Dias” – ao todo, cerca de 80 diferentes grupos. Entretanto, as duas maiores expressões são: [1] A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – conhecida como a Igreja “Mórmon” pelos não-membros (aquela sobre a qual estou falando aqui e que publicou os artigos em questão) –, sendo, praticamente, o único desses grupos conhecido pelos brasileiros; e [2] a Comunidade de Cristo – conhecida, até 2001, como a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias Reorganizada – que mantém muito pouco em comum, doutrinária e socioculturalmente, com a IJCSUD (no Brasil, a denominação está oficialmente presente apenas no Estado de São Paulo e talvez, por isso, seja tão desconhecida para a maioria dos brasileiros). Esses dois principais grupos representam, em minha opinião, as expressões mais extremadamente opostas na tradição que chamo aqui, inadequadamente, de “mórmon”; tendo sempre se visto, mutuamente, como “apóstatas” da Restauração iniciada pelo – para ambos – profeta Joseph Smith. A Comunidade de Cristo, na maioria dos aspectos, está muito próxima a muitas outras igrejas cristãs liberais (com exceção de sua visão acerca das Escrituras e de revelação), e muito distante da IJCSUD.

Quanto à iniciativa da IJCSUD de discutir sua história – mesmo que de forma ainda limitada e institucionalmente enquadrada –, parece ser uma tentativa raquítica e atrasada dum lado, mas também intelectualmente íntegra, de conciliar o corpo de estudos historiográficos dos últimos 30 anos, produzidos por historiadores de seu próprio meio (muitos dos quais sofreram punições por levantarem questionamentos que contrariavam a doutrina oficial da denominação), com as posições oficiais da mesma. Mesmo que limitadamente, talvez seja um indicador das possíveis direções que os ventos estão soprando no Vale do Lago Salgado.

Há outros pontos interessantes no ensaio, mas os discutirei, talvez, numa outra ocasião.

Vejamos o que mais vem por aí!


Referências:

[1] TURLEY JR., Richard E.; JENSEN, Robin S.; ASHURST-MCGEE, Mark. Joseph the Seer. In: ENSIGN, outubro de 2015. Disponível em: . Acesso em: 4 ago 2015.

[2] Ibid.

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