“Se
vocês guardarem a minha palavra, vocês de fato serão meus
discípulos; conhecerão a verdade, e a verdade libertará vocês.”
(João 8:32)
Ao
longo de minha vida ministerial e acadêmica, tenho tido o desprazer
de lidar com visões deveras estereotipadas do(s)
Cristianismo(s). Visões essas que são professadas não
apenas por pessoas com baixo nível de instrução escolar formal –
que, aparentemente, tendem a abraçar formas mais “estritas” de
crenças e práticas religiosas –, mas também por aquelas que, num
outro extremo, possuem um alto nível de instrução formal –
especialmente aquelas que abraçam formas mais “estritas” duma
mentalidade contrária à religião institucionalizada (para os
quais, geralmente, o[s] Cristianismo[s] seria[m] o[s] modelo[s]
paradigmático[s]).
Obviamente,
para mim, há um grande problema com as visões “estritas” de
seja lá o que for (especialmente no que tange à fé), porque elas
são – na maioria das vezes – contextualmente “desinformadas”.
Compreendo
o(s) Cristianismo(s) como um diálogo incessante entre a “tradição”
que recebemos do passado e o nosso “contexto” presente (o nosso
“hoje”). Os Cristianismos – sim, o Cristianismo é plural
demais para que eu utilize um substantivo singular para me referir a
ele –, enquanto conjuntos de compreensões, de práticas, de
esperanças, e de pessoas, sempre foram esse “diálogo” – para
o bem ou para o mal. Assim, ao longo dos séculos, a “tradição”
é reformulada para ser capaz de conversar com a experiência do
fiel.
Alguns
dirão que essa “reformulação” é um abandono daquilo que
consideram ser “a verdade”. Isso ocorre, em parte, porque
compreendem “a verdade” como uma “substância” mensurável,
como algo que pode ser congelado ou petrificado no tempo. Como algo
fundamentalmente distinto dos contextos dos quais emerge. Os que
pensam assim, obviamente, desconsideram que sua própria visão é
uma “reformulação” da herança do passado.
Quando
olho para a história do pensamento cristão, isto é, para a forma
como as doutrinas cristãs foram (re)formuladas ao longo dos séculos
– área na qual me ocupo em minhas atividades teológicas –, esse
diálogo entre “tradição” e “contexto”, entre passado e
presente, se torna muito claro. E se torna claro, também, que é
insensato e contraditório afirmar que a “verdade” teológica
seja algo petrificado e imutável.
Quando
falo em “verdade”, aqui, me refiro tanto à nossa compreensão
teológica quanto à forma como a articulamos em nossas atividades
discursivas. A “verdade”, aqui, não inclui o objeto final ou
material de nossas reflexões. Assim, toda a Igreja – me refiro não
a uma instituição, mas a todas as pessoas que professam a fé
cristã – professa fé em Deus e, por isso, Deus é uma verdade
inquestionável para qualquer cristão professo. Essa verdade
final, entretanto, não é articulada da mesma forma por todos os
cristãos. Variadas tradições cristãs, e incontáveis cristãos
individuais, articulam uma compreensão sobre Deus que não são
aceitas por outros cristãos – ou seja, a verdade “material”
(aquilo/aquele com o qual/quem se ocupa) é a mesma, mas a verdade
“conceitual” (o que se pensa sobre a “verdade material”)
é distinta, dependendo de uma imensa variedade de circunstâncias. E
quem poderá dizer que sua verdade conceitual é a única
“verdadeira” e aceitável, se sua verdade material é, para nosso
contexto cultural, objetivamente imensurável?
Gosto
sempre de citar as palavras do grande pensador unitarista, e fundador
do campo da História das Ideias, Arthur Oncken Lovejoy, que
escreveu:
[…] pessoas que igualmente
professaram o Cristianismo e chamaram a si mesmas de cristãs
mantiveram, no curso da história, toda a espécie de crenças
distintas e conflitantes agrupadas sob esse nome, mas também que
qualquer uma dessas pessoas e seitas mantiveram, via de regra, sob
esse nome um conjunto de ideias muito variadas, cuja combinação
dentro de um conglomerado que traz um único nome e que se supunha
constituir uma unidade real foi em geral o resultado de processos
históricos de um gênero altamente complicado e curioso. […] i
Obviamente,
aqueles que utilizam a proteção dogmática como justificativa para
sua própria compreensão, e como artifício para a reprovação
daqueles que abraçam outras compreensões teológicas, dirão que
essa diversidade seja fruto de “heresias” ou de “apostasias”
– a própria utilização desses termos por alguns deles é
problemática, já que é descontextualizada. Eu, por outro lado, as
vejo como resultado dos próprios contextos nos quais as diversas
visões emergiram.
Pensemos,
por exemplo, na Cristologia, que é o campo da Teologia cristã que
se ocupa do ser e da obra de Cristo. A maioria dos não cristãos
imagina que todos os cristãos sempre tenham professado e que todos
professem que Deus seja uma Trindade (como o requer a compreensão
ortodoxa a partir do Credo de Niceia) e que, consequentemente, Jesus
seja Deus. Para a maioria dos cristãos, Deus realmente é uma
Trindade: Pai, Filho, e Espírito Santo. Claramente, entretanto,
apenas uma ínfima minoria dos cristãos consegue compreender e
explicar exatamente o que isso significa, já que o dogma ortodoxo da
Trindade se sustenta sob uma série de compreensões filosóficas e
sobre uma linguagem estranhos à maioria das pessoas hoje em dia.
Ademais, e mais importante, nem todos os cristãos foram ou são
“trinitaristas” – ou seja, nem todos os cristãos professaram
ou professam o dogma ortodoxo da Trindade.
Na
história da Teologia cristã, Jesus nem sempre foi Deus. Na verdade,
com frequência, os cristãos se esquecem – se é que se dão conta
disso – que Jesus sequer era “cristão”. Sua compreensão de
Deus estava enraizada numa tradição que, em muitos aspectos,
contradiria aquela das ortodoxias cristãs (sejam as orientais ou as
ocidentais). Jesus, de acordo com os registros dos Evangelhos, jamais
afirmou explicitamente ser Deus. E se de fato o tivesse feito, isso
teria sido um afastamento incalculável de toda a tradição
teológica das Escrituras do povo de Israel. Mas, todo estudioso
intelectualmente íntegro saberá, hoje, quando e como Jesus se
tornou Deus. As compreensões teológicas cristãs se desenvolveram
de acordo com os contextos nos quais se encontravam os que
professavam a fé em Cristo. Assim, doutrinas como as da Encarnação
e da salvação por meio dum sacrifício expiatório – que são
necessárias à noção ortodoxa da Trindade –, por exemplo,
emergiram a partir do encontro entre a fé dos primeiros “cristãos”
e as filosofias greco-romanas.
O
que é importante acentuar, contudo, é que o fato de o dogma
teológico ser uma construção humana não o torna inválido ou “não
verdade”. Muito pelo contrário. A “verdade” (lembre-se que,
aqui, me refiro à verdade enquanto o que se pensa sobre um objeto de
reflexão, e não ao objeto em si da reflexão teológica) é uma
construção da tradição na qual é (re)formulada. Assim, o que é
“verdadeiro” ou “falso” para uma comunidade de fé – ao
menos em tradições que enfatizam a comunidade enquanto centro de
aprendizado e prática, como a Igreja – é definido por aquela
própria comunidade. [Uma perspectiva que não deixa de ser paradoxal
para protestantes crescidos em culturas individualistas como as
nossas.]
A
articulação dos conceitos teológicos cristãos acerca de Jesus
Cristo e de sua relação com o todo da fé cristã passou por um
processo de construção que durou séculos – e que, na verdade,
ainda não acabou, ao menos no que tange a alguns grupos não
“ortodoxos”. E, infelizmente, muitas das decisões tomadas sobre
quem tinha razão nas disputas teológicas, após o(s)
Cristianismo(s) se associar(em) ao poder secular, basearam-se mais na
força política do que nos argumentos teológicos.
Dessa
longa história advém a projeção inconsciente que fazemos quando
lemos os textos bíblicos. Sempre gosto de enfatizar que costumamos
projetar sobre os textos que lemos visões de mundo que, em si, não
estão necessariamente presentes nesses textos. Como exemplo, sempre
utilizo a narrativa sobre Adão e Eva e o “fruto proibido” que,
em sua interpretação mais inocente, é identificado como uma “maçã”
– apesar de o texto bíblico em si não utilizar o termo. O “fruto”
foi frequentemente interpretado como “maçã” por conta do
contexto exterior à narrativa bíblica. No caso específico da
Cristologia, mesmo aqueles que afirmam basear toda a sua fé na
leitura da Bíblia, quando leem o texto sagrado, projetam sobre ele a
tradição trinitarista ortodoxa que não está
necessariamente presente lá de forma explícita. Inconscientemente,
apelam a construções filosóficas para a construção de sua
teologia, que são inseparáveis dos contextos nos quais tais
construções filosóficas emergiram e das razões e formas pelas
quais continuaram a fazer sentido para quem as abraçam hoje.
Se
pensássemos sobre outros campos teológicos, como a Eclesiologia,
por exemplo, veríamos que as três formas mais comuns de
administração/organização eclesiástica na Igreja ocidental – o
episcopalismo, o presbiterianismo e o congregacionalismo – também
dependem duma série de fatores que condicionam a visão de quem lê
o texto bíblico. Ou seja, mais uma vez, projetaremos uma visão de
mundo não plenamente presente nos textos sagrados em nossa leitura.
Ou
seja, gostemos ou não do termo ou da ideia, nossas
compreensões teológicas/religiosas
são sempre relativas,
porque sempre mantêm uma
relação com os contextos nos quais emergiram. Nossas
tradições de fé emergem num universo cultural particular e fazem
uso da língua e dos símbolos daquele universo, ao mesmo tempo em
que subvertem os valores desse universo e que, posteriormente, possam
construir um universo à parte.
Como
tenho sempre afirmado, estar consciente disso não representa uma
ameaça à minha fé pessoal – e não deveria representar uma
ameaça à fé de ninguém. Muito frequentemente, minha compreensão
tem sido atacada por outros fiéis com perguntas como “Como você
decide que partes da Bíblia são verdadeiras?”, ou com afirmações
como “Você só escolhe o que lhe é mais conveniente!”. Bem,
responder a esse tipo de perguntas ou acusações é problemático
pelo simples motivo de se basearam em premissas equivocadas. Posso
afirmar o que afirmo e manter minha fé porque ela se assenta sobre
uma série de perspectivas que são diferentes daquelas abraçadas
pelos autores daqueles questionamentos. Nossas visões de autoria,
autoridade, liberdade, consciência, comunidade, individualidade,
Divindade, humanidade etc, são distintas e, por essa razão,
chegamos a considerações bem diferentes. Ou seja, temos visões
relativas da realidade e da Realidade! Isso não nos torna mais ou
menos “verdadeiros” em relação uns aos outros – no máximo,
nos torna mais ou menos conformistas em relação às nossas próprias
tradições de fé particulares.
i LOVEJOY,
Arthur O. A grande cadeia do ser:
um estudo da história de uma ideia. Tradução Aldo Fernando
Barbieri. São Paulo: Editora Palíndromo, 2005. p.16.
+Gibson
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