No
princípio era a palavra. E a palavra, repetida por lábios tão
diversos, escondia, por trás de si, sentidos múltiplos. Essa é a
arqueologia do pensamento teológico cristão – e, na verdade, de
qualquer pensamento.
É
tolice imaginar que nossa devoção e/ou submissão às Escrituras de
nossa tradição de fé seja suficiente para atestar uma suposta
veracidade de nossas convicções, que seja assentada sobre a
universalidade conceitual entre todos os fiéis. Absolutamente todos
nós lançamos sobre as Escrituras, quando as lemos e estudamos,
nossa própria experiência – ou nosso próprio imaginário –
pessoal e coletiva(o).
Quando
lemos uma palavra no texto sagrado não atribuímos a ela o mesmo
sentido que os antigos o fizeram, nem o mesmo sentido que todos os
outros fieis que compartilhem de nossa tradição atribuem. E não o
fazemos porque estamos vivos no mundo. Cada um de nós só consegue
enxergar o mundo a partir de sua própria perspectiva – mesmo que
pensemos que estamos apenas emulando a visão de outros.
Quando
ouvimos o nome “Deus”, as palavras “salvação” ou “amor”,
o verbo “orar”, etc, não temos os mesmos sentimentos ou os
mesmos pensamentos. Podemos até pensar que esses termos tenham ou
devam ter os mesmos sentidos igualmente para todos nós, mas não é
isso que ocorre – e, para mim, não é isso que deve ocorrer.
Se,
como tantos costumam enfatizar, a “palavra de Deus” é viva,
então ela deve realmente se tornar viva para o fiel. E só se
tornará viva se ele ou ela for capaz de “traduzi-la” para a sua
própria alma. Assim, Deus, salvação, amor e orar podem e devem ter
sentidos diferentes para pessoas diferentes.
Quando
nos debruçamos sobre as Escrituras, nos erguemos “sobre os ombros”
de outros para interpretá-la. Isso porque os sentidos que atribuímos
aos textos que lemos são moldados, em parte, pelas demais concepções
que temos do mundo ao nosso redor. Assim, projetamos nossa herança
(chamemos de) cultural sobre o que lemos. Não lemos sozinhos. E, ao
mesmo tempo em que fazemos essas projeções culturais (logo,
coletivas) sobre o texto, o moldamos à nossa própria percepção do
que seja aquela herança cultural. Em outras palavras, a
leitura/interpretação é, simultaneamente, coletiva e individual.
Com
exceção da afirmação da realidade Divina, não há nenhuma
verdade universal que esteja presente ao longo de toda a Bíblia
que possa ser imposta a todos os adeptos do “Bom Livro” como um
teste de ortodoxia. Para existir, essa ortodoxia tem de ser
construída sobre outros elementos, e não o texto bíblico em si.
Não importa o quanto se afirme que “minha fé se baseia nas
Escrituras; é isso que ela diz e ponto”. Ela diz o que uma
determinada visão de mundo quer que ela diga.
Lembro-me
dum debate que impus como atividade aos meus alunos no seminário
sobre a relação entre o Cristianismo e a guerra. A pequena turma,
de treze alunos, foi dividida em dois grupos – um que deveria
defender a possibilidade do envolvimento de cristãos com a guerra, e
outro que deveria ser contrário a essa visão. Tive o cuidado de
pesquisar sua opinião anteriormente, e dividi-los de forma a
defenderem mais ou menos a visão que já abraçavam. Os grupos
deveriam utilizar a Bíblia Hebraica e o Novo Testamento como fontes
básicas para o debate. Tiveram uma semana para se preparar. Minha
intenção era exatamente mostrar a eles o quanto nossas leituras
dependem do que já carregamos de nosso “conhecimento de mundo”.
O
debate foi mediado por outros dois professores e eu.
O
debate resultou no esperado. As discussões foram acirradas, tendo se
baseado em bons argumentos, nos quais foram utilizados amostras de
textos bíblicos que pareciam apoiar a visão de cada grupo. Eles
utilizaram o mesmo manual (a Bíblia) e chegaram a considerações
muito diferentes! Apesar de terem recorrido ao seu conhecimento
histórico e linguístico para sua exegese, a maioria acreditava que
estivesse apenas utilizando os argumentos bíblicos.
Fiz
uma nova pesquisa de opinião. O tema era a Cristologia (a doutrina
acerca da natureza de Cristo) no Novo Testamento. Separei os grupos
entre trinitaristas e antitrinitaristas. Só que, desta
vez, fiz com que os participantes defendessem uma visão contrária à
sua própria. Mais uma vez, tiveram uma semana de preparação.
Dessa
vez, contudo, as coisas não foram iguais, ao menos para a maioria
dos alunos e alunas. Muitos se mostraram inseguros e menos
convincentes na defesa dum ponto de vista contrário ao seu. Os
argumentos da maioria eram fracos. Aquela turma de Mestrado, com
alunos formados nas mais variadas áreas das humanidades, falava como
se tivessem acabado de sair do Ensino Médio.
“O
que deu errado?”… Essa foi a discussão que tivemos
posteriormente.
Na
verdade, não é que algo tenha “dado errado”. O problema é que,
ao defender uma ideia que não apreciavam, que desconheciam e na qual
não acreditavam, perderam seu “chão”. As fontes textuais que
utilizaram não foram convincentemente argumentadas. Tenho certeza
que teriam feito um excelente trabalho se tivessem tido a
oportunidade de defender, cada grupo, sua própria perspectiva (ou
aquela que mais se aproximasse dela).
A
atividade ajudou-os a perceber a complexidade da atividade exegética
(interpretativa). Após aquela atividade, aparentemente puderam
perceber que a interpretação de textos sagrados (em nosso caso, a
Bíblia) segue o mesmo padrão de qualquer outro texto: quem somos e
o “lugar” onde estamos influencia/molda nossa leitura. É isso
que faz com que nossas interpretações não sejam, nem possam ser,
as mesmas. Não somos a mesma pessoa, nem ocupamos o mesmo “topos”
no mundo – e isso é verdade no que tange a pessoas que professam a
mesma tradição e sentam-se uma ao lado da outra na mesma comunidade
de fé.
A
explicação de Locke não se aplicaria aqui. Não somos uma tabula
rasa quando lemos um texto – já temos todo um universo
conceitual construído por trás de nossos olhos.
Paz
a todos!
+Gibson
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