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segunda-feira, 25 de março de 2013

Homossexualidade no piegas e desinformado discurso sobre “o mundo, o pecado, e o Diabo”!


Sempre evito, o quanto posso, entrar nas discussões idiotas sobre homossexualidade que viraram uma “darling” nos meios cristãos brasileiros nos últimos anos. E isso por inúmeras razões. A primeira delas, claro, é que sou um homem gay, e tenho uma ética teológica que dirige meu ministério. Em segundo lugar, sou um Unitarista, e, assim, minhas prioridades e compreensões religiosas, assim como minha compreensão de “moralidade”, entram em contradição sonora com aquelas da maioria dos cristãos brasileiros que têm espaço nos meios de comunicação e no palco político. Ademais, minhas crenças políticas e minha cultura pessoal geralmente são muito distintas daquelas abraçadas pela maioria daqueles nos dois lados do embate político quanto ao tema no país. Logo, a não ser que o tema seja trazido à minha atenção, por alguma razão, nunca trato disso em meus escritos públicos – a não ser pelo fato de que pesquiso a história do pensamento teológico sobre sexualidade na tradição cristã, o que me faz lidar continuamente com o questões sobre homossexualidade [o que é muitíssimo natural em meu trabalho como teólogo].

Religiosamente, sou um protestante liberal – um Unitarista também ligado à Igreja Episcopal e à Igreja Unida de Cristo [para os que desconhecem, esses são bastiões da tradição teológica liberal nos EUA]. É importante afirmar isso para que compreendam de onde vem minha formação teológica, de onde vem minha compreensão sobre ética cristã. Cristãos como eu não abraçam injunções absolutas sobre certos comportamentos – por exemplo, beber, fumar, dançar não são comportamentos proibidos em nosso meio, como ocorre com certos grupos majoritários no meio protestante brasileiro. Acreditamos que a obsessão com esses costumes sociais é produto daquilo que nos EUA é chamado de “igreja da fronteira”i e que tal obsessão prescritiva não possua base nem nas Escrituras nem na tradição cristã em geral. Acreditamos que todas as coisas venham de Deus e que, assim, são boas – mas que devam ser usadas com responsabilidade e sabedoria: ou seja, devam ser consistentes com nosso chamado a fazer o bem ao próximo, à criação e a nós mesmos. Qualquer coisa boa, quando abusada [quando usada sem cuidado e sem sabedoria], pode tornar-se algo mau, e é por essa razão que o mandamento de amar [a Deus, ao próximo e a nós mesmos] é o princípio que deve guiar nossas relações com o todo da criação – talvez isso seja uma boa forma de resumir nossa compreensão sobre moralidade.

Como isso se relaciona com a questão da homossexualidade? Ou melhor, como já me foi perguntado antes por um amigo: “Como cristãos de diferentes grupos, que afirmam honrar as mesmas Escrituras, podem chegar a conclusões tão diferentes sobre questões de moralidade sexual?” [A questão tratada entre meu amigo e eu era a celebração do casamento – religioso – entre duas pessoas do mesmo sexo em minha comunidade de fé, no qual um dos pares era um ex-membro de sua comunidade de fé.]

Falando sobre minha compreensão teológica particular, talvez partilhada pela maioria de outros membros de minha comunidade de fé, esta está fundamentada sobre a tradição bíblica, apesar de eu utilizar diferentes princípios hermenêuticos daqueles utilizados por outras tradições cristãs. Há uma clara diferença interpretativa entre a forma como um cristão liberal como eu e um “evangélico”, por exemplo, interpretamos as Escrituras. Em minha tradição, damos à experiência [individual e comunitária] uma importante função no processo exegético e hermenêutico – o que permite que desafiemos, reinterpretemos e abandonemos certas passagens bíblicas como produtos culturalmente condicionados ou mesmo irrelevantes. Comumente, refletimos teologicamente sobre certas questões, começando pela experiência da situação sobre a qual refletimos [por exemplo, a questão de casamentos de pessoas do mesmo sexo na igreja], depois discutindo as Escrituras [i.e., a Bíblia] mais em termos de sua totalidade do que de trechos isolados – as tradições “evangélicas” majoritárias no Brasil, entretanto, começam seu processo interpretativo pelas Escrituras, rejeitando [no caso específico da presença de pessoas gays na igreja] o papel da experiência nesse processo.

A posição teológica em minha tradição é, em parte, moldada pela presença de pessoas de orientação emociono-sexual gay no processo de discernimento da Escritura, enquanto que no caso das chamadas “igrejas evangélicas” essa presença está, na maioria das vezes, plenamente ausente. Entre os membros de minha igreja local, por exemplo, há indivíduos gays e lésbicas – inclusive no Ministério, no meu caso –, e suas famílias, o que faz com que nossa experiência como indivíduos e como fiéis, e a experiência de nossa comunidade conosco, seja parte integrante do processo de discernimento teológico. Aqueles de nós que têm relacionamentos românticos, por exemplo, encontram nos demais membros da comunidade testemunhas para sua vida – ou seja, em nossa comunidade de fé, um casal homossexual encontrará amigos que os tratarão com o mesmo respeito devido a um casal heterossexual. A vivência entre pessoas de diferentes experiências faz, consequentemente, com que elas se vejam de forma mais respeitosa, compreensiva e apreciativa. Como me disse um membro de minha comunidade de fé, após a celebração do casamento que citei anteriormente: “Como poderia ser contra a união de duas pessoas que conheço há tanto tempo e cujo amor vi crescer”. A experiência faz toda a diferença: a experiência dos indivíduos e a experiência de sua comunidade – é uma via de mão dupla!

A questão das relações entre pessoas do mesmo sexo não envolve apenas a questão de relações sexuais. O problema da incompreensão, em minha visão, vem em parte da desumanização da questão. Quando se fala em pessoas gays, por exemplo, utilizamos o infeliz termo “homossexual”, que em si parece trazer a miopia para o fato de que o lado sexual não é o único aspecto numa relação entre pessoas do mesmo sexo – há um lado emocional nessa questão, da mesma forma como quando falamos de pessoas utilizando o também infeliz termo “heterossexual”. Somos todos seres sexuais, mas esse não é o nosso único aspecto como pessoas – também somos pessoas que amamos, tememos, sofremos, nos alegramos, cremos, descremos, trabalhamos, aprendemos, desaprendemos, sorrimos, choramos etc [todos nós, “heterossexuais” ou “homossexuais”]. Em nossa experiência religiosa, por exemplo, todas as pessoas podem experienciar o mesmo Mistério Divino, e são chamadas ao serviço da mesma forma – independentemente de como se identificam, de quem amam e de por quem são amadas. Esse lado humano pleno – de ver “homossexuais” como pessoas que tem vidas familiares, profissionais (professores, médicos, pesquisadores, políticos, engenheiros, policiais etc, e não apenas como aquelas figuras estereotípicas as quais culturalmente somos acostumados), religiosas etc – entretanto, parece ser ignorado tanto pela mídia quanto pelo próprio chamado “movimento gay”, quando sexualizam o sentido de ser gay [é só ver a maneira como gays são comumente exibidos na mídia, ou pior, como “vendem sua imagem” nas chamadas “paradas” da diversidade] para a visão pública, o que consiste num infeliz equívoco constantemente repetido em nossa sociedade.

Em minha experiência, já está mais do que na hora de mudarem o foco quando abordarem teológica, política e culturalmente a realidade dos indivíduos gays e de suas famílias. Em nome do bom senso, olhem pare seus filhos e filhas, amigos e amigas, vizinhos e vizinhas. Somos muito mais do que insinuam as novelas televisivas, os discursos políticos ou certas pregações religiosas. Assim como a teologia cristã é muito mais ampla do que o discurso biblicista pode sugerir. É tudo uma questão de boa vontade para percebermos a variedade. Então, quando quiserem ter um diálogo teológico que inclua as vozes de pessoas como eu, quem sabe não estarei disposto a participar?!

+Gibson


iAs comunidades de fé que se formaram nas áreas de fronteira interiorana norte-americanas desenvolveram uma visão estrita sobre moralidade na qual certos hábitos sociais aceitos nos meios cristãos urbanos – a exemplo da bebida, do fumo, da dança, do jogo de cartas etc – foram vistos como pecaminosos. Essa visão foi trazida por missionários “evangélicos” advindos dessas tradições protestantes norte-americanas que, apesar de lá sempre terem sido minoritárias, aqui no Brasil sempre terem sido majoritárias – logo, a associação automática de Protestantismo, no Brasil, com essas injunções “morais”.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Uma fé reparadora de brechas e restauradora de ruínas


O jejum que eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente. Se você fizer isso, a sua luz brilhará como a aurora, suas feridas sararão rapidamente, a justiça que você pratica irá à sua frente e a glória do Senhor acompanhará você. Então você clamará, e o Senhor responderá; você pedirá socorro, e o Senhor responderá: “Estou aqui!” Isso se você tirar do seu meio o jugo, o gesto que ameaça e a linguagem injuriosa; se você der o seu pão ao faminto e matar a fome do oprimido. Então a sua luz brilhará nas trevas e a escuridão será para você como a claridade do meio-dia; o Senhor será sempre o seu guia e lhe dará fartura até mesmo em terra deserta; ele fortificará seus ossos e você será como jardim irrigado, qual mina borbulhante, onde nunca falta água; as suas ruínas antigas serão reconstruídas, você levantará paredes em cima dos alicerces de tempos passados. Vão chamá-lo reparador de brechas e restaurador de ruínas, onde se possa morar.” (Isaías 58:6-12)

Reconstruir, restaurar, reparar. Infelizmente, esses não são verbos que ouço em meus diálogos com a frequência que gostaria. Um dos verbos que mais ouvi nas últimas duas semanas foi “desconstruir”. Ele apareceu em conversas que tive com alunos, colegas, amigos, e em algumas leituras que fiz. Ele emergiu até mesmo em conversas que tive na igreja, com algumas pessoas. Tenho a impressão que há muita gente preocupada em desconstruir, demolir, certos conceitos, ideias, noções, crenças.

Honestamente, penso que essa obsessão da chamada pós-modernidade com o “desconstruir” é triste. Isso porque geralmente a demolição é a maior distância percorrida pelos desconstrutores. Eles se preocupam apenas em desconstruir conceitos, ideias, noções, crenças; não constroem nada.

Alguém, por exemplo, fala em desconstruir antigas noções religiosas, eliminando 'verdades' que integram os elementos formativos da fé de outros. Desconstrói – assim pensa – cada um dos pontos da visão de mundo de uma determinada tradição. Demole. Derruba. Põe abaixo. Mas não constrói nada significativo no lugar. Não edifica. Não ergue. Não erege. Não cria. E assim, torna sua proposta desconstrutora ainda mais vazia e insignificante do que a que intencionara substituir. É trágico!

Não, meus amigos – sim, vocês com quem conversei sobre “desconstruções” –. Nunca pensei estar desconstruindo nada, porque penso ser a desconstrução algo – metaforicamente falando – “bandido”. Como dizem as Escrituras cristãs, “o ladrão” é que vem para “matar, roubar, e destruir” (João 10:10) – e a “desconstrução é uma forma de destruição. Eu prefiro estar ao lado daqueles que constroem algo, que contribuem na edificação e na criação. Prefiro, se possível, ser chamado de “reparador de brechas e restaurador de ruínas, onde se possa morar”.

Pensemos em Deus, por exemplo – que foi o principal tópico das ideias de “desconstrução” de vocês. Não me interesso nem um pouco por desconstruções de noções do Divino. Diferentemente do que alguns possam pensar, não sou um ateu – mesmo que me recuse a identificar-me como um “teísta”. Na realidade, recuso-me a etiquetar minhas noções sobre Deus, pois penso que essas devam ser maleáveis e flexíveis. Como acredito na revelação contínua, no mover do Espírito, escolho estar suficientemente aberto para que Deus se revele a mim de diferentes formas, em diferentes momentos de minha vida.

As tradições judaico-cristãs que me formaram como um homo religiosus – i.e., suas Escrituras, liturgias, teologias, filosofias, mitos, memória religiosa etc – são o território no qual escolho construir edificações para minha própria relação com o Divino, com a criação e com os homens. Como um unitarista, obviamente, estou aberto ao diálogo com outras tradições, já que Deus, em minha compreensão, não é judeu, nem cristão, nem muçulmano, nem budista, nem hindu, nem espírita, ou membro de qualquer outra tradição de fé. Creio que o Espírito se move sobre a terra, igualmente, para qualquer um de nós; e é exatamente por essa razão que me recuso a abraçar qualquer 'verdade' humana como se fora a definitiva – e as tradições religiosas, para mim, são humanas: são respostas que nós damos ao mover do Espírito divino. Isso, entretanto, não significa que eu não acredite que haja 'verdade' – o que não acredito é que eu, ou qualquer outro, tenha a condição de definir uma verdade eterna por meio de uma linguagem falha e incompleta como a humana. Podemos nos aproximar linguisticamente de uma descrição de nossas relações com o Divino, mas nossa linguagem não é capaz de definir o Divino. Na realidade, mesmo se pudéssemos fazer uso de uma linguagem verbal divina, essa não poderia conter a Deus, pois se o fizesse, Deus seria menor que sua própria linguagem. Não posso definir Deus – dizendo algo como: Deus é bom, Deus é fiel, Deus é eterno etc – pois se o pudesse, Deus seria menor que minha linguagem e, consequentemente, menor que eu. Deus, para mim, não é, nunca foi, nem nunca será. Deus não pode estar limitado por verbos criados pelo homem – se assim fosse, Deus estaria limitado pelas paixões, dogmatismos, tribalismos, bairrismos, e todos os -ismos humanos, e não acredito que isso seja possível.

Já disse incontáveis vezes que não acredito em Deus. Me recuso a utilizar o verbo acreditar com o nome Deus. Isso porque não posso encarcerar o Divino em minhas limitadas noções teológicas, em minha linguagem limitada. A tradição cristã (e a judaica, e a islâmica etc) nos ensina a darmos voz à nossa crença por meio de outra linguagem que não a verbal. É como se ela dissesse: utilizem o verbo fazer e não crer! “Amem aos seus inimigos”, ela nos comanda, e não “Creiam em amar seus inimigos”! “Alimentem os famintos”, e não “Creiam que alimentar os famintos seja a coisa certa”. O amor é a única linguagem aceitável para definir Deus na tradição cristã. [E a construção é o produto do amor, e não a desconstrução.] Infelizmente, a obsessão com objetividade nos faz centrar a fé cristã mais em palavras do que em ações, e isso, para mim, é uma heresia.

Como demonstra esse trecho do livro do Profeta Isaías, nossas ações construtoras, reparadoras, restauradoras são mais importantes que os rituais e, para meu argumento aqui, as palavras que utilizamos para exibir nossa “fé em Deus”. A resposta de Isaías serve tanto para os religiosos que enfatizam a religião externa, aparente, quanto para os críticos desconstrutores: a fé, “a religião pura” (na linguagem de Tiago 1:27), é aquela que faz, que se materializa em ações, que repara brechas, que restaura ruínas, que alimenta os famintos, que liberta os oprimidos, que abriga os desabrigados etc; é, enfim, uma manifestação de Deus – se aceitarmos a noção de Deus como amor.

Minha oração é que possamos, de alguma forma, nos abrir a essa visão de fé como um construir, e nos aproximarmos da visão de Deus como Criador, sendo “deificados” em nossa disposição de sermos moldados pelo soprar do Espírito.

+Gibson

sábado, 26 de janeiro de 2013

A religião como algo maior que a crença


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Durante esta semana, me envolvi em três discussões interessantes sobre crença e religião – com diferentes pessoas e em diferentes contextos, mas com os argumentos seguindo o mesmo caminho conceptual: a fé religiosa, na compreensão de meus interlocutores, é identificada com crença; sua compreensão é que a fé religiosa seja necessariamente sinônimo de aceitação de dogmas. Felizmente, meus colegas não poderiam estar mais equivocados!

Acredito que a razão básica pela qual tantas pessoas pensem assim seja por estarem acostumadas à preocupação cristã com ortodoxia: a fé como sinônimo de assensus, ou seja, a fé como uma função intelectual de aceite duma formulação da crença correta. Assim, a maioria dos herdeiros da tradição cristã não se dá conta de que o termo “fé” possui diferentes sentidos no Cristianismo – assim como também para outras tradições de fé jordânicas (o Judaísmo e o Islã). Essas pessoas não se dão conta de que, por exemplo, mesmo nas tradições “ortodoxas” da Igreja ocidental – i.e., o Catolicismo Romano, o Luteranismo, o Anglicanismo, e as variadas tradições reformadas etc – há não apenas uma preocupação com a fé enquanto uma afirmação intelectual, mas também como prática. Assim, falamos não apenas em ortodoxia (crença correta) – que parece ser uma obsessão, especial e surpreendentemente para aqueles que estão fora da igreja (e eu poderia apontar um sem número de razões para isso, mas vou deixar isso de lado!) –, mas também em ortopraxia, isto é, na prática correta.

A preocupação com a ortopraxia é uma marca de tradições como o Judaísmo e o Islã, mas também é parte integrante do Cristianismo – apesar de a história da Igreja ocidental ser marcada, por inúmeras razões, por uma preocupação com a “correção” teológica, e isso fazer com que as pessoas (especialmente aqueles que tendem a reduzir a religião a um instrumento de “dominação” ou a enxergá-la a partir da ótica funcionalista) não consigam ver as variadas facetas fenomenológicas da fé religiosa. Cristãos liberais como eu não rejeitam a importância da fé como assensus, apenas compreendemos esse aspecto da fé como sendo secundário, enfatizando muito mais o fazer do que o crer.

A Reforma Protestante, com sua ênfase na fé como assensus, e sua rejeição das obras como instrumento salvífico, acabou por criar no inconsciente de muitos protestantes, com o passar do tempo, uma antipatia para com preocupações com nossas ações. Entretanto, nós protestantes liberais, encontramos nossa compreensão da religião como uma prática enraizada na própria narrativa bíblica. Gosto de pensar sempre neste trecho do Novo Testamento:

Meus irmãos, se alguém diz que tem fé, mas não tem obras, que adianta isso? Por acaso a fé poderá salvá-lo? Por exemplo: um irmão ou irmã não tem o que vestir e lhes falta o pão de cada dia. Então alguém de vocês diz para eles: “Vão em paz, se aqueçam e comam bastante”; no entanto, não lhes dá o necessário para o corpo. Que adianta isso? Assim também é a fé: sem as obras, ela está completamente morta. Alguém poderia dizer ainda: “Você tem a fé, e eu tenho as obras.” Pois bem! Mostre-me a sua fé sem as obras, e eu, com as minhas obras, lhe mostrarei a minha fé.” (Tiago 2:14-18)

Esta é apenas uma citação bíblica que trata dessa preocupação com a maneira como damos vida à religião em nosso dia a dia, e para mim (que tenho um pé na tradição teológica luterana), uma das mais emblemáticas – já que parece contradizer a compreensão de Lutero (não vou entrar aqui na discussão do por quê essa aparência é equivocada, em minha compreensão!). Seja como for, o Cristianismo é amplo demais para ser reduzido à tradição do “cremos”. Também, respondendo ao que alguns comumente me dizem, uma religião que trata a “crença” teológica como algo secundário não é apenas uma “filosofia”, e essa parece ser uma ideia compartilhada pelo próprio autor da já citada Epístola de Tiago:

Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo.” (Tiago 1:27)

Minha compreensão pessoal é a de que a religião seja uma prática, uma ética e um modo de vida moldados por minhas crenças teológicas. Essas crenças – a fé como assensus – são muito importantes, mas desempenham um papel extremamente menor do que aquilo que minha tradição de fé me ensina ser esperado de mim em minhas ações para com todas as pessoas que me cercam, e para com toda a criação.

+Gibson

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Jesus e a manjedoura: o Natal como lembrete do espírito de hospitalidade

Uma das partes mais interessantes da narrativa natalina parece ser sempre esquecida por todos nós. Sempre nos lembramos da manjedoura, da estrela, dos reis magos, dos animais, dos presentes, dos anjos, mas, por alguma razão, nos esquecemos da falta de alojamento!

Na narrativa do Natal, no Evangelho de Lucas 2:6-7, o detalhe de os pais de Jesus não terem encontrado abrigo numa hospedaria é tão importante – ou, talvez, até mais – quanto os demais detalhes narrativos. Jesus nasce numa manjedoura por seus pais não terem encontrado abrigo dentro da hospedaria.

Uma mulher grávida, em trabalho de parto, é deixada do lado de fora, no abrigo dos animais, e lá dá luz a seu filho. A gravidade disso, na lei judaica, é incompreensível para a maioria dos cristãos. A Bíblia hebraica, e, mais tarde, a literatura rabínica, apontam o comportamento esperado de alguém que recebe um hóspede: mesmo antes de obter quaisquer informações sobre seu hóspede, como o seu nome, por exemplo, o anfitrião deveria cuidar das necessidades daquele – como descarregar sua bagagem, alimentar e dar de beber a seus animais, oferecer água para que o hóspede e seus criados lavassem os pés, e alimentá-los (Gênesis 18:2-5; 19:2-3; 24:31-33); durante a estadia, o anfitrião deveria se sentir pessoalmente responsável por qualquer mal que ocorresse a seu hóspede (Gênesis 19:8); na despedida, outro banquete deveria ser servido (Gênesis 26:30; Juízes 19:3-5); o hóspede e o anfitrião poderiam fazer uma aliança (Gênesis 26:31), e o anfitrião deveria acompanhar o hóspede para a despedida (Gênesis 18:16); por sua vez, o hóspede deveria abençoar seu anfitrião antes de partir (Gênesis 18:10), e deveria perguntar-lhe se ele (o anfitrião) precisava de algo (2 Reis 4:13); se o hóspede quisesse permanecer com o clã ou na localidade, era-lhe permitido escolher uma moradia (Gênesis 20:15). Essa era a prática da hospitalidade como estabelecida na cultura do povo de Jesus.

Curiosamente, e, na verdade, essa parece ser a intenção da narrativa – pelas mais variadas razões –, aqueles que deram abrigo à “sagrada família” não seguiram esse ritual da hospitalidade. A recepção – ou seria despedida? – hospitaleira é recebida dos pastores que vão visitar o “messias” recém-nascido, após serem avisados por anjos!

Tantas pessoas se importam com os detalhes miraculosos desse relato evangélico, enfatizando os adereços narrativos, e se esquecem daquilo que parece-me ser o mais importante: não havia abrigo para aquela mãe prestes a dar à luz! Seu bebê nasceu dentre os animais, porque seus anfitriões não cumpriram o mandamento de serem hospitaleiros! E fico me perguntado se eu mesmo, tão preocupado com meus compromissos festivos – nesta data na qual celebramos o nascimento daquele bebê –, não ignoro a hospitalidade para com aqueles para os quais deveria ser um anfitrião.

É minha sincera oração que possamos, antes de mais nada, desenvolver o sentimento de hospitalidade – abrindo nossos corações, mentes e braços para nossos semelhantes.

Feliz Natal!!!

+Gibson

sábado, 8 de dezembro de 2012

Calendário religioso, literacia religiosa e intelectuais antirreligiosos

Este é um daqueles períodos do ano que possuem um sentido especial para, pelo menos, duas grandes tradições religiosas mundiais – o Judaísmo e o Cristianismo. Para a tradição cristã, (o Advento e) o Natal; para a tradição judaica, Hanukkah. Mesmo aqueles que se identificam como não religiosos, ou mesmo como ateus, no mundo judaico-cristão, essa temporada não passa despercebidamente, já que nossa cultura (além de nossa economia!) nos relembra que “há algo no ar”.

Como um indivíduo religioso, é óbvio que esta época é especialmente relevante para mim. Ela possui um sentido metafórico enraizado naquela tradição judaico-cristã que molda minha visão de mundo – aquela cultura que funciona como a janela através da qual aprecio a imagem lá fora. Mesmo aquelas pessoas que não participam de minha comunidade de fé, ou que não apreciam ou compreendem a metáfora religiosa, percebem a importância simbólica dessas datas para mim.

Em épocas como esta, entretanto, sou lembrado acerca de algo que está além do imaginário religioso individual dum devoto, englobando questões intelectuais muito básicas. Frequentemente, percebo a ausência de fluência religiosa – ou literacia religiosa, como geralmente chamo – daqueles que supostamente se ocupam em pensar acerca do social (por exemplo, jornalistas, sociólogos, antropólogos, historiadores, estudantes em geral etc). Nossa sociedade urbana mediocremente educada, que se orgulha em copiar os moldes do secularismo europeu – “ingenuamente” crendo que isso seja sinônimo de superioridade intelectual –, comporta-se como se possuir um certo nível de compreensão duma parte tão importante de sua cultura fosse algo supérfluo, dispensável, ou mesmo selvagem.

A ignorância voluntária acerca do domínio da fé é tão gritante que já fui testemunha de muitas afirmações grosseiramente equivocadas, advindas de “intelectuais” que formam outros “intelectuais”, que foram aceitas como “verdade factual” por seus ouvintes (“verdades” essas que, para o nível esperado do público presente, seriam facilmente questionadas por uma simples leitura de bons guias básicos de religião!). Pode parecer algo irrelevante para aqueles “intelectuais”, mas, para mim, é uma questão de integridade intelectual.

Para citar um exemplo desse problema de ausência de literacia/fluência religiosa, penso em algo que li no livro de Sociologia dum grupo de alunos meus, que vieram me pedir informações sobre o que leram lá. Este livro (para o Ensino Médio) reproduzia um artigo de revista sobre uma comunidade Amish no Paraguai, chamando-os de puritanos e fundamentalistas. Claro que isso fez com que meus alunos e eu nos engajássemos numa prolongada discussão sobre o que aqueles adjetivos significavam teologicamente, e a diferença entre esse sentido e aquele que (supúnhamos) era dado pelo autor do artigo. [Devo confessar que o maior problema que tive com essa experiência foi o fato de não haver, no livro de Sociologia, nenhuma discussão sobre as escolhas semânticas feitas pelo jornalista – o que me levava a acreditar que o autor do livro concordava com a opinião do jornalista –, e não muito o uso feito pelo próprio jornalista!]

Mais recentemente, as discussões sobre “homofobia” (seja lá o que queiram dizer exatamente com este termo!) e aborto, que parecem ser os novos queridinhos dos meios politiqueiros brasileiros que se engajam em copiar a semântica política d'alhures, entram pelo mesmo caminho. “Intelectuais” supostamente respeitáveis fazem afirmações deselegantes sobre a fé de diferentes tradições, e seus comentários só mostram que, talvez, devessem se informar um pouco mais, se quisessem que seus argumentos soassem mais maduros. Para alguns “intelectuais”, ser religioso é sinônimo de ser “puritano”, “fundamentalista”, e “homofóbico”; enquanto ser sofisticado é não se opor ao aborto, às drogas, e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo! Mais uma vez, o problema da falta de literacia religiosa; e mais, o problema da falta de literacia cultural!

Aprendi desde muito jovem que, mais importante do que minha opinião, eram meus argumentos em defesa dessa opinião que realmente faziam diferença. Não posso ter bons argumentos em favor de ou contra algo que não conheço. Como os antigos filósofos chineses, pais da teoria do jogo, já ensinavam: só podemos vencer uma guerra quando conhecemos aos nossos inimigos. Como, regra geral, não acredito em guerras, prefiro mudar isso para algo como: só podemos viver bem com outros seres humanos quando aprendemos sobre eles, e descobrimos coisas a seu respeito que podemos apreciar. Talvez já seja hora dos “intelectuais” belicosamente antirreligiosos aprenderem um pouco sobre religião, e descobrirem algo que possam apreciar entre aqueles que abraçam uma fé. Quem sabe, não acabarão ensinando algo positivo aos “puritanos, “fundamentalistas e “homofóbicos”!

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Quem está no comando mesmo?

Esta semana, vi um adesivo num carro que me deixou teologicamente inquieto. O adesivo dizia o seguinte:

Deus está no comando!

E isso me fez lembrar de tudo o que ouço de tantas pessoas, das mais diferentes tradições de fé, e percebi que a maioria das pessoas que dizem frases como essa não a compreendem como metáforas, mas como afirmações factuais de sua compreensão do Divino, e da forma como Divino e humano interagem na vida real.

Essa compreensão não poderia estar mais distante de nossa tradição Unitarista! Deus não pode estar “no comando”, já que isso violaria um dos “dogmas” – é, eu sei o quanto todos nós desapreciamos esta palavra, mas nós não deixamos de ter os nossos também! – mais importantes de nossa tradição, sem o qual o Unitarismo, enquanto tradição cristã, desabaria: o livre arbítrio – a liberdade que os humanos têm de escolher seu próprio caminho na vida! [Isso para não citar que essa noção de “Deus estar no comando” não faria muito sentido para a compreensão que a maioria de nós, talvez, tenhamos do próprio Divino!]

Quando leio ou ouço “slogans” como esse, não posso evitar pensar em questões como: Se Deus realmente está “no comando”, como pode acontecer tantas catástrofes e desgraças no mundo? Se Deus realmente está “no comando”, como pode um homem entrar armado numa escola e atirar contra crianças indefesas? Ou como pode um grupo de homens sequestrar aviões e arremessá-los contra duas torres comerciais? Como pode uma mãe abandonar sua própria filha numa lata de lixo? Como pode um homem bater em sua própria esposa? Como pode um pai matar seu próprio filho? Como pode um jovem morrer num acidente de automóvel? Como pode um ônibus cair num desfiladeiro? Se Deus está realmente “no comando”, e todas essas coisas acontecem, consigo pensar em duas explicações: Deus é “um ser” extremamente cruel – mais cruel que qualquer ser humano psicologicamente sadio – que se alegra com o sofrimento da humanidade; ou Deus é “um ser” estúpido! Essas duas opções servem como resposta ao argumento utilizado por alguns de que o sofrimento é a maneira utilizado pelo Divino para nos ensinar! [Eu, como um ser humano imperfeito, jamais imporia morte, doença ou desgraças a um filho meu – se fosse um pai – para ensinar-lhe o que quer que fosse!]

Não! Deus não está “no comando”! O Divino – seja lá o que esse termo signifique para cada um de nós – abençoou-nos com a liberdade para estarmos nós mesmos no comando! Nós somos os guias de nossas caravanas, e não um ser ou poder, ou realidade, além de nós próprios. Frases como aquela podem servir de metáfora para a noção de que não estamos sozinhos, ou de que podemos encontrar alento e direção numa Realidade além de nossa experiência física – não vejo problema nocional algum com isso –, mas compreender que Deus controle tudo é trair a mensagem cristã (ao menos, a maneira como nós Unitaristas compreendemos essa mensagem!), é impor ao Divino a responsabilidade por nossos erros e crimes, é ignorar a maneira como o Universo funciona, é atribuir ao Deus da tradição judaico-cristã características deveras humanas e até menores que as humanas! Quando os homens cometem violências contra outros membros de sua espécie, ou membros de outras espécies, é porque estão utilizando sua liberdade da maneira errada (ao menos, para a ética que guia nossa compreensão de mundo). Quando desastres naturais nos atingem, e ceifam a vida de muitos dos seres que povoam este planeta, é porque há “razões naturais” para aqueles desastres, ou, novamente, porque utilizamos nossa liberdade para alterar o espaço geográfico de forma que contribuiu com aqueles desastres. Em outras palavras, para mim é claro que nós é que estamos “no comando”!

Como diriam as duas últimas linhas do lindo poema de William Ernest Henley, "Invictus":

"Eu sou o senhor de meu destino:
Eu sou o capitão de minha alma."

Espero apenas que possamos ter sabedoria para saber comandar nossos próprios destinos e almas!

+Gibson

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Unitaristas e a liberdade de consciência


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Hoje, mais uma vez, iniciamos o curso preparatório para a recepção de novos membros em nossa Congregação. Sempre fico muito feliz quando tenho a oportunidade de facilitar esse curso. É a maior chance que tenho para conhecer mais proximamente aqueles que têm a intenção de se tornarem membros desta igreja. É a chance que tenho para lidar com questões sobre as quais, talvez, ainda não tenha pensado, e, assim, ter mais ideias a serem discutidas em momentos como este.

Uma das coisas com as quais qualquer membro novo desta Congregação tem que lidar é nossa tradição de liberdade de consciência, que é o sentido básico do adjetivo “liberal” que utilizamos orgulhosamente como sinônimos de nossa tradição Unitarista. Essa liberdade pode ser assustadora para muitos que intentam juntar-se a nós; e, é bom que reconheçamos, pode se tornar um problema para alguns deles também!

Somos uma igreja cristã. Em muitos sentidos, somos, enquanto comunidade de fé, muito semelhantes a outras igrejas cristãs. Estudamos a Bíblia, e seguimos um lecionário cristão tradicional. Temos liturgias riquíssimas em poesia e tradição. Usamos símbolos cristãos em nossa capela. Seguimos o calendário do Ano Cristão em nossa vida comunal. Celebramos sacramentos ou ritos cristãos tradicionais, como Batismo e Comunhão. Enfim, temos muitas semelhanças com outras comunidades cristãs, especialmente com aquelas mais tradicionalmente litúrgicas! O que, então, distingue-nos – nós Unitaristas – de outras tradições cristãs?

A resposta que essa comunidade tem dado em seus 79 anos de história aqui em Pernambuco é ouvida em alto e bom som na canção que acabamos de ouvir de nosso coral: “Liberdade”! Essa é, na compreensão desta comunidade, a grande diferença. Essa resposta está também no lema desta Congregação: “Mentes abertas, mãos abertas, corações abertos”. Esse é o sentido primordial que esta comunidade atribui à sua tradição Unitarista.

Essa liberdade, entretanto, não é algo fácil e simples. O liberalismo que essa comunidade celebra como seu não é sinônimo de “Faça o que quiser, contanto que não seja o mal” – que é o que muitos, erroneamente, interpretam ser o Unitarismo. Não. Nosso liberalismo é uma atitude consciente, racional, seletiva, fiel e íntegra para com nossa tradição cristã. Esta comunidade está ancorada numa tradição teológica que nasceu no século dezesseis no leste europeu, atravessou o continente, chegou à América do Norte no século dezoito, e se instalou no Brasil no século XX. Nosso liberalismo fala o idioma duma tradição protestante litúrgica, cuja janela para a realidade é a linguagem metafórica da Bíblia, e cujo caminho para Deus está em Jesus. Nosso liberalismo prega uma união que não está ancorada numa concórdia imposta por credos ou confissões. Nesta comunidade de fé, não esperamos que todos acreditem exatamente na mesma coisa, que cheguem todos às mesmas conclusões; o que esperamos é que entre nós tenhamos um espírito de koinonia, de comunhão, de comunidade ampla; um espírito de inclusão, e de hospitalidade; um espírito cristão! Esse é o sentido que damos à nossa tradição!

Quando pessoas vêm a nós de outras tradições de fé, se assustam um pouco com o fato de haver tantas compreensões diferentes aqui. Certa vez, por exemplo, alguém me disse que imaginava que ser um Unitarista fosse não acreditar no dogma da Trindade, mas que quando conversou com algumas pessoas aqui, percebeu que muitos entre nós eram trinitaristas! Tive, então, de explicar àquela jornalista que o Unitarismo não se distingue de outras tradições cristãs por causa de sua compreensão de Deus ou de Cristo; o que historicamente nos distingue de outras tradições é nossa ênfase na liberdade de consciência! Essa liberdade de consciência, entretanto, se movimenta dentro da tradição cristã. Assim, podemos chegar a diferentes conclusões acerca da natureza de Deus, mas – em nossa tradição –, nossas conclusões serão articuladas numa linguagem cristã. Para nós, essa linguagem cristã inclui as Escrituras, a tradição da Igreja, a filosofia ocidental, as descobertas científicas, as artes modernas, e o Espírito que dá vida à busca humana por verdade.

Nesta comunidade, encontramos pessoas dos mais diferentes tipos, dos mais diferentes backgrounds sociais e teológicos. Aqui há não-trinitaristas e trinitaristas, teístas e não-teístas, crentes e agnósticos. Entre nós há aqueles que enxergam os elementos da Eucaristia que partilharemos em alguns minutos como apenas símbolos dum ofício realizado por Jesus há dois milênios atrás, e há outros que os veem como portadores da presença de Cristo entre nós. Alguns de nós falam em sacramentos, outros em ritos. Alguns estenderão suas mãos para partilhar do pão e do vinho, outros preferirão receber uma benção. Há até pessoas não-exclusivamente cristãs entre nós, já que alguns de nós mantemos laços com a tradição judaica – alargando nossa linguagem cristã para uma linguagem judaico-cristã!

Toda essa liberdade, que pode ser muito confusa para alguém que tem um primeiro contato com os Unitaristas, exige um grande senso de integridade intelectual de nossos membros! O Unitarismo não oferece respostas fáceis! Geralmente não falamos em milagres, em salvação, e em vida após a morte, com a mesma frequência ou o mesmo sentido que em outras comunidades. Daqui deste púlpito, geralmente não tratamos de temas dogmáticos, em grande parte, em respeito pelas diferenças de opinião entre nós. Quando um Ministro desta igreja fala sobre algo deste púlpito, ela ou ele tem a responsabilidade de lembrar-se da diversidade teológica entre nós, e falar num tom de respeito para com aqueles que são parte de nossa família, ao mesmo tempo em que é íntegra e íntegro a suas próprias convicções pessoais. E isso pode ser muito assustador para alguém que vem de outra tradição. Mas esse é o espírito desta comunidade!

Ser Ministro duma congregação tão diversa como esta nem sempre é a coisa mais fácil do mundo, mas é o desafio mais surpreendentemente maravilhoso que qualquer Ministro cristão – especialmente um Unitarista Anglo-Luterano como eu – pode experienciar. E, até onde posso perceber, é uma experiência surpreendentemente maravilhosa para a maioria daqueles que fazem esta pequena família. Espero poder encontrá-los em nossa próxima aula, e poder conversar com alguns de você mais de perto!

+Gibson

(Congregação Unitarista de Pernambuco, 11 de novembro de 2012)

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Deus seja louvado!


Enviaram-me, esta noite, mais um daqueles e-mails irritantes que enchem minha caixa de spam. Não o li por querer; acidentalmente, ao selecioná-lo para ser deletado, abri-o. Tratava-se duma convocação para assinar um apoio a uma suposta ação do Ministério Público Federal (divulgado pela imprensa hoje) que pede a retirada da frase “Deus seja louvado” das cédulas de Real. O e-mail afirmava que essa era uma ação necessária para garantir a laicidade do Estado brasileiro.

Ora, vamos! O Estado brasileiro é laico – e eu, como membro duma minoria religiosa não-católica, sei disso –, mas não é um Estado ateu! A própria Constituição Federal reconhece isso, quando, em seu Preâmbulo, os membros da Assembleia Nacional Constituinte invocam a proteção de Deus para promulgá-la!

A referência a Deus nas cédulas de Real são a mais inclusiva afirmação dum importante aspecto da história cultural dessa nação, o fundamento metafísico de nossa cultura nacional, que – para a cultura brasileira – é anterior ao Estado, anterior e superior às leis humanas.

Os supostos ateus que sempre me enviam mensagens sobre “lutar por um Estado laico” estão, até onde entendo, equivocados em sua interpretação tanto do Estado laico (que não é o mesmo que Estado ateu!), quanto da suposta violação de direitos pelo “Deus seja louvado” nas células de Real.

O “Deus seja louvado” é mais a afirmação duma identidade cultural, que a afirmação duma fé específica. Esses movimentos, que tentam imitar discussões ocorridas nos últimos anos nos Estado Unidos e partes da Europa, sobre temas semelhantes, deveriam encontrar coisas reais com as quais se preocupar! Eu, com todo respeito, sinto-me mais ofendido por sua estupidez!

+Gibson

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Um pouco de clareza semântica, por favor!


Sempre me aborreço com a maneira como somos semanticamente descuidados em nossas discussões. Para dar um exemplo, pense no uso que recorrentemente fazemos hoje de expressões como “fundamentalismo”, “ideologia”, “capitalismo”, e “neoliberalismo”. Para mim, nem sempre é muito claro o que esses termos significam no discurso da maioria daqueles que os utilizam. Eles se tornaram “chavões” discursivos que significam quase qualquer coisa nos discursos políticos e acadêmicos, apesar de, na história intelectual, terem significados específicos.

Talvez minha quase-obsessão semântica seja um mal advindo de minha formação clássica e teológica. Como alguém que se ocupa do estudo histórico de ideias religiosas, tenho que manter em mente o sentido que determinados termos possuem nos textos que analiso. Assim, relações intertextuais são indispensáveis ao meu campo de análise. Não posso, por exemplo, utilizar o termo “fundamentalismo” para me referir a movimentos reformistas na Europa do século XVI, e achar que não há nenhum problema com isso! Considero que viver numa era na qual não há mais noções de objetividades existenciais, na qual não há mais verdades inquestionáveis, exige um cuidado semântico maior para que possamos manter um certo nível de inteligibilidade. Infelizmente, nem todos compreendem isso.

A plasticidade idearia que invadiu o domínio semântico é tão assustadoramente “descontrolada” que tenho quase certeza que nossos antepassados teriam um grande problema para nos entender – não apenas por usarmos uma linguagem diferente, mas porque aquelas antigas noções que lhes ofereciam um senso de segurança e unidade, e que se manifestavam em termos plenos de sentido, não significam a mesma coisa (quando significam algo!), e seu uso não segue a nenhum padrão de significado que possa ser plenamente partilhado por todos os interlocutores.

Vindo dum teólogo que se preocupa com a relação entre a fé e a linguagem metafórica, esse apego à clareza semântica pode parecer contraditório – já que, para mim, a fé (o texto) só pode ser compreendida em relação às construções subjetivas do sujeito (i.e., relações intertextuais). Mas minha consideração de subjetividades individuais só são possíveis porque conceitos, em seus contextos históricos, são essenciais para a construção exegética. Então, talvez a confusão semântica seja indispensável ao domínio literário, mas podemos dispensá-la quando nos referimos a uma tentativa de construir uma compreensão do domínio das ideias: seja na teologia, na filosofia, na história, na sociologia etc. A clareza semântica é essencial para a construção teórica e, consequentemente, para a eficiência metodológica.

+Gibson